quinta-feira, 10 de novembro de 2011

da lista convivial dos cineclubes brasileiros, cncdialogo@yahoogrupos.com.br

CINECLUBISMO EM CRISE

Primeira Parte: O Cineclubismo Ensaboado

          O recente lançamento pela companhia Unilever do xampu Seda Pós Alisamento Químico – Tratamento de Choque[i] praticamente coincidiu com a divulgação na lista dos cineclubes do conceito de Pós Mercado Industrial Sustentável, uma espécie de tintura teórica para o embelezamento das práticas de um segmento da cadeia neoprodutiva do audiovisual brasileiro amador. Fugindo um pouco ao elevado nível teórico do debate suscitado por este novo produto, à formalidade e à postura cordial ou “politicamente correta” que o de-limitam, o texto que segue pretende trazer uma contribuição menos teórica e mais política mesmo, procurando localizar a importância concreta da idéia, da tendência Fora do Eixo e seus apaniguados diversos, bem como de suas práticas no ambiente ideologicamente fragilizado dos cineclubismos no Brasil.

          Na segunda parte, que divulgarei logo, coloco essa visão mais factualmente nos contextos histórico e político do atual momento do cineclubismo brasileiro e das suas direções, notadamente o CNC.
Independentemente da posição do leitor, acredito que o texto é estimulante - apesar de um pouco longo para os adeptos exclusivos da cultura audiovisual. Muitos tópicos que abordo nunca são tocados - por educação, naturalmente - no ambiente cineclubista, e são absolutamente ignorados nessas house lists de cines e circuitos sob tutela e controle do programa de formação de platéias do governo federal também conhecido sob a marca Cine Mais Cultura. Às quais não tenho acesso, claro; seria muito interessante se alguém se dispusesse a repassar-lhes este artigo. Os dois textos ficarão disponíveis no meu blog: http://www.felipemacedocineclubes.blogspot.com/

Os paradoxos do subalterno

          O jornalista Elio Gaspari tem um espaço na Folha de São Paulo em que evoluem alguns personagens que lidam com a nossa língua. Madame Natasha – que fechou sua ONG de defesa do idioma - é uma referência freqüente: ela combate as formas gongóricas de expressão, geralmente adotadas por porta-vozes de empresas ou instituições públicas – isto é, de segmentos das classes dominantes. O exemplo deste último domingo citava a frase: “houve intermitência no serviço”, usada por uma companhia qualquer para referir-se à interrupção de seus serviços por várias horas.

          Este não é um fenômeno exclusivamente brasileiro, mas temos uma certa tradição própria nesse estilo de expressão, uma herança colonial de Portugal e, evidentemente, de classe: os colonizados de instrução “superior”, ou os que os mimetizam, adornam suas frases de berloques para se distinguirem das camadas “inferiores” – ou para se “identificarem” com as superiores. Faz-se o mesmo com roupas e todo tipo de acessórios do cotidiano.

          Mais utilitariamente, também está presente um sentido eufemístico, como neste exemplo da intermitência, que serve para contornar problemas e dificuldades, dissimular, ocultar ou enterrar aspectos negativos dos temas abordados. É muito comum em comunicados oficiais, releases e, claro, na propaganda em geral. É, de certa forma, uma maneira “elegante” de mentir. Subprodutos freqüentes de ambas modalidades são os estrangeirismos e tecnicismos inúteis ou redundantes que aparecem mais destacadamente (mas não exclusivamente) em alguns meios, como entre os publicitários e tecnocratas. E também não podemos esquecer os antepositivos greco-latinos, como paleo, neo e pós, notadamente, surgidos no meio acadêmico para descrever de forma erudita, mas precária, fenômenos de fato não compreendidos: negam de certa forma a condição essencial que, no entanto, reafirmam no substantivo que os sucede: pós-moderno, neoliberalismo, paleotelevisão, etc.

          A forma mais degradada e degradante desse estilo, ou da conjunção de todos esses aspectos é, para mim, a da mimese, a do lacaio “mais realista que o rei”, dos subalternos que procuram aderir e se identificar ao dominador, ao ocupante, tentando distinguir-se de seus iguais. Ou como já dizia, num contexto um pouco diferente, há mais de 40 anos, nosso Paulo Emílio: “Rejeitando uma mediocridade, com a qual possui vínculos profundos, a favor de uma qualidade importada das metrópoles com as quais tem pouco o que ver, esse público exala uma passividade que é a própria negação da independência a que aspira”[ii] (o sublinhado é meu).

          Como expressão mesmo dessa subalternidade e mediocridade, a falta de domínio pleno de uma linguagem que já é por si dissimuladora, esquiva, leva às vezes a formulações pouco claras: não expressam idéias coerentes, misturam asserções ou constroem conceitos contraditórios; até mesmo carentes, às vezes, de qualquer conteúdo ou sentido. Creio que uma manifestação divertida, com o devido distanciamento crítico, e mais conhecida sobre tal processo é o Samba do Crioulo Doido, criado em 1968 pelo Sérgio Porto, o velho Stanislaw Ponte Preta. No plano antropológico cultural e artístico, curiosamente, esse processo está presente e sempre deu uma contribuição significativa e peculiar, antropofágica, à formação da nossa cultura: a chanchada que o diga (mas isso é conversa para outra ocasião...). Já no plano político, certamente tem muito a ver com a degradação à moda brasileira dos partidos políticos e movimentos sociais, incluindo o cineclubismo.

          Como o PSD, o novo partido nacional do prefeito paulistano Kassab, também essa tendência do “cineclubismo”[iii], estabelecida em vários segmentos culturais sob diferentes denominações – mas que muitos reconhecem, mesmo que com certa dificuldade - “não está nem à direita nem à esquerda”, muito pelo contrário (expressão que também demonstra e ironiza o que vimos comentando). Ideologicamente, no entanto, ambos estão no campo do tradicionalíssimo liberalismo (que muitos querem novo), no time da “renovação” sempre na ordem do dia para a sobrevivência do capitalismo. À direita, claramente, e em contradição com a própria essência do cineclubismo, que é o associativismo sem finalidade lucrativa, ou seja, a auto-organização do público fora do quadro da economia de... mercado.

A rebimboca da parafuseta para aplicação ideológica (indolor)

          O “conceito” de pós-mercado industrial sustentável é um exemplo bastante explícito de tudo que foi dito acima. Convido os leitores a desconstruir meio rapidinho essa idéia um tanto esdrúxula:

          “Indústria” é uma palavra que se usa com vários sentidos. Hoje em dia se fala até da indústria do artesanato ou das pet shops, o que, aliás, também tem a ver com o exposto de início. Pode-se falar de pós-mercado industrial no sentido estrito de que o que hoje predomina no processo econômico são os controles financeiros, os bancos, e não mais as indústrias, no sentido restrito de instalações fabris. Em mais de um sentido, a hegemonia do capital financeiro identificou, reuniu e controlou os campos da agricultura, da indústria e dos serviços. Mas a expressão é uma liberalidade, que permite mais salientar esse caráter financeiro, tão central na atualidade, do que realmente descrever a superação da indústria fabril (ou da agricultura ou dos serviços), que segue sendo uma força produtiva essencial para a sobrevivência da gente, seres humanos. Pós-indústria, então, e apenas nesse sentido estrito, incompleto e relativo, vá lá. Mas, pós-mercado?

          Não vamos aqui entrar numa discussão mais densa de teoria econômica, o absolutamente óbvio me parece suficiente: o trabalho e os bens e serviços materiais que ele produz se trocam no espaço abstrato denominado mercado, e essa troca é propiciada e mediada por um valor equivalente universal, o dinheiro. Não superamos ainda o mercado, frase que me sinto meio ridículo de ter que enunciar. Pós-mercado, como descrição da realidade contemporânea é uma tolice “de proporções industriais”, como se diz, aparentada àquela teoria do “fim da História” de Francis Fukuyama, antigo assessor de Ronald Reagan. Um verdadeiro “pós-mercado” só seria possível se eliminadas as condições essenciais da sua existência: a divisão da humanidade em classes sociais e a apropriação do trabalho pelo capital - e consequentemente, o dinheiro (mas isso, como a chanchada, também é conversa para outra ocasião...).

          Resta o sustentável. Sustentar tem dois sentidos principais: um, o de garantir as condições de existência e reprodução de alguma coisa, processo ou pessoa como faz, por exemplo, a comida na manutenção da vida de cada um de nós. Outro sentido é o de fornecer essas condições: apoiar com as condições indispensáveis (não acessórias ou complementares: acessório não sustenta), por exemplo, sustentar no sentido do que faz o “coronel” com sua amante. Sustentável, portanto, quando aplicado a organismos culturais – e cineclubes – refere-se à eventual capacidade destes de gerarem, e gerirem, as condições indispensáveis para a sua existência e continuidade. Receber “de fora” seu sustento, no segundo sentido aqui descrito, não é ser sustentável, mas ser sustentado.

          No mercado, como vimos, as condições de sustentação de qualquer atividade dependem da obtenção das condições referidas acima ou, mais usualmente, dos recursos financeiros, do dinheiro para adquiri-las. Bem, o modelo “consagrado” de dependência do Estado que hoje prevalece entre as atividades culturais, incluindo as comunitárias – e nos cineclubes, com a abolição dos associados contribuintes e de qualquer outra forma de contribuição (participação na sua sustentação) – se traduz pela sua sustentação praticamente integral através de recursos concedidos pelos governos, principalmente o federal. Não é um modelo sustentável, mas sustentado. Incapaz de se reproduzir sem o que o Elio Gaspari chama de a Viúva. E mais: é precário, instável, efêmero, como são as políticas governamentais – que no Brasil mal chegam a estatais e estão bem longe de ser públicas.

          É claro que trivialmente se diz que o dinheiro do Estado é dinheiro de impostos, do público. Neste caso se poderia aceitar, mas apenas como eufemismo, uma sustentabilidade “que não dependeria diretamente do mercado”. Essa “sustentabilidade” concedida se daria pela intermediação – entre o público e as entidades - do Estado e dos governos. Ora, o papel essencial do Estado é justamente esse, está mesmo na sua origem e não tem nada de novidade. O Estado existe para intermediar, regular e controlar as relações sociais, entre as classes, sob a aparência de uma “neutralidade” acima dessas classes. E como quase todos sabem, porque é também óbvio, empírico, vivido por quem trabalha: o Estado é controlado pela mesma classe, ou classes, que controlam essencialmente a sociedade. O Estado – e os governos – pela sua própria natureza, apresentam contradições que, em última instância, servem justamente para adequar e permitir a continuidade, no essencial, das relações sociais e econômicas dominantes. Como todos também sabem, um dos aspectos fundamentais desse estado das relações sociais se expressa justamente através do mercado e de sua função “permanente” de compra e venda. Mas o Estado não substitui o mercado. Nem virá um após-o-mercado; são instituições que refletem diferentes níveis das relações sociais: um político, outro econômico. Ser sustentado pelo Estado – ou pelos governos – é uma relação política, e está mais para a relação de dependência conjuntural que é o modelo predominante de gestão da cultura nos países capitalistas mais maduros (nos atrasados não cabe propriamente falar de gestão da cultura). E esse modelo procura neutralizar as organizações do público - dos cineclubes às redes sociais -, transformando-as em empreendimentos geridos segundo modelos de negócio comercial, sob controle e recebendo em troca a “estabilidade” e as facilidades dos favores do coronel...

          Resumindo: pós-mercado industrial sustentável é uma expressão desprovida de qualquer significado real, uma construção ilógica e paradoxal que reúne sentidos contraditórios, propondo exatamente a sustentabilidade na dependência. Mas não é uma mera incoerência, é um artifício ideológico com finalidades definidas, tendo como eixo combater e abolir o caráter associativo e a autonomia da ação política e cultural do público, retendo-o na condição de platéia. Promovendo a ideologia liberal e a perenidade do capitalismo, sustentadas pelo Estado. O mesmo velho esquema, travestido de novidade para este carnaval.

          Note-se que não ignoro também a crença difundida entre muitos adeptos dessas pós-modernidades de que a “revolução digital” superou as relações sociais capitalistas tradicionais, abolindo as classes sociais e a apropriação da produção pelo capital financeiro, abrindo a “inédita” possibilidade de um amplo, democrático e auto-regulado relacionamento entre pequenos capitalistas individuais (ou moderadamente “coletivos”), empreendedores livres num mercado idem, que não seria mais mercado, mas o tal de pós-mercado. Uma espécie de Adam Smith (1723-1790) up to date, um hiperneoliberalismo que se acanha em dizer seu nome. Mas é a mesma, sempre reformada, tautologia: agora, desta vez, acabou (ou promete acabar) a exploração e começa um novo mundo, o melhor mundo possível. E bastou a tecnologia, não tivemos que fazer nada para isso! Não é mesmo confortável? Uma seda... Mas, cá entre nós, se as classes sociais acabaram, os povos grego, português, irlandês, espanhol, italiano... e todos os cadáveres africanos (e os nossos), estão pagando a dívida de quem? E para quem? Os “mercados” – isto é, o capital financeiro (que é a classe dominante principal) - que orientam todos os Estados, selecionam e substituem governantes e operam esta crise mundial, estão sendo superados, vislumbrando uma nova realidade de oportunidades e igualdade para todos? Ou está aí, mais evidente do que nunca, uma camada mínima de superpoderosos internacionais que fazem do mundo o que querem e o, ou nos, estão levando à própria destruição?

          Bom, esse Seda já produziu mais espuma do que se poderia esperar de uma reunião entre amigos no Rio de Janeiro. Que importância concreta, afinal, tem essa discussão aparentemente abstrata para os cineclubes de todo o Brasil?

Práticas perniciosas e modelo anticineclubista

          O demônio me ajude, diante de tanta e tão falsa bonomia! Pois de “colaboração”, “solidariedade” e “tudo-junto-e-misturado” – os argumentos mais usuais e complexos desse discurso sedoso - está calçado o inferno. Tal como o caminho que leva ao abandono das características essenciais do cineclubismo.

          Por que falsa bonomia? Porque, ainda que muitos dos que acreditam nos bordões emocionais desse paraíso sem classes sociais antagônicas o façam sinceramente, movidos por um genuíno sentimento de cordialidade, isso não se aplica às direções, informais, ocultas, promovidas ou acolitadas no Estado, de Foras dos Eixos, PCults, CinesMaisCulturas e outras denominações do mesmo fenômeno que proliferam nos últimos tempos. Porque na hora de combater as idéias e ações discordantes, esses mesmos “capitalistas solidários” não hesitam em se dissimular, afastar, eliminar, retirar condições de sustentabilidade, neutralizar de qualquer maneira toda forma de contestação. Porque seus métodos e práticas políticos, complementarmente a essa eliminação sistemática, são os do entrismo (que já foi discutido nesta lista), da infiltração e solapa das entidades; do uso de posições e recursos públicos para finalidades partidárias; da dissimulação de idéias e projetos.

          A nota que deu origem a esta reação e debate na lista cineclubista ostenta esses elementos. A autoria não ficou clara para a maioria dos leitores, embora o texto original indicasse claramente que se tratava do relato de um diretor do CNC. Que curiosamente não se identifica, não se reconhece e nem coloca o CNC como participante no referido convescote, como também não inclui nem cineclubes nem sua entidade nacional como “protagonistas” desse pós-mercado (deveríamos agradecer...?), embora se lembre até de lan houses, entre outras “aglomerações” (cf. mensagem 25.126, de 1/11/11 na lista cncdialogo).

          Esse mesmo diretor, contudo, assina o projeto da diretoria de Articulação do CNC recentemente divulgado nesta lista (mensagem no. 25.096, de 30/10/11, Planos de Trabalho da Diretoria do CNC – 2010/2012). E aí fica clara essa prática de dissimulação: é um texto imerso nas mesmas concepções do encontro sedoso, que propõe os mesmos princípios de descaracterização e cooptação pelo Estado, e evita a maior parte do tempo a palavra cineclube, substituída (ou “superada”) consciente e cuidadosamente por “coletivos formais”. Isto porque o referido diretor do CNC não acredita em cineclubes. Perdido em meio aos anexos da comunicação do CNC, parece que ninguém o leu (embora a diretoria afirme ser fruto de profundo debate, o que me parece realmente inquietante), mas acho o pequeno trecho - aqui reproduzido em nota de rodapé - bastante revelador[iv].

          Mas já falamos disso tudo antes, o tema “Fora do Eixo e quejandos” foi bastante discutido nesta lista como bem sabem os atentos leitores. Ainda que nunca seja demais lembrar e denunciar práticas políticas antiéticas, elas não constituem propriamente novidade em nenhum movimento social. Também não há nada de inédito na polêmica, mesmo a mais acerba, entre concepções, posições, tendências ou práticas dentro do movimento de cineclubes.

          O cineclubismo nasceu do influxo dos movimentos populares anarquistas e socialistas em vigoroso choque com as iniciativas de educação e formação da Igreja ou igrejas – diferenças que se encontram ainda hoje. Dividiu-se entre o envolvimento mais social e um maior compromisso e profundidade no trato com o cinema (de que resultaram tantas instituições cinematográficas: a crítica moderna, as cinematecas, os festivais, a própria teoria acadêmica...). Foi mais exibidor ou mais crítico ou mais realizador. Oscila entre posturas paternalistas e autonomistas; religiosas, crentes, agnósticas e atéias; conservadoras ou progressistas; partidárias, independentes, apolíticas... Já brigamos feio por bitolas, suportes, formas de difusão; não admitimos a ausência do debate mais formal ou experimentamos sarau, poesia e cachaça para estimular as idéias e a identidade dos nossos públicos. Nossas diferenças parecem inesgotáveis. De fato, reconhecemos que elas são parte das características essenciais do cineclubismo, da sua identidade: a diversidade, a experimentação, o inconformismo, a renovação.

          Mas essa diversidade essencial se apóia num eixo comum a todos os cineclubes, em todos os países, em todas as épocas e situações: o caráter associativo e democrático e a prática sem fins lucrativos. Todo e qualquer cineclube se identifica por esse eixo; é sem essas características que qualquer atividade que parece semelhante se distingue e se afasta do cineclubismo. E é desse eixo que os arautos do pós-mercado sustentado pelo Estado nos querem afastar.

Contra o associativismo e a autonomia do público

          Nem mesmo os cinegufs, patética tentativa de cineclubes fascistas na Itália dos anos 30, contestaram o caráter associativo do cineclubismo. Mas os dirigentes do Cine Mais Cultura (que hoje constitui, por notável coincidência a “direção visível” do PCult) proibiram a publicação de um manual cineclubista porque “cineclube tem dono” (ver doc. CineMaisCensura, nos arquivos desta lista cncdialogo). O exemplo que me deu sorrindo, satisfeito e irônico, o gestor do programa de formação de platéias do MINC, foi o do seu próprio “cineclube”: como a lei estabelece que para criar uma associação é preciso ter 3 pessoas (embora qualquer hermenêutica jurídica explique que o sentido da lei é o de associar de forma permanente e crescente todos que têm “interesses comuns” – daí, inclusive, o conceito de comunidade), eles criaram uma “associação”, chamada de cineclube, com 4, uma de lambuja. Daí fica fácil apresentar projetos – de fato virou uma espécie de especialidade do referido “cineclube” - para empresas e editais, “profissionalizando” e sustentando até com uma razoável fartura os donos dessa que, por uma brecha inevitável da lei, é na verdade uma empresa de 4 sócios. É este o modelo dessa tendência, o “cineclube” empreendedor, privado, base do pós-mercado sustentado pelo Estado ou, com sorte (ou parentes na firma), por empresas.

          Outras manifestações, inclusive a proposta (já “aprovada”, sem nem leitura, estou certo, quanto mais discussão) da diretoria de Articulação do CNC, trabalham nesse diapasão – mas em expressões alusivas e elusivas, dúbias, que permitem manipulação. Uma matriz teórica importante, visível, é esse conceito de pós-mercado industrial sustentável, mais desenvolvido no texto[v] de Cézar Migliorin que alguns dos mobilizados de sempre ofereceram pronta e repetidamente na lista.

          Tanto a prática política de ir substituindo sub-repticiamente o termo cineclube, como o costume sedoso de apelar para a unidade “numa boa”, sem questionamentos, evitando chamar atenção para a mistura de cines com prefeituras, com pontos “de vocação audiovisual”, com “experiências populares de audiovisual” e, principalmente, com o empreendedorismo, são as marcas de uma trajetória que começou com o Cine Mais Cultura e Programadora Brasil em 2008, e prossegue com a organização Fora do Eixo, seus cineclubes, sua distribuidora (enquanto a Filmoteca cineclubista não sai do discurso vazio) e sua infiltração e ocupação de espaços em outras entidades. Como é o caso dentro do CNC: agentes infiltrados implantando “necessidades” de superação “dos interesses específicos do cineclubismo” ou inventando carência de “novos canais de relacionamento com outros movimentos e com o Estado” (superação do próprio CNC?), para aprender com quem tem a verdadeira “vivência dos problemas e suas conseqüências” (quem seria?), como diz o documento.

          A busca de “novas formas de coletivos formais”, supõe a superação da “forma” cineclube. É outra maneira de dizer o mesmo, ou apontar para formas em que não é o público organizado quem dá a direção, mas um grupo de amiguinhos empreendedores, acionistas de uma atividade que, fundamentalmente, os sustente. Dessa maneira, já nem importa se a finalidade é lucrativa, no sentido comercial tradicional, ou se é uma atividade cuja “renda” é garantida pelo Estado. O que se estabelece é uma cultura empresarial tipicamente capitalista, o cineclube gerido como um modelo de negócio e bancado pelo Minc, em que o Estado substitui as relações de mercado – que, contudo, são indispensáveis no plano da sociedade capitalista real.

          Evidentemente, isso só pode existir na dimensão muito restrita das atividades amadoras e marginais, “artísticas”, “culturais”. Porque em escala econômica (no capitalismo) só o mercado mesmo, nosso velho conhecido, é capaz de sustentar o modo de produção geral, o cinema de longa metragem, o audiovisual consumido pelas massas, e as ações que penetram em escala significativa no tecido social. Por isso também é que digo que tudo isso é uma teorização igualmente amadora: é a realidade vista a partir do mundinho dependente dos pequenos burgueses produtores de pequenos filmes, pequenos projetos, pequenas visões (com uns talentos no meio, tenho certeza, que cultura não é determinismo absoluto). Mas que, como bons adeptos do capitalismo, não conseguem abrir mão de explorar os outros: o público, claro – e, perversamente, de preferência os em “situação de vulnerabilidade” e outros eufemismos do gênero. O público usado como platéia, reduzido a indicador de “relatórios de audiência” para alimentar a justificativa da necessidade de recursos estatais para esse pós-mercado teúdo e manteúdo.[vi]. E os “direitos do público”, reduzidos à dimensão medíocre do simples acesso, isto é, ao direito de ser platéia e álibi desse pós-mercado sustentável. Sustentável se o público deixar, se for bobo. Mas, nós não somos o público...?

notas________________________________________
[i] http://www.seda.com.br/produtos/seda-pos-alisamento-quimico
[ii] Sales Gomes, Paulo Emílio. 1996. Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra, p. 110-111.
[iii] As aspas vão por conta de que essa tendência não se origina, não reconhece o cineclubismo e nem se propõe a ser cineclubista: é da sua essência mesmo a pretensão de “superar” o cineclubismo.
[iv] Um pequeno excerto do sucedâneo de programa do CNC no capítulo reservado à diretoria de Articulação: “...algumas ações que se fazem prioritárias: 1 – a criação de um “manual” dos modelos usuais de organização de coletivos formais (hum... isto me lembra o Manual do Cineclube vetado pelo Cine+Cultuira...); 2 – a publicidade desses coletivos formais para além dos interesses específicos, inerentes ao funcionamento dos cineclubes, para dar-lhes a dimensão de Movimento Sócio Cultural, extrapolando o caráter corporativo; 3 – criar um canal de interlocução entre os coletivos formais e a sociedade organizada e as três esferas de instâncias governamentais, nos três Poderes (o que são o CNC e as federações, não são esse canal?). São medidas que visam diminuir os gargalos que estrangulam o Movimento, mas que, ao mesmo tempo, poderão prestar relevantes serviços de ações proativas, não só para a formulação de novas propostas como também para solução de problemas nos Programas de Governo, como os experimentados nas relações entre cineclubistas e Cine + Cultura, NPD – Núcleo de Produção Digital, Programadora Brasil e muitos outros, com muito mais chances de encontrar saídas a partir de um diálogo mais estreito com aquelas representações (referência à própria organização Fora do Eixo?) que têm a vivência cotidiana desses problemas e suas conseqüências. Notas e sublinhado são meus.
[v] Por um cinema pós-industrial: www.revistacinetica.com.br/cinemaposindustrial.htm
[vi] Os artigos 7 e 10 da Carta dos Direitos do Público[vi] aqui são convenientemente esquecidos: “7) Público, autores e obras não podem ser utilizados, sem seu consentimento , para fins políticos , comerciais ou outros .Em casos de instrumentalização ou abuso , as organizações de espectadores terão direito de exigir retificações públicas e indenizações; 10) As associações de espectadores reivindicam a organização de pesquisas sobre as necessidades e evolução cultural do público .No sentido contrário , opõem-se aos estudos com objetivos mercantis, tais como pesquisas de índices de audiência e aceitação .”