terça-feira, 25 de outubro de 2022

 

Ushers (lanterninhas) em formação 
Com uniforme e em formação "militar",
responsáveis pela ordem no cinema
E uma enfermeira, se precisar...

 

O terceiro turno e os cineclubes

 

O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro

 

O título do filme icônico de Glauber Rocha serviria bem para enquadrar a situação que vivemos neste segundo turno das eleições presidenciais no Brasil. Estamos diante de uma perspectiva de horror, representada pela possibilidade de reeleição do criminoso psicopata Bolsonaro: o Dragão da Maldade. Isso nos levaria a uma destruição tão grande das chamadas instituições republicanas e das estruturas administrativas ligadas à educação, à ciência, à cultura, ao meio ambiente e à segurança dos setores eufemisticamente denominados de vulneráveis, que ou implantaria de forma mais estável um já esboçado regime fascista à moda contemporânea ou, mesmo que essa fase fosse depois superada, ainda deixaria um monte de escombros sobre o já arrasado solo social brasileiro:  uma condição de atraso e dependência que levaria gerações para ultrapassar, ou pior, que poderia até se tornar nosso modo permanente de existir. No lado oposto temos um herói popular: Lula, o Santo Guerreiro que, independentemente de qualquer crítica que possa lhe ser feita, representa a única possibilidade de determos esse processo destrutivo já iniciado e de retomarmos uma trajetória de reconstrução institucional e social. Estamos diante de uma encruzilhada de alcance histórico inigualável.

 

No entanto, por mais vital, como de fato é essa decisão, seu resultado não altera – na melhor das hipóteses atenua - uma condição essencial do Brasil: sua subalternidade em relação ao capital internacional e a exploração sistemática, estrutural e histórica, assim como a exclusão da grande maioria da sua população dos mínimos benefícios permitidos pela evolução das condições de vida em nossos tempos. Só uma verdadeira revolução – política, social e econômica - mudará a essência dessas condições. Por isso, este texto não tratará dessa escolha imediata, mas do que nos espera no momento seguinte ao resultado das eleições. E daí para a frente.

 

A sobrevivência dos mais fracos

 

No Brasil, a conhecida cesta básica equivale – segundo levantamento recente do DIEESE – a 60% do salário mínimo. Os aluguéis mais baratos estão mais ou menos nessa mesma proporção, ou pior. Só essa soma, necessária, mas insuficiente para a sobrevivência, já ultrapassa o mínimo. Ainda segundo o instituto intersindical, uma família de 4 pessoas necessitaria de, pelo menos, 5,39 salários para viver. Ora, entre desempregados, trabalhadores informais e todas as demais categorias, cerca de 70% da população brasileira ganham menos que um salário mínimo. Uma parte considerável não consegue sequer comida suficiente, metade da população não tem esgoto e um contingente muito significativo não tem sequer acesso regular a água potável. Mais de 30 milhões passam fome! É o tamanho da população do Peru, por exemplo.

 

Essa grande maioria cuida, basicamente, de sobreviver. Numa sociedade moldada pelo passado recente de escravismo (cerca de 400 anos) e, posteriormente, das ditaduras (mais quase 40 anos), ao todo resta-nos menos de um século de “liberdades democráticas” temperadas de privilégios, preconceitos e exclusão. As maiorias – mulheres e negros, por exemplo – e outros segmentos de brasileiros, junto com aquelas, ainda têm sua situação definida, e piorada, em função de características de gênero, de raça, ou segundo heranças e opções culturais e comportamentais.

 

O Brasil – os dois terços da população que praticamente definem o que é este país - vive na miséria. Segundo o dicionário: um estado de carência absoluta de meios de subsistência. Miséria também é um estado de alma: uma situação permanente de indigência, de penúria, acompanhado de enorme sofrimento, infelicidade, desgraça. A luta pela sobrevivência em seus níveis mais básicos não favorece o tirocínio ou o juízo moral: as opções éticas e a compreensão da vida social tendem para as escolhas que permitam a alimentação, o abrigo, a segurança. Ou, em muitos casos, apenas a ilusão desse abrigo e segurança. Ainda mais: os que escapam desses limites também estão presos na instabilidade de sua condição – as fronteiras de pobreza no Brasil oscilam conforme os governos e os ciclos econômicos – e apresentam esse perfil ideológico de medo da pobreza que, como bem definiu Paulo Freire, favorece uma espécie de consciência necrófila, transformando a frágil superação da condição de oprimido pela necessidade de, por sua vez, reproduzir a opressão. A base social mais ampla da psicopatia bolsonarista se enquadra nessa explicação freiriana.

 

Mas a grande maioria não está sequer nessas regiões limítrofes, e sim nas situações mais graves de carência. A miséria, a luta diária pela sobrevivência básica, também trazem uma dificuldade extrema de formular um projeto próprio de emancipação, de poder compreender, ter consciência de seu papel na sociedade complexa e na história. A luta pela sobrevivência, com alguma frequência, vira competição; e esta facilita, empurra ao crime.

 

Tanto para Freire como para Gramsci, a consciência de classe é um processo em relação constante com práticas de luta social; elas é que constroem a hegemonia de valores contrários à exploração do trabalho, de emancipação e de solidariedade. A definição de uma nova ordem social e moral se dá no próprio processo da sua construção. É na luta que aponta para, ou resulta em novas formas de relação social e na construção de instituições, isto é, de formas de organização, de valores morais, comportamentos e normas com que vão se tecendo as bases e a estrutura uma nova sociedade, com novas formas de convivência entre as pessoas, de administração e distribuição da produção, de definição de valores e projetos para o futuro da humanidade.

 

A condição miserável de grande parte da população brasileira, assim como sua herança histórica de exclusão e exploração extremas não facilitam a tarefa de compreensão e construção de novas instituições, de uma nova sociedade. É mais difícil pensar em deter a destruição do planeta quando não se tem água para beber, ser solidário quando se buscam restos de comida (e, no entanto, exemplos de solidariedade são tão comuns entre os que pouco têm). Por isso podem florescer as crenças que situam a felicidade num mundo imaginário, místico e sempre por vir, iminente mesmo. Mas que, na verdade, nunca chega.

 

De fato, a crença religiosa – e o milenarismo que acompanha as seitas de maior sucesso no País, nos últimos anos – é muitas vezes uma forma de descrença, de desânimo, de abandono da esperança no real. Descrença nas possibilidades de gerir sua própria emancipação no mundo real, remetendo-a ao plano do divino. Algumas igrejas, constituídas como grandes corporações, e mesmo como partidos políticos (próprios ou ocupados em alguma medida), oferecem interpretações da esfera divina para as opções materiais, sempre conservadoras no plano das relações sociais e reacionárias no campo da economia – o que é a antítese das necessidades da população e mesmo dos princípios de fraternidade, paz e justiça que constituem o discurso e as crenças não apenas do cristianismo, majoritário no Brasil, mas de todas as religiões.

 

Nossa miséria também se reflete nas características da classe dominante, dependente por sua vez do domínio e controle das classes dominantes do “primeiro” mundo: aquele que vem antes, tem a primazia, detém a hegemonia real. Nossa classe dominante também não tem perspectiva de futuro e limita-se a posturas predatórias e oportunistas, violentas e cruéis, cujos exemplos recheiam nossa história. O oportunismo estrutural das “elites” brasileiras também é uma forma de descrença e de desânimo, mas marcadas pela adesão confortável ao mais forte, ao governante, ao estabelecido.

 

As eleições, as ruas e o cotidiano do proletariado

 

A formação das classes subalternas criadas com o capitalismo, nos países centrais inicialmente, foi marcada pela superexploração, pela violência e por níveis de miséria e fome que não são nada estranhos à experiência de seus equivalentes na população brasileira contemporânea. O proletariado foi expulso do campo, concentrando-se nas áreas urbanas, juntando-se a outros pobres como massa disponível para o trabalho fabril – que caracteriza o capitalismo sobretudo do século 19 – e para a prestação de serviços à burguesia e seus servidores mais aquinhoados. Reunidos em grandes contingentes nas fábricas, convivendo e partilhando uma mesma condição – e sendo, ao mesmo tempo, a base principal da formação do capital - o operariado se tornou uma força política e formou a vanguarda política dos segmentos populares. Durante mais de um século, foi essa vanguarda que conduziu as lutas e as maiores conquistas das classes trabalhadoras, entre elas a grande revolução que deu origem à União das Repúblicas Soviéticas.

 

Depois da 2a. Guerra Mundial outros segmentos também tiveram um protagonismo mais decisivo: os camponeses na constituição da República Popular da China, e muitos setores populacionais unidos em revoluções anticoloniais e socialistas na África, principalmente, mas também na Ásia e na América Latina.

 

Os últimos 50 anos, no entanto, estão marcados pela acumulação de experiência pelo Capital no enfrentamento – e, em muitos casos, neutralização - daquelas lutas; pelo desenvolvimento das forças e dos processos produtivos, com o estabelecimento sempre crescente da hegemonia do capital financeiro; pela expansão geográfica e vertical do sistema, com a derrocada do sistema soviético e, mais recentemente, pela revolução digital, afetando não apenas a produção, mas resultando na criação de sistemas planetários de comunicação e transmissão de dados, valores e controles sociais.

 

As classes trabalhadoras não lograram progressos significativos em sua emancipação neste último período. Ao contrário, houve um recuo bastante generalizado nas principais instituições criadas – e nos direitos conquistados - pelas lutas dos trabalhadores, especialmente em seus partidos políticos, sindicatos e outras organizações e movimentos sociais. O proletariado não deixou de lutar com as mesmas disposição e intensidade a que a própria vida o obriga, mas encontra-se enfraquecido e desorientado. Muitas de suas manifestações não têm coerência de propósitos (como o Occupy Wall Street, por exemplo) e se esgotam sem objetivos concretos; outras não conseguem unidade nos objetivos, como os Coletes Amarelos na França, e muitas já não mobilizam a maior parte dos que seriam interessados. Na América Latina temos ondas que se entrechocam, de avanços e recuos políticos que, no entanto, não estabeleceram até agora mudanças mais duradouras.

 

O Brasil tem uma história própria, dependente, e construída com relativamente menos protagonismo popular que o das nações mais avançadas do sistema. Mesmo assim criou uma sociedade civil forte o bastante para, no período referido, derrubar a ditadura. Grande e significativa vitória, mas não o suficiente para construir uma democracia vigorosa ou estável. E mesmo essa sociedade civil comparativamente frágil também experimentou o refluxo e o enfraquecimento de suas instituições. O Partido dos Trabalhadores, que foi uma espécie de cume da fase de avanço popular, não conseguiu apontar caminhos realmente sólidos, indispondo-se logo de início com a Constituinte – o outro ponto alto das lutas populares e democráticas –, e paulatinamente adaptando-se às exigências e costumes da via político-institucional à moda brasileira, enfraquecendo as bases populares organizadas e mesmo comprometendo seu próprio prestígio. Seus governos, de conquistas significativas – de fato, os melhores de toda a nossa história republicana -, ao mesmo tempo não ajudaram a organizar os trabalhadores nem estabeleceram instituições sólidas sob o controle das maiorias. Outros partidos, como o histórico Partido Comunista, se desconjuntaram: uma parte substancial simplesmente aderiu, transformando-se em complemento de partidos liberais ou ainda mais à direita, e uma pequena parte busca uma recomposição partidária e ideológica coerente, mas sem conseguir superar, ainda, a irrelevância política e social. O PCB de hoje divide esse espaço de isolamento com outros partidos nanicos: PSTU, PCO, UP. A cisão dos anos 60 do velho Partidão, o PCdoB, é mais importante que esses no campo parlamentar, mas também é mais uma força auxiliar do PT do que uma agremiação partidária com propostas claras, além das que se referem ao aparato político institucional. O que Gramsci, em referência a Maquiavel, chamava de “príncipe moderno”: o intelectual coletivo capaz de conduzir a construção e estabelecimento de uma nova hegemonia, é no Brasil um conjunto de forças ainda muito dispersas e que sequer conseguem estabelecer uma unidade operacional numa eleição como a que estamos vivendo. Essa unidade, aliás, teria dado à classe trabalhadora a vitória no primeiro turno das votações.

 

Essas chamadas esquerdas, contudo, constituem o patrimônio e a expressão concretas da organização do proletariado brasileiro real (constituído por uma grande maioria de desempregados e subempregados, além dos trabalhadores mais “tradicionais”, se cabe a expressão). Elas ajudaram a criar e a manter as perspectivas políticas dos trabalhadores limitadas atualmente ao campo eleitoral e às “ruas”, isto é, passeatas e comícios. Isso não deixa de ser um reflexo de uma crescente ausência das esquerdas nas organizações e instituições populares. De fato, nestas eleições, a ausência da apresentação de programas e, especialmente no segundo turno, a aceitação do estilo fascista imposto pelo bolsonarismo, com intrigas e difamação, é mais um indício claro da incapacidade de realmente organizar a participação popular no processo político. No plano ideológico – e, exemplarmente, nas chamadas mídias sociais – a vantagem da direita (que, note-se, costumamos designar no singular...) ou, no mínimo, do seu estilo e de suas pautas, parece evidente.

 

Como votar com consciência política, social, histórica, se essa discussão não é a principal da campanha eleitoral? E mais, se mesmo essa questão, quando muito, só aparece na campanha eleitoral, a mais curta da história recente? As ruas, por sua vez, foram crescente e nitidamente melhor aproveitadas pelos setores reacionários. O carisma fascista do Führer, do Duce ou do Mito; a apropriação muito bem sucedida dos grandes símbolos nacionais (bandeira, suas cores, a própria Seleção de futebol), além do uso escancarado das instituições e dos recursos públicos (em certos casos, até com a anuência das esquerdas parlamentares) mostraram-se, em geral, mais eficazes – ainda que traficadas - para mobilizar maiores e/ou mais visíveis manifestações nas ruas, sem que a contestação das múltiplas ilegalidades do processo tenha conseguido mostrar a mesma efetividade.

 

As instituições geradoras de valores, os aparelhos de hegemonia, segundo Gramsci - dos partidos políticos aos sindicatos, das associações de bairro e de movimentos sociais aos cineclubes -, foram em grande parte abandonadas, ou desprovidas de muitas de suas práticas e atribuições pelas esquerdas, pelas vanguardas políticas, sociais e culturais. O convívio nas organizações proletárias e populares, a construção coletiva da identidade de classe (da qual faz parte essencial a compreensão da importância das questões raciais, de gênero e outras, como também da defesa do planeta) nas práticas e lutas do cotidiano foi deixado sobretudo às igrejas mais conservadoras, que se dedicaram a isso com afinco. E às mídias, que também intervêm profundamente na vida diária de todos. É inclusive exemplar como essas duas coisas se somam: proselitismo religioso e mídias audiovisuais.

 

Proletariado ou público

 

Ao mesmo tempo que o proletariado se expande, com o assalariamento dos trabalhadores do campo ou com a proletarização de setores médios, por exemplo, o papel central do segmento operário e fabril diminui comparativamente em importância. No Brasil, com a desindustrialização; no mundo todo, com o crescimento da automação e o aumento do setor de serviços.

 

Tal como o ambiente da fábrica, os espaços comunitários – com exceção, claro, dos estabelecidos pelas igrejas, especialmente as evangélicas – também perdem relevância, em boa medida para as mídias, que substituem o convívio direto pela interação virtual e automatizada. É unânime a consideração de que as mídias hoje constituem os principais veículos de comunicação, de formação e de socialização, em seus espaços cada vez mais “íntimos”, regulados por sistemas automáticos organizados para a produção de informação para os donos dos meios de produção: o Capital, a classe dominante. Embora existam iniciativas de resistência, elas são extremamente minoritárias. A própria estrutura das plataformas em que estão instalados esses espaços virtuais é concebida para se apropriar e, na maioria dos casos, neutralizar ou cooptar essas iniciativas, especialmente as de maior público, através de sua monetização.

 

O outro aspecto essencial desse sistema é que sua produção de lucro se dá pela venda de dados de seus consumidores a anunciantes – os metadados -, num processo cumulativo ininterrupto de coleta de informações as mais diversas: de interesses e hábitos de consumo, de locomoção, mas também financeiros, de saúde e muitos outros. Com isso, o Capital pode cada vez mais aperfeiçoar e sintonizar sua comunicação com esse público, com esses consumidores, esse proletariado expandido. Além desse controle das informações sobre as necessidades e anseios do público, os mesmos dados servem para o controle político e social, e para a repressão mesmo, no que hoje se chama de “capitalismo de vigilância”.

 

As maiores corporações do mundo se apropriam dos dados de todos que frequentam suas plataformas – Google, Facebook, YouTube, Netflix, etc. - ou que adquirem seus produtos – Apple, Microsoft, Amazon – ou, em muitos casos, as duas coisas juntas. Esses dados das vidas de todos e de cada um são, por direito, privados. De fato, definem a própria privacidade no campo das relações sociais contemporâneas. No entanto, eles são apropriados sem nenhuma compensação, sem autorização e sem controle por parte do público. Essa apropriação é muito semelhante à da mais-valia, do sobrevalor produzido pelo trabalho que não é restituído integralmente ao trabalhador, mas apropriado pelo capitalista que o emprega. Por isso, vejo uma identidade crescente entre o conceito de público – receptor e consumidor de todas as mídias – e o proletariado, isto é, o conjunto de assalariados e outros dependentes do capital. Em ambos os casos estamos designando uma mesma população, que tem como característica principal não ter a propriedade dos meios de produção: hoje tanto os de sua própria vida material, como também do seu imaginário, da sua vida no campo simbólico – ou espiritual.

 

As mídias audiovisuais (e o cinema)

 

Sem me estender muito sobre as reviravoltas etimológicas da palavra meio (de comunicação), lembro que ela veio do latim (medium, plural media), assim passou para o inglês e, através da pronúncia macarrônica do plural naquele idioma, voltou para nós e acabou sendo abrasileirada como mídia ou mídias. A ideia de meio - uma maneira, um sistema, um suporte, um veículo ou aparelho - de comunicação não se limita, como costumamos empregar, aos meios mais modernos ou mesmo audiovisuais de comunicação. A escrita é um meio de comunicação. De fato, o meio de comunicação mais básico e essencial é a fala: um meio que utilizamos com extensão e sutileza que nos são exclusivas; constituem uma das principais características distintivas da espécie humana entre todos os animais.

 

Embora a fala pudesse ser incluída num campo do áudio, e muitos meios de comunicação sejam também visuais – a pintura, a fotografia, mesmo a escultura –, convencionamos chamar de meios ou mídias audiovisuais os que envolvem recursos técnicos definidos, principalmente mecânicos e eletrônicos, em sua criação e uso. O cinema, que como sistema de captação e projeção de imagens (ainda sem som) se consolida no final do século 19, e que, no final dos anos 20 (um pouco depois do uso generalizado do rádio) passa também a reproduzir o som, pode ser considerado a base do paradigma audiovisual. Em boa medida, outros meios audiovisuais já estavam em desenvolvimento ao mesmo tempo que o cinema: o rádio e outras formas de reprodução e transmissão do som, e mesmo a televisão, que só vai se tornar predominante depois da 2ª. Guerra Mundial.

 

A evolução técnica experimenta um salto qualitativo com a introdução da tecnologia digital, que redefine a produção, difusão e consumo, ou recepção, dos meios audiovisuais mais ou menos um século depois da “invenção” do cinema. Penso que poderíamos falar em duas revoluções: uma começando com o cinema (cujo desenvolvimento é bem anterior, desde a invenção da fotografia, ou mesmo antes), na última década do século 19, e outra, a digital, com generalização dessa tecnologia e a constituição da rede mundial de computadores. Mas o paradigma audiovisual, enquanto tal, começa e se define com o cinema.

 

Todo meio de comunicação implica numa linguagem, na verdade linguagens: diversas variações e evoluções do modo de expressão do meio. É nesse sentido, principalmente - pois há outros - que o cinema estabeleceu o paradigma audiovisual. É sobretudo em torno da expressão da realidade em imagens e movimento, que o cinema inaugurou, que se constituem as variações derivadas: na televisão e em outras telas, isto é, sistemas de captação e reprodução das imagens e sons. Na verdade, em muitos níveis, todas as formas de expressão e comunicação, todos os meios, se influenciam mutuamente todo o tempo, e têm suas raízes numa mesma capacidade ancestral dos seres humanos de se comunicar, determinada pela sua vida social e pela habilidade em transformar a natureza (e, assim, a si próprios).

 

Povo, proletariado e público

 

De certa forma, sempre existiram públicos: desde que os homens se comunicam em suas comunidades. Mas hoje, quando falamos em público, estamos nos referindo aos públicos do nosso tempo. De fato, com a generalização quase absoluta dos aparelhos digitais conectados numa rede planetária, o público contemporâneo praticamente se confunde com o conjunto da população da Terra. Público também remete à ideia de ser público de alguma coisa, isto é, de um espetáculo de qualquer tipo, mas também, em outros níveis, das mídias: o público leitor, público de cinema, de televisão, etc. Até chegarmos ao público total, esse que chamei de público contemporâneo, que se confunde com a ideia de povo, de proletariado.

 

E por que essa identificação? Porque se o público é sempre público de alguma coisa, seu papel social ainda seria, num certo sentido, dependente, subalterno a quem produz aquela “alguma coisa”: o espetáculo e os outros produtos industriais (livro, cinema, televisão, internet, etc.). Como o proletariado, como já foi dito anteriormente, o público não detém os meios de produção daquilo de que é público.

 

Mas a coisa é mais complicada. Ou dialética. Ainda que ocupe essa posição formalmente subalterna, as mensagens, os sentidos de que o público é público, se constituem socialmente através e apenas através de sua adoção ou apropriação pelo público. Como já demonstrou Bakhtin, os sentidos variam o tempo todo, não numa relação dualista, tipo emissor-receptor, mas numa espiral de interação permanente, que não tem começo, não tem um lado principal: o emissor de uma mensagem (ou de um enunciado, como diria Bakhtin), dos sentidos nessa mensagem, já é produto de um repertório constituído; e sua mensagem e sentidos serão reconstituídos e ressignificados pelo interlocutor, ou pelo público. Esse é um processo permanente, que varia também segundo os contextos históricos e sociais, em ambientes de classe, de território, etc. De certa forma, como todos os participantes nesse processo – receptores/emissores/receptores - estão inseridos num público geral, podemos dizer que o público não é apenas o público de alguma coisa, mas o sujeito dialético, o autor em última instância daquilo de que é, também, público. E, como o proletariado, que não detém os meios de produção, mas é o produtor real e concreto de toda a riqueza, o público é o criador, o autor de todos os sentidos. O público é, na atualidade, a expressão no campo simbólico do que o conceito de proletariado exprime nos campos econômico e social.

 

Público, proletariado, cinema e as mídias audiovisuais.

 

Esse público geral ou contemporâneo a que já me referi, especificamente nessa acepção se constitui inicialmente com o advento do cinema. Em sua formação e consolidação, o cinema formou (ou, de fato consolidou, a história é mais complexa) um público de um novo tipo. Um público muito mais amplo do que outras mídias tiveram anteriormente: pela primeira vez mulheres e também crianças foram parte importante, e às vezes, numericamente maiores que outros segmentos na frequentação desses espaços públicos. Esse público surge com o cinema e, sem ele, o cinema – todo o dispositivo econômico e social – também não existiria. São duas faces da mesma moeda.

 

O cinema também é parte da chamada modernidade: uma etapa do capitalismo que alguns chamam de segunda revolução industrial (especialmente no século 19 e sobretudo entre 1870 e 1920), com a confluência de diversas inovações tecnológicas nos transportes (estradas de ferro, aviação), nas comunicações, transformando o próprio ritmo da vida urbana. O cinema foi o dispositivo mais importante entre outros que também caracterizam essa modernidade, como o fonógrafo, o telefone e outros. O proletariado se consolida na mesma época, no mesmo contexto e no mesmo processo. O público de massa inicial do cinema era especificamente de trabalhadores e imigrantes pobres (na segunda década do século 20 se expande ainda mais, assimilando as classes médias).

 

Se o cinema foi muito importante naquela fase do capitalismo, seu papel já evoluiu no pós-guerra com a televisão e, no final do século, com a internet. Atualmente, as mídias ampliam e redefinem o papel do cinema e o conceito de público. O público continua sendo a expressão do proletariado no plano do simbólico, mas ambos mudaram. De fato, a transformação das formas de trabalho – em boa medida devido à revolução digital – é uma das grandes características do tempo que estamos vivendo. Muitas formas de produção, inúmeras profissões, diversos ofícios estão desaparecendo, ou sendo profundamente transformados e reorganizados. A revolução digital não acabou; as revoluções não “acabam”, mas diluem-se e se integram a uma nova situação, com suas próprias condições a serem, por sua vez, superadas. Hoje a mídias não são apenas importantes, no sentido que o cinema inicialmente instituiu: agora elas penetram, interferem e interagem, de forma inaudita e própria, na vida de todos e de cada um. Em escala muito maior e numa proximidade, numa intimidade, poderíamos dizer, inédita. E é nesse campo, hoje o mais importante, que a direita, mesmo que superficialmente, parece ter uma dianteira.

 

E os cineclubes?

 

Os cineclubes não surgiram nos anos 20, como afirma quase que um consenso – no entanto desinformado e equivocado -, mas junto com o cinema, no processo de luta pela apropriação dos sentidos produzidos pela nova linguagem, na afirmação da nova mídia. À medida que o público se formava (processo que se consolida por volta do final da primeira década do século 20), também evoluíam suas formas de resistência ao cinema que se organizava para dar mais lucro e melhor entreter e controlar as massas que ele, ao mesmo tempo, ajudava a formar.

 

Descontente com um cinema que, em síntese, representava sua alienação e dominação, uma parte importante do público resistia a procurava formas próprias de organização como sujeitos, protagonistas do processo de produção do dispositivo do cinema. Insatisfeitos com os filmes que lhes eram apresentados, grupos (sobretudo de militantes socialistas, anarquistas, feministas) produziam seus próprios cinejornais, documentários e mesmo ficções, e alugavam salas, ou usavam as das organizações de trabalhadores, para sua apresentação. Também no final da primeira década do século, consolidam-se iniciativas do tipo que hoje reconhecemos como cineclubes: com estatutos democráticos e salas próprias e mais permanentes de exibição, além da produção de filmes. Essa luta criou o que chamo de paradigma cineclube: uma organização exemplar - uma instituição, constituída inclusive juridicamente - para a apropriação do cinema de forma coletiva e democrática, não capitalista. Essas mesmas características se encontrarão reproduzidas em todas as outras formas de organização em torno do cinema – e hoje no campo mais amplo das mídias audiovisuais - que têm origem no público, e não na estrutura industrial, capitalista, do cinema e das mídias audiovisuais.

 

Nos anos 20, o cineclubismo, como ideia de organização integral de apropriação do cinema pelo proletariado, se fragmentou, dando origem a várias instituições: o cinema educativo, o cinema amador, os festivais e arquivos de filmes, e mais tarde (já nos anos 50) o ensino universitário do cinema.

 

A fragmentação do primeiro modelo de cineclube deu origem a uma forma nova e dominante de cineclube: uma organização limitada em grande medida à recepção dos filmes. A cinefilia, ou a recepção crítica do cinema, herdou parte da tradição já estabelecida: a organização coletiva, democrática e a ausência de finalidades comerciais. Ela teve importante papel na disseminação e mesmo na constituição de uma cultura cinematográfica, em boa parte crítica, nos mais diferentes países. Mas também elitista e paternalista, muitas vezes calcada na valorização absoluta do autor e, em contraposição, numa visão paternalista e até preconceituosa em relação ao público. De certa forma, estabelecia um modelo hierárquico, estamental ou de castas: havia o autor, objeto de culto; o cinéfilo, especialista, esclarecido, e o público, ignorante, a ser dirigido, “alfabetizado”. De qualquer forma, esse modelo cinéfilo se expandiu por praticamente todo o mundo, sendo talvez o principal instrumento de formação de culturas cinematográficas – marcadamente nos países periféricos, como o Brasil – contraditórias: ao mesmo tempo críticas e progressistas, mas simultaneamente elitistas, e concentradas nos ambientes intelectuais e universitários.

                                                                                                                   

Com a televisão e outras formas de reprodução da imagem em movimento - VHS, DVD, etc. -, que hoje podemos situar como prenúncios da revolução digital, aquele modelo da cinefilia entrou em processo de crise. De fato, todo o dispositivo social do cinema entrou em crise. O cineclubismo, em primeiro lugar, diminuiu enormemente nos países centrais (anos 50); e um pouco mais tarde, na periferia do sistema. Na América Latina, as ditaduras dos anos 70 e 80 interferem de forma diferenciada nesse processo. O Brasil, particularmente, teve um movimento cineclubista bastante atuante até a segunda metade dos anos 80 e importantes cineclubes “independentes” até os anos 90. De toda maneira, os muitos cineclubes que ainda existem em todo o mundo baseados naquele modelo cinéfilo, limitado à exibição e debate de filmes considerados especiais ou mais relevantes, constituem o que Raymond Williams chamou de formas residuais de cultura: práticas que já não correspondem aos interesses e necessidades do público contemporâneo e apenas refletem modos e formas, em grande parte superados, de organização da comunicação pelo que chamamos de “imagem em movimento”.

 

Isso porque o cinema morreu, metaforicamente. Apenas de certa forma, claro, é preciso frisar. O cinema – na verdade o filme de ficção ou documentário (excluindo todas as outras formas de cinema) exibido em sala escura para um grupo de espectadores relativamente pequeno – já não é o formato ou o espaço mais relevante, nem economicamente nem quanto à participação do público. O espaço simbólico disputado pelos setores populares é o espaço das mídias: a televisão, o computador, os celulares. O modelo cinéfilo não (se) dá conta das mídias, não integra as mídias. O cineclubismo – como outras instituições geradoras de valores, outros aparelhos de hegemonia – corre o risco de morrer, como o cinema “morreu”. Ou definhar numa relativa irrelevância cultural e social, limitado a públicos muito reduzidos e a setores da sociedade que não são tão fundamentais nem para o próprio cinema nem para a transformação da sociedade. É preciso um novo tipo de cineclube, para novos tempos e novos desafios.

 

O cineclube no terceiro turno (no Brasil e no mundo)

 

Os cineclubes em todas as suas formas – o cineclube revolucionário do início do cinema; o cineclube da cinefilia que se espalhou por todo o mundo; o cineclube educativo que se disseminou pela educação formal e informal; os clubes de cinema voltados para a produção amadora, entre vários outros – influenciaram, em maior ou menor grau, a cultura e a sociedade nos diversos países e contextos em que existiram. Na análise que fiz mais no início deste artigo, falei da necessidade absoluta de instituições sociais e comunitárias que organizem, representem e deem expressão aos trabalhadores, à grande maioria da população brasileira. Um novo tipo de cineclube deve ter a capacidade de ser uma dessas instituições. E acredito que o cineclube pode realmente ter esse papel e uma importância fundamental nestes tempos de centralidade das mídias audiovisuais.

 

Para isso, o primeiro e indispensável passo é o reconhecimento e superação do isolamento de classe do cineclubismo. Esse fenômeno não é brasileiro, mas mundial. Sua forma é que tem características próprias. E estas não se devem exclusivamente – e talvez nem principalmente – aos animadores dos cineclubes existentes. Em boa parte, explicam-se pela própria estreiteza de muitos setores populares, naquilo que Francisco Foot Hardman chamou de “estratégia do desterro”: uma desconfiança anti-intelectual, uma espécie de “purismo de classe” que apenas revela a permanência de uma incapacidade de interagir e dirigir setores mais amplos da sociedade – condição necessária para construir uma nova hegemonia. Nos cineclubes que ainda operam sob o modelo cinéfilo, mas que não satisfazem, de alguma forma, seus integrantes, é necessário ter a capacidade de reconhecer a realidade: que não conseguem reunir um número significativo frequentadores, são incapazes de manter uma atividade mais intensa que as poucas exibições mensais ou quinzenais, ou que, nos espaços virtuais, atingem ainda menos pessoas. Intelectuais, professores, estudantes universitários e cinéfilos que não habitam torres de marfim precisam procurar as organizações populares para nelas e com elas construírem cineclubes. As escolas de ensino básico e médio – através dos seus professores e alunos - devem se articular, integrar e atuar conjuntamente com as organizações comunitárias de seus bairros e cidades. Os sindicatos, associações comunitárias e movimentos populares precisam também, por sua parte, procurar educadores, intelectuais, artistas e técnicos progressistas, ligados às causas e projetos populares, para ajudarem a organizar e manter cineclubes em suas sedes, ocupações, acampamentos, e formar, num espírito solidário, não paternalista, os cineclubistas desse novo tipo. Também é necessário inventar e expandir o modelo de organização e ocupação de espaços: cineclubes podem ser instalados nas proximidades de igrejas, quartéis, e outras instituições que atraiam ou reúnam grupos normalmente afastados ou excluídos de formas de entretenimento mais crítico ou de formação mesmo. E mais, cineclube não é uma atividade eventual, um encontro cultural mensal: nesta época de presença permanente e ubíqua dos celulares, o cineclube deve ser uma organização complexa, que também esteja presente na dimensão cotidiana e virtual do seu público.

 

Uma revolução, entretanto, no seu sentido mais pleno, não é feita por entidades culturais ou educacionais. Certamente também não é resultado de eleições, especialmente da forma como são realizadas hoje no Brasil e em outras “democracias ocidentais”. São muitos os exemplos – e os nossos são bem recentes – de governantes progressistas eleitos e logo derrubados pela violência fascista (Salvador Allende, no Chile) ou por ardis “parlamentares”, como aconteceu com Fernando Lugo, no Paraguai, e com Dilma Roussef no Brasil – ou pela combinação dos dois, como com Evo Morales, na Bolívia. Mas também não acontece “nas ruas”, exceto em estágios muito avançados de luta, quando esse tipo de manifestação é geral, avassalador, impossível de ser detido. Mesmo assim, geralmente isso acontece em combinação com outras ações – sobretudo a greve geral. A mobilização para uma transformação radical da sociedade precisa ser conduzida por uma direção política capaz de liderar a edificação das novas instituições que vão constituir uma nova sociedade. Essa força de mobilização ampla e radical e a capacidade de formar uma direção experiente e capaz é produto da combinação necessária de todos esses níveis de ação e organização. Cada um deles é essencial, mas só em conjunto podem produzir uma transformação radical e plena.

 

No Brasil é bem evidente a falta – e como já disse, o recuo histórico – de instituições culturais e formativas. Mas não falo das que querem ensinar alguma coisa ao povo ou ao público, que querem transferir uma cultura decorativa, pretensamente apolítica, inócua. As organizações que nos interessam aqui precisam estar do lado da grande maioria da população, da classe trabalhadora, e desenvolver com esse público, coletivamente, um projeto de emancipação. Não me canso de lembrar do Cinema do Povo, criado na França em 1913, e que propus fosse considerado “o primeiro cineclube”, devido à documentação bastante completa que mostra essa condição. Seu lema, válido até hoje – mais de um século depois - para os cineclubes engajados nas causas populares: “Divertir, instruir, emancipar”. É preciso atuar nessas três instâncias.

 

O cineclube de novo tipo

 

Com a crise, que já mencionei, do modelo predominante de cineclube, o cineclube cinéfilo, várias de suas características passaram a se desestruturar. Creio que o Brasil, pelas muitas vicissitudes que este artigo já mencionou também, é possivelmente o país onde esse processo foi mais longe. Hoje não existe praticamente por aqui um cineclube organizado formalmente, com regras de participação e projetos de atuação deliberados democraticamente, e direções eleitas regularmente. A própria palavra cineclube em seus usos mais correntes, passou a designar apenas uma atividade - a exibição de um ou mais filmes (no caso dos curtas-metragens) acompanhada de debate ou palestra – e não a instituição organizada. Fala-se em “fazer um cineclube” a tal hora, em tal lugar; não em organizar um cineclube, permanente, sistemático, representativo.

 

O que, a meu ver, indica uma desestruturação do modelo “tradicional” de cineclube, de resto presente também em vários outros tipos de organizações culturais, educativas e políticas, é muitas vezes explicado como “informalidade” e “horizontalidade”. Haveria que se acrescentar também “gratuidade” para descrever completamente o que não é propriamente um modelo organizativo mas, bem ao contrário, um exemplo de incapacidade de organização institucional e democrática e, complementarmente, de sustentação de maneira autônoma de iniciativas estruturadas e representativas de comunidades organizadas. Corolários dessas características, as iniciativas aqui citadas são geralmente de grupos bem pequenos – e uma parcela significativa é mesmo exclusivamente individual – realizadas com grandes intervalos, frequentemente mensais e bastante precárias quanto a recursos, instalações e equipamentos.

 

A grande maioria dos cineclubes que assim se denominam no Brasil e, entre eles, os de maior organização e assiduidade, está instalada nas universidades. A instituição e os programas de verbas e bolsas de extensão acadêmica também são um elemento fundamental para a manutenção dessas atividades. É nesses ambientes, sem dúvida, onde melhor se realiza a proposta de exibição de filmes de alguma forma “alternativos” e a discussão de suas características estéticas, narrativas, políticas, entre outras. Há alguns cineclubes que são mesmo oficiais, mantidos por uma universidade e dirigidos por professores alocados também nessa função; estão entre os mais ativos e influentes.

 

Nos anos 70 e 80, num contexto de fortalecimento da sociedade civil contra a ditadura militar, os cineclubes se reconheciam e se estruturavam como um movimento social e cultural e se organizavam também em comunidades populares, junto a movimentos sociais – inclusive étnicos e de gênero – e alguns sindicatos. Com os dois governos de Lula e a criação do programa Cultura Viva, depois seguido pelo Cine Mais Cultura (exclusivo para a exibição), o governo investiu bastante em seus projetos de exibição de filmes brasileiros em comunidades populares – mas já sem as características organizativas dos cineclubes do século passado. Depois dessas duas experiências, em seus momentos históricos, o cineclubismo de certa forma refluiu para o tipo de inserção social que (sempre) tivera até o início da Ditadura – e que tem em quase todo o mundo: nas classes médias cultas.

 

Um novo modelo de cineclube, penso, consistirá na recuperação das características democráticas e anticapitalistas que definiram o paradigma cineclube desde seu surgimento até a crise iniciada no terço final do século 20. Esse paradigma, que informa e influencia todas as outras formas de organização com origem no público, consiste na forma coletiva e democrática de organização e na ausência de finalidade de lucro, isto é, de apropriação privada dos resultados econômicos que a organização eventualmente produzir. O objetivo desse paradigma de organização é a apropriação integral do cinema pelo público organizado. Esse modelo, contudo, só será realmente novo – será a atualização da proposta cineclubista - se incluir em sua organização e propósitos a articulação com as mídias audiovisuais, sendo o cinema “apenas” uma delas, ainda que uma espécie de paradigma ele também, nas bases das inovações e diferenciações nas linguagens desenvolvidas em outras mídias.

 

Recompor e atualizar a proposta cineclubista de organização integral para a apropriação das mídias audiovisuais pelo público, na perspectiva de transformação democrática radical dos processos de expressão, comunicação e informação, bases estruturais de uma sociedade livre e justa. Em outras palavras, cineclube não pode mais ser cinefilia, no sentido de culto elitista do cinema. Mas também não pode ser “exibição e debate” que, no fundo, exprime objetivo semelhante. As tecnologias digitais, a difusão global de conteúdos e as perspectivas, em sua maior parte não realizadas, de interatividade - isto é, participação -, permitem a reconstituição da totalidade do processo produtivo da expressão audiovisual sob a forma do paradigma cineclube. A produção, a difusão, o consumo ou recepção, e a preservação da memória, do patrimônio imagético das comunidades humanas pode hoje ser integrado num mesmo processo, organizado num mesmo espaço social (comunitário): o do cineclube. A divisão de trabalho capitalista, organizada por setores corporativados (as “indústrias” de produção, distribuição e exibição), pode ser superada pela organização integral, democrática, participativa, do público informado e organizado, e pela sua intercomunicação planetária em redes livres e públicas.

 

O novo modelo de cineclube deve integrar todas as mídias num processo unificado de atividades orgânicas e críticas nos campos da informação, da formação e educação, do entretenimento produtivo, da preservação da memória e das identidades e da diversidade. Deve saber ocupar, organizar e gerir as dimensões presenciais e virtuais de suas atividades. Articular a dimensão comunitária, local, de base, e a dimensão social, planetária, em redes.

 

O objetivo político do novo tipo de cineclube, aquele que pode ajudar a construir uma novo modelo de comunicação e uma nova sociedade, é superar e substituir as instituições vigentes: alienantes, controladoras, de dominação. Em uma palavra: capitalistas. O objetivo político do novo tipo de cineclube é a substituição/superação das sala comerciais de cinema, das televisões e das redes sociais.


O objetivo político do novo tipo de cineclube não é modesto, não é fácil e não é simples. É apenas indispensável.


Algumas referências no texto:

 

Freire, Paulo – Pedagogia do Oprimido - https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/10/Pedagogia-do-Oprimido-Paulo-Freire.pdf

Gramsci, Antonio. 2002. Cadernos do Cárcere. 6 volumes. São Paulo: Civilização Brasileiratambém acessível na internet.

Maquiavel, Nicolau. 2019. O Príncipe. Ed. Do Senado Federal (https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/573552/001143485_O_principe.pdf)

Bakhtin, Mikhail (Voloshinov, Valentin). 2014. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec. (https://hugoribeiro.com.br/biblioteca-digital/Bakhtin-Marxismo_filosofia_linguagem.pdf)

Williams, Raymond. 2011. Cultura e Materialismo. São Paulo: UNESP. (https://www.academia.edu/34926870/williams_raymond_cultura_e_materialismo_pdf)

Hardman, Francisco Foot. 1984. Nem pátria nem patrão! Cultura operária e anarquista no Brasil. Ed. Brasiliense (https://pdfcoffee.com/nem-patria-nem-patrao-francisco-foot-hardmanpdf-pdf-free.html)

 

Rocha, Glauber (dir.) O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro – 1969 - (https://www.youtube.com/watch?v=SSEnlffMB5s&t=695s)

DIEESE - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (https://www.dieese.org.br/

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 19 de agosto de 2022


Velha Rua do Triunfo (SP): levando filmes para serem enviados de trem para exibidores de outras cidades.

 

Política Nacional Aldir Blanc:

a nova legislação para a cultura comunitária pode mudar muita coisa. Ou não.

 

Este não é um trabalho acadêmico, apesar da extensão. É uma análise da nova legislação da cultura que pode desaguar em propostas inovadoras de organização das comunidades. Comunidades que são a base da sociedade brasileira. Comunidades territoriais, como bairros, pequenas cidades, aldeias. Comunidades de identidade social e cultural, que vão desde sindicatos, assentamentos, ocupações, até movimentos organizados de mulheres, de negros, de orientações LGBTQIA+, de indígenas, de imigrantes e outros. E há ainda uma infinidade de comunidades ligadas a espaços de trabalho, convivência e luta, muitas sem quase nenhuma organização: fábricas, grandes lojas, centros logísticos, call centers, quarteis, portos, navios e muitas outras.

 

Este é um texto com propostas militantes, quase um manifesto. Uma reflexão militante para militantes. Para militantes cineclubistas que percebem ou intuem os problemas que hoje limitam sua atuação: os cineclubes parecem não conseguir se estabelecer de forma mais permanente, principalmente junto de comunidades populares, fora dos ambientes universitários. Para militantes de movimentos sociais e comunitários interessados na apropriação e no uso das mídias audiovisuais na organização de suas comunidades, saindo também de um modelo meio limitado de objetivos apenas imediatos – eleições, manifestações de rua - que não incluem o desenvolvimento das identidades, das consciências de cada um e de todos de seu papel na história e na transformação profunda da sociedade. Para professores e educadores que, vendo crianças, adolescentes e jovens adultos presos em seus celulares, querem empregar as mídias audiovisuais mais que para ilustrar certas matérias ou para copiar as formas burguesas de formação cultural.

 

O Congresso derrubou, no dia 5 de julho, os vetos às chamadas lei Aldir Blanc e Paulo Gustavo daquele idiota maléfico e perigoso que responde pelo poder executivo no Brasil. Esse acontecimento terá um impacto muito grande no campo da cultura, especialmente na esfera que quero qualificar de comunitária[i] e, proporcionalmente, nas atividades cineclubistas. Num certo sentido, pode ter um efeito de dimensão histórica em nosso meio específico. Ou não. Isso vai depender da capacidade de mobilização, de pressão, das comunidades organizadas. Elas podem entender os espaços políticos criados por essa nova legislação como um conjunto de oportunidades para organizar e consolidar seu trabalho nas comunidades a partir de uma perspectiva planejada a mais longos prazos. E que deve levar a uma autonomia completa: cobrando, mas sem se colocar na dependência do Estado. Mas podem, também, enxergar apenas a chance imediata e oportunista de conseguir uma verba para um evento, ou um projeto de no máximo alguns meses, que não vai na direção de construir, de adicionar. E que depois fica à espera, na dependência de uma próxima verba que, geralmente, demora bastante: o tempo de esgotar ou enfraquecer significativamente os resultados obtidos anteriormente.

 

Acho que há muitos aspectos que devem ser considerados para compreender, abarcar toda a significação da nova legislação. Vou procurar ser o mais sucinto que expor claramente as ideias me permita, mas devo passar por uma rápida introdução. E pela análise dos textos. O tema é muito importante; é vital mesmo, para a cultura comunitária, e precisa ser compreendido da maneira mais completa possível.

 

Políticas culturais: Estado, mercado e comunidade

Produções, artistas, produtores

 

Hoje em dia, nem mesmo os países ou democracias mais liberais deixam de compreender que cabe ao Estado um papel indutor do processo cultural. Mas, herdeiros de uma tradição liberal, elitista quanto ao que se chama de “artes”, entendem as diversas formas de expressão nesse campo – literatura, teatro, cinema, música, dança, etc. – como resultado exclusivo da ação de autores, de artistas; ou de produtores, entendidos como empreendedores individuais ou empresas mesmo, de todos os tamanhos. A audiência, isto é, a grande maioria das pessoas, é plateia[ii]: seu papel é validar essa produção.

 

Mais recentemente – afinal estamos falando de liberalismo e do Brasil – criou-se o conceito de economia criativa (uma certa redundância, já que a economia, o processo econômico geralmente cria: bens e serviços de todo tipo). Essa noção busca integrar ideologicamente a cultura ao mercado, mesclando a criação – em princípio subjetiva, social – com a economia, reduzida à sua acepção como indústria: capitalista e de mercado. A criação, assim, vira empreendedorismo, e, embora as manifestações populares não industrializadas tenham sempre tido pouca acolhida nas políticas reais do País, qualquer nível de criação parece agora indistinta da produção claramente comercial: é tudo economia criativa. Que economia produzem os cineclubes, por exemplo, que sequer recolhem qualquer tipo de contribuição (exceto do Estado mesmo), por exemplo? Certamente não é a mesma que a dos unicórnios[iii] de videojogos[iv] que, por definição, recolhem muitos milhões de investimentos privados.

 

A centralidade do artista, do autor como expressão individual e mais elevada do sentido das artes, e o papel do Estado como guardião e mantenedor do patrimônio de grandes talentos e obras nacionais foi típica do império e da velha república. Isso foi paulatinamente substituído pela figura da empresa produtora de conteúdos “criativamente” econômicos, regulada pelo mercado, que o Estado complementa (como nas outras políticas econômicas públicas) e ao qual se subordina. Caberia uma comparação com as transferências de “direito autoral” para as empresas que o exercem como direito de “propriedade intelectual” ...

 

Mas, mesmo antes dessa nomenclatura criativa, começando com a Constituição de 1988 e culminando com os primeiros governos do Partido dos Trabalhadores, a dimensão comunitária da cultura e o cidadão – em outras palavras, o membro do público – como sujeito, foram também incluídos no campo das políticas públicas.

 

Cultura comunitária ou autoral? (as heranças de Gil e Juca)

 

Gilberto Gil, ministro de 2003 a 2008 (governos Lula da Silva) fez uma gestão muito inovadora em várias áreas da cultura e sob muitos aspectos. Talvez o mais importante e, ao mesmo tempo, menos implementado, tenha sido a proposição de uma estrutura institucional de Estado para a cultura, com a criação do Sistema Nacional de Cultura, uma estrutura complexa baseada na integração do governo federal, os estados e municípios. E que prevê, também, uma forma bastante determinada de participação da sociedade civil - o ponto mais fraco desse projeto. Falar mais sobre isso, que seria bem importante, estenderia demais este texto. É tarefa para outro artigo.

 

No que mais nos interessa agora, Gil comparou sua concepção de política pública para a área da cultura de base comunitária com a técnica do do-in da acupuntura chinesa, que consiste em massagear determinados pontos do corpo para estimular a circulação de energias. Caberia, assim, ao Estado dar um empurrãozinho nos “pontos” culturais do corpo social organizado para que eles pudessem adquirir força e autonomia para fazer a cultura circular. Aquele início de século era também um tempo em que se discutia muito as novas tecnologias digitais e os novos meios de comunicação através da internet. A democratização desses recursos era chamada de inclusão digital. A ideia do do-in somou-se à de inclusão digital em um trabalho realizado dentro do ministério que levou ao programa Cultura Viva. Este último consistia fundamentalmente em dar um impulso financeiro, durante três anos, para consolidar as entidades beneficiadas. Além disso, também fornecia equipamentos digitais para a integração das novas técnicas às práticas das organizações populares.

 

A ideia parecia (e era) excelente, teve grande repercussão entre a intelectualidade e foi, inclusive, replicada em outros países (cada um à sua maneira) da América Latina. O ciclo desse processo, visto em retrospectiva, foi muito rápido. Foram três ou quatro anos entre o início efetivo do programa e sua descontinuação definitiva. Ao ser posta em prática, a proposta começou a se contaminar com os vícios atávicos do Brasil e das políticas de governo: o empurrãozinho nas organizações sociais existentes transformou-se em fomento de novas instituições praticamente criadas pelo Estado, através de editais que configuravam as formas e campos de proposição e atuação dos agora denominados Pontos de Cultura, que surgiram - se constituíram ou se transformaram - por causa e a partir do programa. O Ministério também patrocinou encontros e outras atividades dos referidos Pontos (ao contrário de outros setores). O do-in passou de impulso à comunidade a indutor de novas formas de organização a partir do governo. A ideia de um estímulo financeiro inicial visando a autonomia virou perspectiva de dependência permanente. De fato, ao invés de se organizar e criar bases de sustentação autônomas, os Pontos subsidiados pelo Estado gastaram integralmente os recursos e passaram a esperar por uma renovação sistemática e permanente que, ao fim, não veio. O sistema teve também muitos problemas administrativos, burocráticos. O ministro saiu logo no início do programa, sendo substituído por Juca Ferreira, principal gestor do programa, que ficou menos de dois anos, até o final do mandato. Dilma Roussef, sucessora de Lula, não teve em nenhum momento uma administração notável na área da cultura e não deu continuidade a boa parte dos projetos dos ministros Gil e Ferreira. Como tantas “políticas públicas” no Brasil, essa também não se consolidou, nem mesmo em um governo de continuidade.

 

Outro traço menor e oportunista foi a reprodução generalizada e quase indiscriminada da ideia, agora já meio corrompida: foram criados pontões e pontinhos de cultura, e um projeto especial para os cineclubes que tem uma história colateral[v]: a dos cines+cultura ou simplesmente cines. Esses cines, como o nome já meio que sugere, eram mais pontos de exibição para os filmes produzidos pelos projetos de apoio ao curta-metragem do Ministério do que propriamente cineclubes, isto é, associações comunitárias democraticamente constituídas. Não se buscava organizar o público, mas antes formar plateias para aqueles filmes. Eram iniciativas meio profissionalizadas – na participação em editais - em que o público era apenas uma plateia desorganizada para os filmes que não tinham nenhum outro espaço, de tipo mais comercial, para serem exibidos. De movimento do público, passaram a plateia, mercado (uma espécie de mercado, já que a “economia criativa” era fornecida pelo Estado: houve mesmo quem chamasse isso de “Pós-Capitalismo Industrial” ...) para os realizadores amadores.

 

De certa forma, a proposta de articulação cultural comunitária retrocedeu à situação da hegemonia do artista, do autor, do realizador, na maior parte das iniciativas do Ministério no campo do audiovisual. Campo em que sempre se incluiu os cineclubes e as plateias, considerados como meras extensões e produto da produção cinematográfica. Isso também tem uma explicação mais política: os realizadores de curta-metragem e suas entidades representativas tiveram uma importante inserção no próprio Ministério e, como segmento das classes médias locais, tinham um impacto político e midiático muito maior que as comunidades populares pouco organizadas. Talvez injusta e coincidentemente, a gestão de Juca Ferreira ficou marcada por tudo isso e pela desarticulação do movimento cineclubista[vi] brasileiro. E de várias outras iniciativas comunitárias, incluindo a maior parte dos Pontos de Cultura. Juca Ferreira voltaria ao cargo já no final – imprevisto - do segundo mandato de Dilma Roussef, também marcado pela desarticulação do governo e pelo golpe parlamentar de 2016.

 

Cineclube, público, comunidade

 

O pequeno PCB (Partido Comunista Brasileiro) tem uma palavra de ordem muito estimulante: construir o poder popular. Mas, aparentemente, os partidos mais ligados à classe trabalhadora, que pretendem representá-la, ainda estão bem distantes desse objetivo[vii]. Agora, saindo da esfera partidária, o que pode ser o poder popular? Penso que essa ideia se articula com as ideias de Marx e Engels, que já em 1850 escreviam para os Clubes de Trabalhadores[viii] (herdeiros, mas também precursores de várias formas de organização popular, inclusive dos cineclubes) chamando-os de formas do futuro Estado dos trabalhadores. Na mesma linha, Gramsci também propunha a organização de instituições criadoras de valores (valores éticos, bem entendido), ou aparelhos de hegemonia, para não apenas se contraporem, mas para substituírem as instituições hegemônicas burguesas, preparando e já construindo o mesmo futuro Estado dos trabalhadores. Essas formas de organização, as instituições orgânica e ideologicamente ligadas à classe trabalhadora, aos excluídos, discriminados, perseguidos – no nosso caso, o povo brasileiro (excluindo os donos do poder e seus associados) – é que corporificam, constroem o poder popular. São parte importante, indispensável, de um futuro poder popular. Com elas se edificam as instituições inovadoras que constituirão a governança de um sistema político radicalmente democrático, inclusivo e igualitário.

 

Os cineclubes são, ou podem ser, parte disso. Eles têm uma condição muito especial: representam uma forma de organização democrática, uma herança popular forte e atuam, em princípio, no campo mais importante da comunicação, da informação, da mediação das relações sociais e da expressão do campo popular: as mídias audiovisuais. Sua participação na construção de um poder popular pode ser fundamental. Ou não será nada. Passará, como passaram os cines.

 

Os cineclubes surgiram com uma reação do público a um cinema que se instituía à sua revelia e que foi instrumental na sua subordinação. Os primeiros cineclubes não usavam ainda esse nome: chamavam-se Cinema dos Trabalhadores, Cinema do Povo, Clube da Periferia... Isso em torno de 1910. Seus organizadores eram imigrantes, trabalhadores, militantes socialistas, anarquistas, feministas. A partir dos anos 20 o nome cineclube se generalizou, mas num ambiente mais de intelectuais burgueses e da classe média. Paralelamente, com forte influência da Revolução Soviética, continuaram a se propagar os cineclubes de trabalhadores, agora com nomes como Clube dos Amigos de Spartacus (França, 1928), assim como as inúmeras Ligas de Cinema dos Trabalhadores, em todo o mundo. Na própria União Soviética houve um forte esforço de divulgação do cinema, um programa chamado mesmo de cineficação, através de diversos tipos de exibições ambulantes e da organização de milhares de clubes comunitários de cinema sediados, justamente, nos Clubes de Trabalhadores, uma categoria essencial dentre as muitas formas de organização do poder popular naqueles tempos e circunstâncias.

 

De fato, a tensão entre um caráter mais elitista e a herança e tendência revolucionária se mantém até hoje no que chamamos de movimento cineclubista. E essa tensão está presente tanto nos círculos cineclubistas de classe média – que constituem a maioria - como entre as iniciativas que se desenvolvem em ou buscam ambientes mais proletários, de negros, de mulheres, de diversidade de gêneros ou de defesa dos povos indígenas e do meio ambiente.

 

As iniciativas cineclubistas que se espalharam por todo o mundo sob o influxo da cinefilia, primeiro nos anos 20, depois ainda mais fortemente nos anos 50 e 60, construíam castelos elitistas de um verdadeiro culto ao cinema. Mas, ao mesmo tempo, adotavam, conservavam a associação democrática, a ausência de finalidade lucrativa e, mesmo elitista, o debate livre de ideias e convicções, a palavra do público, herdados dos seus antecedentes proletários. No outro lado, se colocarmos a coisa dessa maneira, cineastas e cineclubistas de esquerda procuravam representar ou mesmo dar voz aos trabalhadores e outros explorados, mas tiveram grande dificuldade de se livrar do mesmo viés cinéfilo que é a autoria individual, categoria essencialmente burguesa, proprietária, ligada ao empreendedorismo e à propriedade privada. O estabelecimento efetivo de uma ligação entre o cineclubismo e a grande maioria do povo é uma questão irresolvida, inalcançada – ainda que muito procurada.

 

Hoje, no Brasil muito especialmente, a herança cineclubista está bastante desvirtuada, dispersa, enfraquecida, devemos admitir. Praticamente já não existe a característica mais essencial que definiu os cineclubes - e ainda define bastante em outros países – durante mais de um século: o associacionismo democrático. Em nosso país não há mais cineclubes, propriamente, mas sobretudo diferentes práticas cineclubistas. Atividades meio esparsas, conceitos genéricos, formas de senso comum, que mais justificam do que caracterizam – e menos ainda, organizam – esse “cineclubismo”. Ideias como a de que “o cineclube é onde se passam filmes de acesso mais difícil”, isto é, que não estão nos grandes circuitos comerciais ou nos serviços de televisão sob demanda. É uma retomada do “cineclubismo do bom filme”, base da cinefilia elitista e dos cineclubes católicos até  pouco mais da metade do século passado. Mas não se trata de escolher os filmes para o público (ainda mais que atualmente praticamente todo conteúdo pode ser visto, acessado de alguma maneira), mas de organizar o público para que ele se expresse no campo do audiovisual. Em vez de curadorias de filmes “difíceis”, incomuns – que geralmente apenas organiza o gosto dos próprios promotores da iniciativa – é o público que deve escolher a programação. E isso não é uma utopia: não existe essa diferença, verdadeira hierarquia, entre filmes de difícil acesso, incomuns, filmes melhores ou piores. Não tem fundamento essa pretensão de ensinar o público, “alfabetizar o olhar” de quem já nasceu num universo de conteúdos audiovisuais. O que existe é o público, o contexto, a experiência deste. Criado o ambiente, o hábito, dentro das necessidades e habilidades desenvolvidas pelo coletivo, qualquer filme pode ser passado e debatido, e apreciado por toda uma comunidade. O filme é secundário. Para um cineclubismo do público é necessária a organização, a associação. Mas cineclube é ainda muito mais do que isso. Tal como os primeiros cineclubes, e os cineclubes proletários que se seguiram, o objetivo maior da organização do público é a sua capacidade de se expressar. Mas não na dimensão burguesa da cinefilia, do filme de autor, e sim de todas as formas de expressão audiovisual que integrem a comunidade e ajudem a construir o poder popular futuro. Não apenas filmes – entendidos como narrativas lineares (ou mesmo mais “inventivas”) – mas reportagens, depoimentos, debates (que as “lives” já prenunciam), as transmissões de espetáculos diversos – culturais, esportivos, políticos -, de acontecimentos da comunidade, de um tele ou videojornalismo do ponto de vista do povo, de séries e novelas ambientadas nas classes e ambientes populares, com roteiro e produção construídos coletivamente...

 

Uma política de Estado construída sem a participação e da pressão da população será sempre incompleta, quando não apenas ineficiente. Ou mesmo oportunista e de cooptação. Por isso é indispensável compreender essa nova legislação – potencialmente de alcance sem precedentes – e ocupar, crítica e ativamente, os espaços sociais, culturais e políticos que ela pode facilitar.

 

Gustavo e Blanc: uma decupagem[ix]

Lei Paulo Gustavo

 

A chamada lei Paulo Gustavo não cria uma nova política de cultura, que é o queremos discutir aqui. Examiná-la se presta mais a revelar certos vícios que contaminam as próprias concepções de cultura que circulam nos meios ditos políticos do Brasil. Isso tem importância para a análise, que se seguirá, da Política Nacional Aldir Blanc.  A lei Paulo Gustavo se define como uma medida emergencial. Proposta como um conjunto de ações em tempos de pandemia, irá vigorar apenas nos últimos meses de 2022 (paradoxalmente já um tanto fora desse contexto pandêmico). Mais que isso, como mais de 70% (2,797 bilhões) dos seus recursos são destinados ao audiovisual - esse termo bastante impreciso – e, desses quase três bilhões, outros 70% (1,957 bilhão) irão diretamente à produção de cinema, o caráter emergencial da medida consiste, na verdade, na recuperação dos recursos perdidos pela produção cinematográfica brasileira[x] durante o atual desgoverno. Não se trata de comunidade, mas de mercado – que também é importante para a cultura nesta fase. Uma quantia menor, apensa a esses recursos para o “audiovisual”, tem menos interesse para nós: é um projeto imediatista, “uma verba a ser aproveitada”, como já dissemos, mas sem perspectiva de continuidade. E, pior que isso, essa parte da Lei exclui os cineclubes.

 

Esses outros recursos (1,65 bilhão) irão para os setores que não sejam audiovisuais, conforme o parágrafo terceiro do Art. 8º da Lei: É vedada a utilização dos recursos previstos neste artigo para a realização de ações voltadas ao setor audiovisual nos termos do art. 5º. O tal do artigo 5º, na verdade, traz a relação de valores (do total de 3,862 bilhões) para cada atividade, e remete ao artigo 6º, que é importante destacar aqui para os nossos objetivos cineclubistas. O artigo 6º lista as ações emergenciais que deverão ser apoiadas. Juntando os dois (5º e 6º) para nossa contribuição, as áreas e valores são:

 

I – o apoio a produções audiovisuais, de forma exclusiva ou em complemento a outras formas de financiamento, inclusive aquelas com origem em recursos públicos ou financiamento estrangeiro (1.957 bilhão);

II – o apoio a reformas, restauros, manutenção e funcionamento de salas de cinema, incluindo a adequação a protocolos sanitários relativos à pandemia da covid-19, sejam elas públicas ou privadas, bem como cinemas de rua e cinemas itinerantes (447,5 milhões);

III – a capacitação, a formação e a qualificação no audiovisual, o apoio a cineclubes e à realização de festivais e mostras de produções audiovisuais, preferencialmente por meio digital, bem como a realização de rodadas de negócios para o setor audiovisual, para a memória, a preservação e a digitalização de obras ou acervos audiovisuais, ou ainda o apoio a observatórios, publicações especializadas e pesquisas sobre audiovisual e ao desenvolvimento de cidades de locação (224,7 milhões); e

IV – o apoio às micro e pequenas empresas do setor audiovisual, aos serviços independentes de vídeo por demanda cujo catálogo de obras seja composto por pelo menos 70% (setenta por cento) de produções nacionais, ao licenciamento de produções audiovisuais nacionais para exibição em TVs públicas e à distribuição de produções audiovisuais nacionais (167,8 milhões).

 

Mas tem mais: 1,65 bilhão, como já dissemos, vai para setores não audiovisuais. E aí fica clara uma das grandes confusões que enxarcam essa legislação – e remetem a um problema central dos cineclubes. Se não atuarmos com firmeza nas frentes políticas locais de negociação dos nossos projetos, essa confusão vai nos prejudicar bastante. Voltaremos a isso no item “Análise da PNAB”, mas aqui já indicamos que este trecho da lei, paradoxalmente, sugere que várias dessas ações não audiovisuais sejam promovidas através da internet e gravadas. Os cineclubes estão na parte do audiovisual (item III do parágrafo 5º.), e expressamente vetados aqui, mas poderiam muito bem ser compreendidos dentro desta seção da Lei, que visa:

 

I – o apoio ao desenvolvimento de atividades de economia criativa e de economia solidária;

II – o apoio, de forma exclusiva ou em complemento a outras formas de financiamento, a agentes, iniciativas, cursos ou produções ou a manifestações culturais, incluindo a realização de atividades artísticas e culturais que possam ser transmitidas pela internet ou disponibilizadas por meio de redes sociais e outras plataformas digitais e a circulação de atividades artísticas e culturais já existentes; ou III – o desenvolvimento de espaços artísticos e culturais, microempreendedores individuais, microempresas e pequenas empresas culturais, cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram as suas atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social para enfrentamento da pandemia da covid-19.

 

Desta forma, e como a Lei induz e determina o entendimento dos cineclubes como parte do segmento dito audiovisual, só estaríamos aptos a demandar recursos no valor de 224,7 milhões, divididos entre os estados e municípios e com as outras atividades previstas nesse item: festivais, formação e outras. No fim seguramente não será muita coisa. E mais: os cineclubes também não estariam inclusos no apoio a “reformas, restauros, manutenção e funcionamento de salas de cinema...” nem “cinemas itinerantes” (item II do art. 6º). Pela leitura usual dos proponentes da Lei e seus aplicadores, os cineclubes tendem a ser apenas aquelas sessões com pouca estrutura, conforto ou sistematicidade: estão confinados no item III do artigo em referência.

 

No entanto, como os recursos serão geridos entre os estados e os municípios (50% para cada nível) os cineclubes podem tentar exercer uma pressão social e política maior nessas instâncias – sobretudo em seus municípios – e, dessa forma, argumentar que também se qualificam para os dois itens do art. 6º e para os três subitens referentes a atividades não audiovisuais...

 

Os demais artigos da Lei Paulo Gustavo descrevem genericamente seus objetivos, fontes de recursos e outros temas que não levantam questões mais discutíveis aqui no nosso escopo.

 

A Política Nacional Aldir Blanc

 

Aqui é que está o mais importante. Como o nome já indica, não se trata de uma lei com duração determinada, emergencial como foi a Lei Aldir Blanc original e é a Lei Paulo Gustavo. Agora trata-se de uma política de Estado, só que proposta e deliberada no plano do Congresso, do poder Legislativo, ao contrário das iniciativas em governos anteriores, em que as propostas vinham do poder Executivo, no âmbito do antigo ministério da Cultura. A razão dessa mudança é a inação ou combate mesmo à cultura por parte do desgoverno atual.

Essa condição tem um significado e um resultado muito especiais: como o governo federal é francamente hostil à cultura, essas últimas leis passaram praticamente toda a administração final dos recursos para os estados e municípios. No caso da Política Nacional Aldir Blanc, fez-se isso com um programa que passa a constituir uma política permanente, gerida sobretudo pelos estados e municípios. Isso é de importância fundamental, mas trataremos disso um pouco mais adiante. Antes, o que a nova legislação prevê:

 

Primeiro, serão 3 bilhões no primeiro ano, corrigidos pela variação do PIB nos anos posteriores. Segundo, conforme o art. 5º, esses recursos serão usados para apoiar:

 

I - fomento, produção e difusão de obras de caráter artístico e cultural, inclusive a remuneração de direitos autorais;

II - realização de projetos, tais como exposições, festivais, festas populares, feiras e espetáculos, no País e no exterior, inclusive a cobertura de despesas com transporte e seguro de objetos de valor cultural;

III - concessão de prêmios mediante seleções públicas;

IV - instalação e manutenção de cursos para formar, especializar e profissionalizar agentes culturais públicos e privados;

V - realização de levantamentos, de estudos, de pesquisas e de curadorias nas diversas áreas da cultura;

VI - realização de inventários e concessão de incentivos para as manifestações culturais brasileiras que estejam em risco de extinção;

VII - concessão de bolsas de estudo, de pesquisa, de criação, de trabalho e de residência artística, no País ou no exterior, a artistas, a produtores, a autores, a gestores culturais, a pesquisadores e a técnicos brasileiros ou estrangeiros residentes no País ou vinculados à cultura brasileira;

VIII - aquisição de bens culturais e obras de arte para distribuição pública e outras formas de expressão artística e de ingressos para eventos artísticos;

IX - aquisição, preservação, organização, digitalização e outras formas de promoção e de difusão do patrimônio cultural, inclusive acervos, arquivos, coleções e ações de educação patrimonial;

X - construção, formação, organização, manutenção e ampliação de museus, de bibliotecas, de centros culturais, de cinematecas, de teatros, de territórios arqueológicos e de paisagens culturais, além de outros equipamentos culturais e obras artísticas em espaço público;

XI - elaboração de planos anuais e plurianuais de instituições e grupos culturais, inclusive a digitalização de acervos, de arquivos e de coleções, bem como a produção de conteúdos digitais, de jogos eletrônicos e de videoarte, e o fomento à cultura digital;

XII - aquisição de imóveis tombados com a estrita finalidade de instalação de equipamentos culturais de acesso público;

XIII - manutenção de grupos, de companhias, de orquestras e de corpos artísticos estáveis, inclusive processos de produção e pesquisa continuada de linguagens artísticas;

XIV - proteção e preservação do patrimônio cultural imaterial, inclusive os bens registrados e salvaguardados e as demais expressões e modos de vida de povos e comunidades tradicionais;

XV - realização de intercâmbio cultural, nacional ou internacional;

XVI - ações, projetos, políticas e programas públicos de cultura previstos nos planos de cultura dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;

XVII - serviço educativo de museus, de centros culturais, de teatros, de cinemas e de bibliotecas, inclusive formação de público na educação básica;

XVIII - apoio a projetos culturais não previstos nos incisos I a XVII deste caput considerados relevantes em sua dimensão cultural e com predominante interesse público, conforme critérios de avaliação estabelecidos pelas autoridades competentes dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.

 

O item XVIII resume bem: ao fim e ao cabo, tudo que puder ser considerado como cultural e de interesse público (em outro momento o texto indica que essa avaliação caberá aos estados e municípios) poderá ser incentivado e receber os recursos previstos anualmente. Os cineclubes poderão negociar, nos estados e municípios, de forma livre e criativa (ver na sequência, “Análise da PNAB”) os diferentes tipos de projetos que poderão apresentar.

 

Aqui já não há a divisão entre o que é audiovisual ou não. Essa distinção provavelmente se deveu originalmente à separação de funções entre a Ancine (que gere os recursos para a indústria audiovisual) e o antigo ministério, hoje reduzido a uma repartição do Turismo, que deveria tratar do “estritamente cultural” (mas mesmo naquela época, os cineclubes estavam sob a égide da SAV - Secretaria do Audiovisual -, no ministério). A Política Nacional Aldir Blanc meio que supõe uma breve superação do estado anômico de coisas em que estamos. Mas, ainda que seja bastante provável a recriação do ministério da Cultura em um próximo governo, essa legislação voltada para estados e municípios deverá ser mantida: é lei.

A Política Nacional Aldir Blanc (que passaremos a abreviar como PNAB) é de uma importância única.

 

Análise da PNAB

Políticas e cultura

 

Há muitos sentidos possíveis para a palavra política, tal como para o termo cultura. Num sentido mais restrito, tanto a PNAB como a legislação que a precedeu (Gustavo e Blanc 1), representam genericamente uma conquista progressista muito surpreendente diante e dentro do ambiente conservador e oportunista da maior parte do Congresso, e o pior, do fascismo instalado nos diversos níveis, até o mais alto, do Executivo.

 

Há algumas hipóteses para que isso tenha acontecido. Em primeiro lugar, os partidos e seus representantes no Parlamento pouco ou nada sabem de cultura[xi] e/ou têm interesse nela (com exceção de parte do PT e do PCdoB, que têm propostas concretas para esse campo desde o primeiro governo Lula, e de outros poucos casos individuais isolados, dispersos em alguns partidos). No caso da Aldir Blanc 1, a maioria dos parlamentares, provavelmente sem ler direito a proposta, viu no projeto uma medida anódina para eles e simpática aos eleitores; o texto deve ter passado mais ou menos da mesma forma pelos estafermos do Executivo. Já nas propostas da Paulo Gustavo e da PNAB houve um trabalho da sua tropa parlamentar para que o chefe do Executivo vetasse as duas. De volta ao Congresso, possivelmente pelo mesmo processo anterior, com a presença de vários artistas e personalidades da indústria do entretenimento trabalhando pela derrubada dos vetos, eles foram revistos com grande votação (praticamente unânime no Senado e com forte maioria na Câmara). Cerca de 40 deputados bolsonaristas, no entanto, votaram pela manutenção dos vetos.

 

Num sentido mais ambicioso, uma política para a cultura procura entender, integrar e estimular uma cultura ampla, representativa, diversa. Isto está principalmente contemplado na PNAB, de efeitos mais duradouros, sobretudo em seu campo social e em seus objetivos: nos primeiros 5 artigos. Os artigos 6º a 8º definem valores e formas de aplicação; um destaque importante é que o art. 7º, inciso I, alínea b, e o art. 9º incluem aluguéis para a manutenção de espaços culturais; o art. 9º indica as medidas da legitimidade (além da manutenção de atividades regulares) desses espaços: são as formas públicas de cadastro, da esfera municipal à federal, mas exclui os cartórios, onde esse “cadastro” teria que ser de uma associação, com ou sem fins lucrativos. O art. 10º, item XXIV confirma isso, definindo o que é espaço cultural: basicamente qualquer iniciativa que tenha sido cadastrada nos termos do artigo. O artigo 10º elenca diversos exemplos, inclusive cineclubes (item V) do que são espaços, ambientes e iniciativas artístico-culturais, resumindo, ao final, que tudo que for cadastrado pode ser aceito.

 

Antes disso, porém, art. 10 define o que sejam esses espaços, ambientes e iniciativas:

 

(são) aqueles organizados e mantidos por pessoas, organizações da sociedade civil, microempresas culturais, organizações culturais comunitárias, cooperativas com finalidade cultural e instituições culturais sem fins lucrativos que tenham pelo menos 2 (dois) anos de funcionamento regular comprovado e que se dediquem a realizar atividades artísticas e culturais...

 

A PNAB mantém, assim, indiscriminadamente, a legitimidade de iniciativas individuais e mesmo comerciais. Os demais artigos da PNAB (são 17 no total) tratam de aspectos mais administrativos – fontes e tratamento dos recursos pelos órgãos públicos, prestação de contas, etc. - da nova política.

 

A PNAB deve se inserir tanto no Sistema Nacional quanto no Plano Nacional de Cultura, já que estes são dispositivos constitucionais para a gestão cultural do País. O atual governo abandonou esses dispositivos[xii]; mais que isso, sua prática foi de destruição de estruturas e políticas no campo cultural. Nessa conjuntura, as três leis mencionadas neste texto propuseram estados e municípios como executores, afastando a atuação das esferas federais, mortalmente contaminadas. Essa mudança de enfoque, ainda que sobretudo conjuntural, constitui justamente o aspecto mais importante da PNAB.

 

Esta lei, mais especificamente, foi proposta por três parlamentares do PCdoB. Sua elaboração e sua base social, no entanto, está ligada a um movimento mais amplo, que inclui também pessoal ligado às gestões de Juca Ferreira no ministério da Cultura e a outros grupos da área cultural, como a organização Fora do Eixo. A experiência pública desse grupo foi fundamentalmente o programa Cultura Viva (e no campo do cineclubismo, o Cine Mais Cultura). Sua perspectiva era a do governo central, ancorada no Sistema Nacional de Cultura - SNC. De fato, ainda que este último definisse as três esferas como responsáveis pela política nacional de cultura, sua experiência concreta foi sobretudo baseada na centralidade do governo federal de então e na força dos partidos políticos e dos grupos já mencionados que o apoiavam com sua militância nos patamares estaduais e municipais com a organização das Conferências de Cultura nos três níveis institucionais. Uma quarta Conferência Nacional (desde 2005 foram três) está prevista para dezembro, mas agora organizada exclusivamente com essa base, no âmbito do Congresso, e participação de alguns políticos e organizações de estados e municípios.

 

É indiscutível que esse conjunto de partidos e grupos foi o maior responsável pela proposição das três leis. Mas é também muito provável que possam reproduzir os vícios presentes na sua experiência anterior no governo. Para os cineclubes especificamente, como vimos, isso não foi bom. A força política desse grupo é inegável e, segundo o raciocínio já exposto, na ausência de outras visões e propostas, poderá possivelmente ser a base da política cultural de um provável governo Lula de reconstrução do País. Por outro lado, obrigada pelas circunstâncias a, de fato, passar a gestão dessa política para as esferas estaduais e municipais, este novo formato provoca um novo nível de permeabilidade e de inclusão democrática, de capilaridade e de diversidade, de suscetibilidade às demandas e pressões das comunidades locais. Nesse sentido, a PNAB reintroduz, sob novas perspectivas, um certo sentido original do SNC, apontando para o empoderamento – pela responsabilização política e financeira sobre os recursos – de municípios e estados, reconstruindo (e ampliando) a pirâmide do Sistema de baixo para cima, e não de cima para baixo como foi de fato.

 

Riscos inerentes e oportunidades possíveis

Os problemas

 

Da mesma forma que a capilarização dos recursos da PNAB concorre para sua maior abertura a demandas das diferentes comunidades, também a coloca, em boa medida, sob o poder discricionário de autoridades locais e sujeita, eventualmente, à troca de favores e vantagens. Esse embate entre comunidade organizada e poder institucional é passível de ser muito mais equilibrado no plano dos municípios, até mesmo dos maiores, e das instituições estaduais. Num certo sentido, essa disputa estimula a sociedade civil a se organizar. Ou, por outro lado, propicia o favorecimento e corrupção de agentes envolvidos em sua aplicação. Essa espécie de dilema político será o fator mais decisivo na orientação da aplicação desses recursos e do seu comprometimento, ou não, com as necessidades e interesses das comunidades. O grande, o maior risco, então, é a incapacidade da comunidade, do público do cineclube de se organizar e, corolário disso, não lutar pelos seus interesses e direitos. Isso já aconteceu quando dos programas Cultura Viva e Cine Mais Cultura, questão que está diretamente ligada à desorganização do cineclubismo brasileiro como movimento social e cultural expressivo.

 

Há outros riscos, no entanto, que vêm já de uma certa tradição de burocratização da cultura que foi paulatinamente se introduzindo desde a Constituição de 1988. Burocratas, rábulas, empresários e outros interesses degradaram vários aspectos dos exercícios da cultura – que são justamente os objetos dessas políticas públicas – complicando, dificultando e muitas vezes diretamente prejudicando a realização de suas finalidades. Criou-se uma certa doxa jurídica, um senso comum legal sem efetiva base ético-jurídica (mas com forte influência ideológica liberal) que há já algum tempo passou a integrar os textos legais nesse campo. A lei Paulo Gustavo e a PNAB não constituem exceções. Os cineclubes não são os únicos, mas têm sido bastante prejudicados.

 

Primeiro risco - Os cineclubes, em suas origens sociais proletárias e, institucionalmente, pelas deliberações de suas entidades representativas nacionais e mundial, definem-se como organizações do público. Isso quer dizer que são instituições políticas de base comunitária (mesmo que a sua comunidade não seja territorial, mas de classe, etnia, gênero ou outra). Seu instrumento de atuação é o audiovisual, mas sua organização é comunitária. Esta questão não é “teórica”, ou formal, mas fundamental e bem prática. Assim, quando a lei Paulo Gustavo, por exemplo (há vários outros) enquadra o cineclube como parte do setor audiovisual e lhe empresta certas atribuições, intrinsecamente lhe retira outras, excluindo-o de outros benefícios da mesma lei. No caso, os cineclubes devem dividir recursos relativamente menores (224,7 milhões, item III do art. 6º) com várias atividades de exibição (e a algumas caberia o mesmo raciocínio), estando, dessa forma, excluídos do valor bem maior de 1,65 bilhão, que cobre uma infinidade de atividades – muitas das quais praticadas por cineclubes –, mas que são definidas como não audiovisuais. A questão, no entanto, pode ser negociada – no sentido estritamente político da palavra – quando sujeita à, enfim, luta de classes nos planos municipal e estadual.

Como já dissemos, cineclubes não são entidades cinematográficas ou audiovisuais, mas organizações do público nesse campo. O contrário é um pouco como dizer que sindicatos são entidades da indústria ou do comércio, e não dos trabalhadores, ou que os movimentos camponeses são parte de um grande agronegócio...

 

Segundo risco – Há uma forte contaminação ideológica na compreensão e no trato com organizações culturais de base comunitária. Dagnino[xiii] já identificava o fenômeno de apropriação e ressignificação de vários conceitos, sob um prisma liberal, nos governos FHC (seu texto é de 2004), mas isso continuou sem interrupção, de fato de forma crescente, nos governos seguintes, espalhando-se por outras esferas. A autora fala de sociedade civil, cidadania, participação, esvaziados de seu conteúdo democrático e progressista, mas podíamos lembrar também de empreendedorismo, a ação empresarial individual, termo que passou a ser empregado como sinônimo geral de iniciativa. Da mesma forma, empresas (comerciais, privadas, lucrativas) passaram não apenas a ocupar papéis de iniciativas comunitárias, coletivas, democráticas, sem fins lucrativos, mas até mesmo a receber exclusividade em alguns desses papéis e espaços, expulsando a atividade cultural típica. Um exemplo claro são os programas de estímulo à criação, reforma ou equipamento de espaços de exibição audiovisual (salas de cinema em sentido amplo), restritos a empreendedores individuais ou empresas e até mesmo grandes circuitos comercias de exibição, e vedados a cineclubes. Isso está consignado, em termos gerais, no art.10º da PNAB.

 

Terceiro risco – No mesmo sentido, criou-se um hábito e um cânone da gratuidade. Dessa forma, atividades culturais não poderiam gerar recursos (apesar do paradoxo evidente da ideia de economia criativa, de que já falamos), mas apenas recebê-los do Estado ou da “iniciativa privada (empreendedorismo?)”, geralmente através da renúncia fiscal do mesmo Estado. Já falamos muito, em outros textos, sobre isso: essencialmente, a questão da finalidade lucrativa se refere não à produção de resultados econômicos, mas à forma de apropriação destes. Uma empresa comercial (que não deveria receber recursos públicos exceto em certas situações muito precisas) é aquela em que um indivíduo ou um grupo de sócios recebem os resultados econômicos e os aplicam a seu exclusivo critério, inclusive e frequentemente para seu benefício exclusivamente pessoal. Em uma entidade sem fins lucrativos, os resultados têm que ser aplicados em seus objetivos, definidos estatutária ou regimentalmente, sem que nenhum associado possa individualmente dispor ou se beneficiar com eles. Excluir ou dificultar a possibilidade de que organizações comunitárias possam gerar recursos as prejudica enormemente, frequentemente as inviabilizando. É o grande paradoxo do programa Cultura Viva: previa investimentos de três anos, uma massagem indutora de autonomia, que só poderia resultar em fortalecimento e perenização se as entidades passassem a produzir a sua independência econômica. Outro exemplo: quando este autor propôs o texto do que viria a ser a Instrução Normativa 63 da Ancine[xiv] sobre cineclubes, a redação ficou meses em discussão pelos advogados do ministério, que queriam que constasse a obrigação de gratuidade das atividades, ou então que seu valor fosse definido pelo texto legal. No final, redigiram uma Instrução pífia, optativa (uma determinação legal optativa!). Claro, ela praticamente nunca foi aplicada.

 

Quarto risco – Individualização da atividade cultural. A própria ditadura militar (a original, não o pastiche de hoje) não havia mexido nas bases tradicionais que se referiam às atividades culturais de base comunitária e não comerciais. Tomando os cineclubes, por exemplo. A iniciativa devia ser coletiva. Um representante, dito “legal”, mas na verdade político, pois devia ser eleito, levava ao cartório local os estatutos deliberados por uma maioria qualificada de associados e os registrava. Isso dava existência legal à entidade e a qualificava para qualquer programa público. Como entidade sem fins lucrativos, como parece óbvio, o cineclube era imune a qualquer tributo, exceto os referentes a direitos trabalhistas, caso houvesse. Se uma entidade morresse sem patrimônio nem dívidas – como aconteceu no final dos anos 60 com o Conselho Nacional de Cineclubes (CNC) – uma nova assembleia legitimamente organizada e uma nova direção eleita democraticamente (as atas assinadas eram os votos auditáveis de então) puderam reorganizar a entidade legalmente, alguns anos depois (em 1973). Como a constituição dos cineclubes e outras entidades, bem como a deliberação de seus programas, são atos políticos, apenas alguns poucos itens eram obrigatórios no registro: endereço, pessoas e/ou entidades participantes e eleitas, formas de procedimento adotadas internamente, medidas em caso de extinção e outros poucos detalhes. Em 2004, ao tentar proceder da mesma forma numa outra situação de reorganização do CNC, após uma assembleia e eleição legítimas, foi exigido o pagamento de taxas para cada ano em que a entidade esteve inativa (foram 15 anos) – o que era proibitivo. Impostos sobre a inatividade, taxas sobre a inexistência! Fora os emolumentos para o registro propriamente. Também era agora necessário contratar um advogado para apresentar as atas – que já haviam sido produzidas na assembleia – e prever um contador para o registro da contabilidade da entidade. A entidade nacional dos cineclubes brasileiros teve, então, de alterar sua denominação, de larga tradição histórica, para iludir as tais taxas de 15 anos; as outras exigências foram resolvidas com a colaboração de amigos. Poucos anos depois, no entanto, o CNC já não conseguia atender a essa burocracia toda e caiu numa forma de ilegalidade.

 

Essas taxas, emolumentos e impostos, rábulas e guarda-livros tornaram muito difícil o registro e documentação das organizações comunitárias. Como os governos responderam a isso? Voltando aos controles sociais tradicionais, existentes, muito mais simples e baratos? Facilitando de alguma maneira a burocracia? Não, o Estado passou a legitimar a informalidade, tornando a pessoa física, o indivíduo, como responsável autodeclarado que representa a comunidade. Foi um golpe mortal na organização social no plano das comunidades. Todo um arsenal de medidas e programas de políticas públicas - editais, chamadas públicas, prêmios, entre outros – passaram a dirigir-se ao, e mesmo a privilegiar o proponente individual: um especialista (ou seu contratante) no preenchimento de formulários e organização de orçamentos que, gradual, mas rapidamente, foi substituindo a iniciativa coletiva, democrática, participativa, comunitária.

Isso está bem claro nas duas leis de que falamos aqui, onde espaço cultural finalmente substituiu a ideia de organização do povo, do público, da comunidade. E uma sucessão de cadastros teve de ser criada – ou virão ainda a ser – para incluir todos esses casos:

Cadastros Estaduais de Cultura, Cadastros Municipais de Cultura, Cadastro Distrital de Cultura, Cadastro Nacional de Pontos e Pontões de Cultura, Cadastros Estaduais de Pontos e Pontões de Cultura, Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (Sniic) e Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro (Sicab)  e outros cadastros referentes a atividades culturais existentes na unidade da Federação, bem como projetos culturais apoiados nos termos da Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, nos 24 (vinte e quatro) meses imediatamente anteriores à data de publicação desta Lei (art. 9º da PAB).

 

A mesma lei já prevê, para facilitar, que “§ 2º: Serão adotadas as medidas cabíveis, por cada ente federativo, para garantir, preferencialmente de modo não presencial, inclusões e alterações nos cadastros, de forma auto declaratória e documental, que comprovem funcionamento regular”. Tudo começou com burocracia, mas resolve-se com uma representação “preferencialmente não presencial” e “autodeclaratória” do que deveria ser a comunidade. É um campo aberto, talvez fértil, para a prática da corrupção, em nível municipal principalmente.

 

Por último, é preciso mencionar o absurdo que é a cobrança de impostos sobre projetos incentivados com recursos públicos e onde não existe a figura do lucro. A atividade cultural sem fins lucrativos sempre foi imune do ponto de vista tributário. O Cineclube Bixiga, o Oscarito ou o Elétrico Cineclube, por exemplo, entidades sem fins lucrativos regularmente constituídas (anos 80 e 90), tinham públicos de milhares de pessoas por mês; esse público pagava uma taxa de manutenção (para distinguir da entrada ou ingresso comercial) e os cineclubes nunca pagaram impostos (ou recolheram “direitos autorais” ao ECAD, diga-se de passagem), exceto os direitos trabalhistas de uma parte de suas equipes que era remunerada.

 

Esses são alguns dos problemas que ainda estão presentes na legislação e que constituem apenas uma parte das questões e das reivindicações que as organizações culturais comunitárias – não abstratos, impessoais espaços culturais – precisarão enfrentar. Mas as oportunidades que se oferecem com essas novas leis, especialmente com a PAB, e com a diversificação das iniciativas e diálogos políticos nas esferas estaduais e municipais são inéditas e promissoras.

 

As oportunidades

 

O Art. 5º da PNAB define o objeto da nova política em 18 itens. A análise desses itens aponta para a grande oportunidade de se construir uma ampla sociedade civil de base cultural comunitária, de forma sistemática e permanente. Vamos elencar as possibilidades, que são interligadas, cumulativas:

 

Primeira possibilidade – O fato de ser uma política e não um programa, estabelece que sua aplicação será anual, de duração indeterminada. Ela indica, assim, a possibilidade de construção paulatina, crescente, sistemática, e portanto planejada, de um projeto cultural da comunidade.

 

Segunda possibilidade – Os itens X (construção, formação, organização, manutenção e ampliação de museus, bibliotecas, centros culturais, cinematecas, teatros, territórios arqueológicos e de paisagem cultural, além de outros equipamentos culturais e obras artísticas em espaço público) e XII (aquisição de imóveis tombados com a estrita finalidade de instalação de equipamentos culturais de acesso público) incluem na legislação um aspecto inédito e absolutamente necessário, na verdade indispensável para a consolidação de uma instituição popular e comunitária forte e ativa: a possibilidade de ter uma sede. Junto com o item XI, ao qual voltaremos, também abre a perspectiva de planejar e organizar o alcance e o desenvolvimento das atividades que a entidade deve realizar.

 

No caso dos cineclubes, uma sede pode envolver algumas salas de tamanho variado para exibição de conteúdos audiovisuais, mas também espaços para a produção técnica e para a difusão de conteúdos (para exibição nos locais próprios ou nos espaços virtuais) e para o arquivamento de materiais que preservem a memória e identidade da comunidade. Além disso, como todos sabem, há que se prever a existência de um espaço de consumo e comemoração coletivos, com comidas e bebidas, além de algum espaço expositivo.

 

Terceira possibilidade – O primeiro item do artigo é evidente: fomento, produção e difusão de obras de caráter artístico e cultural. De certa forma, descreve o que hoje se entende, de forma mais ou menos restrita, como atribuição dos cineclubes, incluindo a produção. Há, contudo, um contrassenso (um dos vícios a que já nos referimos): o item prevê o pagamento de direitos autorais, o que não existe quando a atividade não tem fins lucrativos.

 

Quarta possibilidade – O item II, de forma bem abrangente – inclui gastos com transporte e até seguro (outro item assegura a possibilidade de pagamento de estadias também) – estimula os cineclubes a praticar uma atividade de certa forma complementar, mas historicamente ligada às atividades culturais comunitárias, incluindo os cineclubes: realização de projetos, tais como exposições, festivais, festas populares, feiras e espetáculos. O item ainda inclui a realização dessas iniciativas no País e no exterior. Estas atividades têm um papel fundamental também na identificação do cineclube com sua comunidade e seu enraizamento nela. Além disso, são igualmente muito úteis na promoção da sustentabilidade econômica da entidade (seja através de ingressos ou da renda de comidas e bebidas, entre outras possibilidades)

 

Quinta possibilidade – O item IX - aquisição, preservação, organização, digitalização e outras formas de difusão de acervos, arquivos e coleções, complementado com os itens XI e XIV, fortalecem a perspectiva do trabalho de arquivo, preservação e disponibilização de materiais que devem integrar um plano plurianual de organização e manutenção de uma instituição audiovisual da comunidade, isto é, de um cineclube dos tempos atuais.

 

Sexta possibilidade – O item XI, já mencionado, é de extrema importância no sentido dessa atualização do conceito, do projeto e das propostas de um cineclube integrado ao nosso tempo – e à comunidade, como à maioria da população: elaboração de planos anuais e plurianuais de instituições e grupos culturais, incluindo a digitalização de acervos, arquivos e coleções, bem como a produção de conteúdos digitais, jogos eletrônicos, vídeo-arte, e o fomento à cultura digital. Este item reúne e resume três pontos fundamentais: planificação a médio e longo prazo, conquistada junto às administrações municipais e/ou estaduais; a organização de arquivos e a produção e desenvolvimento de conteúdos audiovisuais, dentre os quais os jogos eletrônicos são muito oportunamente lembrados.

 

Sétima possibilidade – Os itens IV, V, VI, VII e XVII estimulam e criam a oportunidade de desenvolvimento de um plano mais duradouro e de projetos diversificados de formação, educação e pesquisa, aspectos que, na perspectiva de organização de um cineclube com muito fôlego, representatividade e enraizamento na comunidade, são essenciais.

 

Oitava possibilidade – Outro aspecto inédito desta PNAB está implícito no item XV - realização de intercâmbio cultural, nacional ou internacional. Ele abre a possibilidade de realização de encontros diversos, de trabalho, de natureza educativa ou até política, indispensáveis para a organização de uma efetiva rede de cineclubes e de entidades representativas nos níveis regional, estadual, nacional e internacional. Difícil salientar suficientemente a importância desse item, considerando a realidade de um movimento cineclubista que não consegue se encontrar, realizar reuniões em qualquer nível, e sobretudo, em qualquer prazo[xv].

 

Os outros itens são positivos também, mas não trazem grandes inovações ou especial interesse para os cineclubes. O item XVIII, no entanto, que é o último, resume muito bem as possibilidades abertas pela nova PAB: apoio a projetos culturais não previstos nos incisos I a XVII e considerados relevantes em sua dimensão cultural e predominante interesse público, conforme critérios de avaliação estabelecidos pelos estados, municípios e o Distrito Federal. Em outras palavras: tudo o que for cultural e importante – definição que será obtida pela negociação com as autoridades estaduais e municipais – pode ser proposto e realizado.

 

Conclusão

 

Com muitos defeitos (mais evidentes, mas não exclusivamente, na Lei Paulo Gustavo), sobretudo uma concepção difusa do papel do Estado como organizador e orientador das atividades culturais – e não um simples apoiador e impulsionador -, e uma recorrente presença de elementos do mercado, que privilegiam as empresas, o empreendedorismo e outros valores ditos neoliberais (isto é, que promovem a organização capitalista da sociedade), as novas leis do Congresso – especialmente a PNAB – são muito positivas para a ação cultural no plano comunitário, fundamentalmente – mas não apenas - por passarem aos estados e municípios as responsabilidades e iniciativas no diálogo com a população.

 

Isso pode superar, em boa medida, uma série de vícios que intervieram nas políticas de democratização da cultura encetadas principalmente pelos governos do ex-presidente Lula (2002-2010). São os mesmos problemas que ainda aparecem um tanto mais marginalmente nas propostas atuais, mas que se tornam possivelmente superáveis quando o diálogo se transfere para partes mais isonômicas, isto é, onde as iniciativas populares podem ter mais peso, mais especialmente nos municípios.

 

No Brasil, as organizações e movimentos populares mais importantes também têm muitos preconceitos de fundo ideológico liberal ou burguês com relação à cultura, o maior deles sendo a pouca importância atribuída, em suas práticas e prioridades, a esse importante setor das lutas sociais, a cultura e, nela, aos cineclubes. A fraqueza das organizações culturais, e até mesmo sua presença diminuta em praticamente todos os ambientes populares, decorre em parte dessa negligência das vanguardas organizadas e, mais que tudo, claro, do poder, assim como do atraso, das classes dominantes constituídas no privilégio, na exclusão, na violência e no desprezo pela grande maioria da população. Por tudo isso, o campo cultural popular é, ou se encontra, em termos de organização – não pela falta de riqueza de seus conteúdos – bastante enfraquecido. Daí mais uma vez a importância e oportunidade das leis que “descem” a pirâmide institucional e se aproximam mais das bases onde se produz a cultura popular, dos trabalhadores, da comunidade: nos municípios – e nos estados em menor medida.

 

Os professores (e as escolas) são a maior rede de intelectuais – no sentido gramsciano[xvi] – de interessados e capacitados para a formação e emancipação das grandes maiorias do povo brasileiro. Muitos desses educadores percebem a importância e a urgência, e procuram organizar iniciativas, em que as tecnologias, linguagens e mídias audiovisuais sejam transformadas em instrumentos dessa grande tarefa educativa. E também muitos dentre esses buscam nas práticas cineclubistas as bases para esse trabalho. A PNAB abre oportunidades para que esse trabalho supere as propostas de certa forma corporativas de “cineclube na sala de aula”, apontando para a perspectiva e propiciando a oportunidade de estabelecer ligações concretas entre as escolas e suas comunidades, de levar o vigor da juventude à criação de cineclubes comunitários, abertos à participação de todos – alunos, professores, funcionários, e suas respectivas famílias. Construindo verdadeiras pontes sociais e culturais entre os dois universos que buscam formas de diálogo: escola e comunidade.

 

Os cineclubes, talvez de maneira ainda mais exemplar que outros setores virtualmente comunitários, têm uma história recente de fragilidade organizativa e de ausência política organizada e atuante no plano institucional. Durante os governos mais abertos (de Lula), os cineclubes não adiantaram realmente propostas, limitando-se a seguir acriticamente e a deixar-se cooptar de forma muito pacífica pelas iniciativas federais: os cineclubes e suas entidades representativas nunca questionaram ou discutiram sequer uma vírgula dos programas de distribuição de kits básicos de projeção e de DVDs em cuja curadoria não tinham participação. Assim, o risco de que essa ausência de iniciativa política possa se repetir é uma possibilidade real. E sem pressão, fruto da organização e de projetos político-culturais das comunidades, o protagonismo na construção de novas iniciativas culturais não se dará.

 

No entanto, essa análise mais pessimista se baseia apenas em fatos que já têm mais de uma década. E a nova legislação não se dirige às iniciativas daquele tempo. Além de permitir os passos essenciais para que práticas cineclubistas parciais passem a um plano superior de organização – particularmente com a constituição de espaços próprios e do planejamento plurianual construídos sob a forma de associações democráticas – ela também poderá ser uma fonte de recursos que auxilie a ampliação e diversificação das atividades dos cineclubes. Esses elementos são essenciais para a integração, a organicidade dos cineclubes em suas comunidades. Essenciais para que práticas cineclubistas, de certa forma, evoluam e se tornem efetivamente cineclubes: associações democráticas (clubes) em que as mídias audiovisuais (cine) são o instrumento principal de mediação com a comunidade e de preservação e expressão de sua identidade (de classe, de gênero, de etnia, etc.).

 

Essa responsabilidade – de evoluir em organização, identificar-se, ser capaz de representar a comunidade – recai sobre os cineclubes reais existentes hoje e, mais que tudo, sobre as pessoas, grupos e organizações que, nas diferentes comunidades, percebem a importância das mídias na evolução do projeto de construção de um poder popular. Novos grupos, de origens mais diversificadas, podem e devem considerar a hipótese e possibilidade de criarem cineclubes. Novos cineclubes, de um novo tipo. Mas um “novo” que incorpora e supera, dialeticamente, a tradição mais que centenária do cineclubismo.

Vamos às lutas!

 


[i] Como a expressão indica, cultura comunitária é a produzida do plano das comunidades. Estas vão das comunidades de base territorial, como bairros ou cidades menores, às constituídas por identidades tradicionais, históricas, culturais, étnicas, de gênero, de crenças, entre outras. Como a cultura tem origem na relação dos seres humanos com seu entorno, modificando-o pelo trabalho, a cultura comunitária é, em grande medida, a base da cultura popular, da cultura da grande maioria, praticamente o único terreno social em que até mesmo os ditos excluídos têm seu papel e participação. Embora principalmente as mídias audiovisuais tenham penetrado bastante nesses ambientes, a cultura popular e comunitária têm uma larga tradição oral – até mesmo pelo menor acesso aos meios de produção simbólicos mais complexos e dispendiosos. As mídias audiovisuais, hoje mais do que nunca antes, permitem a preservação e reprodução mais fieis e amplas da cultura oral. Esse campo popular também não é, geralmente, incluído na organização comercial da cultura - exceto por apropriação, que lhe retira grande parte do sentido e caráter – e, portanto, não se organiza sob formas produtoras de lucro. Embora seja a base mais rica da cultura, o segmento comunitário é marginalizado, empobrecido e mesmo combatido.

[ii] Emprego o termo plateia para designar a audiência de qualquer atividade cultural que não tem papel ativo na sua recepção; e público como o conjunto dos participantes em eventos culturais que, ao contrário da primeira, têm protagonismo neles, responsabilidade consciente sobre eles. Público, na verdade, é o único termo que ressoa de alguma forma com esse conteúdo de participação e consciência crítica, em oposição ao sentido ideológico hegemônico; todas as outras expressões indicam uma forma de recepção acrítica, inerme, sem responsabilidade ou iniciativa: plateia, audiência, assistência, auditório, espectadores...

[iii] Unicórnio é o jargão para empresas novas que conseguem chegar à marca de 1 bilhão (de dólares, suponho) captados de investidores privados. Com o sucesso, seu futuro mais provável é serem adquiridas pelos grandes monopólios planetários de comunicação e entretenimento.

[iv] Uma rápida consulta ao Sistema de Informações e Indicadores Culturais 2009-2020 (SIIC) do IBGE, disponível na internet, mostra que 85% do consumo de bens culturais está nos produtos e serviços tipicamente industrializados e comerciais (assinaturas de TV e Internet, 60,8%; despesas com serviços culturais, 11,9% e artigo de residência, 11,3%). Mas isso não quer dizer que os outros 15% sejam menos comerciais: a qualificação das “empresas” desses setores indica que 14,6% dessas empresas estão listadas como Patrimônio Natural e Cultural (parques? museus? Bibliotecas?); Apresentações Artísticas e Celebrações são 8,1% (Shows Sertanejos? Desfiles de Carnaval? Festas de São João?), e Artes Visuais e Artesanato, 6,3% - possivelmente o setor mais próximo da produção individual ou comunitária). Há vários outros indicadores no mesmo sentido no SIIC.

[v] O programa Cine Mais Cultura – título escolhido pela agência de propaganda que atendia ao Ministério – foi criado bem depois dos Pontos de Cultura, mas bebia na mesma fonte. Ao invés de pontos, o programa criou cines, nome esdrúxulo que, ao mesmo tempo que parecia consolidar o programa, também evitava a palavra cineclube. Em 2004, quando o movimento cineclubista se reorganizou institucionalmente, recriando o Conselho Nacional de Cineclubes (CNC) e elegendo sua primeira diretoria, o dirigente do programa Cultura Viva exigiu que a diretoria do CNC acolhesse o partido político ao qual ele pertencia. A assembleia geral, porém, não aceitou essa imposição. O Ministério, então, excluiu os cineclubes do Programa Cultura Viva. O governo federal só voltou a dialogar com o movimento cineclubista – bem a contragosto – em 2008. Depois de, naquele mesmo ano, tentar criar uma estrutura paralela ao CNC, chamada de Circuito em Construção, em um verdadeiro congresso nacional criado e pago pelos dirigentes do incipiente Cine Mais Cultura, mas que não teve sucesso. O novo programa adaptou, então, propostas do movimento cineclubista – como a de uma distribuidora de filmes (que virou a Programadora Brasil) e um programa de equipamento e formação de cineclubes, também reduzido à distribuição de kits baratos de projeção. O investimento nos cines era de cerca de 5% do alocado aos Pontos de Cultura mas, mesmo assim, todo mundo queria (de graça até injeção no olho, como se diz) e outros níveis de governo, como os estados, passaram a distribuir os kits para prefeitos, apaniguados e outros. Esse programa teve um efeito desestabilizador tremendo para os cineclubes, que praticamente deixaram de existir como associações comunitárias organizadas democraticamente e passaram a ser apenas pontos de exibição para os filmes produzidos pelos diversos programas do Ministério de apoio ao curta-metragem.

[vi] A última assembleia e eleição legítimas – isto é, de acordo com as normas dos estatutos – do CNC foram feitas durante a 28ª. Jornada Nacional de Cineclubes, em 2010, na cidade de Moreno, PE. Algumas outras Jornadas, irregulares, foram realizadas depois disso – em 2013, 2015 e 2019 – sem qualquer critério ou controle de participação e com números insignificantes de presentes. Nelas foram eleitas diferentes diretorias, com pouca ou nenhuma atividade. Atualmente – desde 2019 – há um Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros, eleito irregularmente, como nos outros casos, mas talvez com uma disposição maior de representar os cineclubes. Não tem representação ou legitimidade nacionais, sem dúvida, nem apresenta qualquer realização concreta (exceto um saite na internet, de resto bem informativo), mas representa ao menos um grupo de iniciativas cineclubistas (não confundir com cineclubes efetivamente organizados). Como tal, e na ausência de qualquer outra iniciativa, tem um lugar na trajetória do cineclubismo brasileiro.

[vii] Trato desse tema em meu artigo As igrejas, as esquerdas e os cineclubes (pertencimento e hegemonia nas instituições populares do Brasil), disponível em https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2020/03/as-igrejas-as-esquerdas-e-os-cineclubes.html

[viii] Address of the Central Committee to the Communist League, disponível em https://www.marxists.org/archive/marx/works/1847/communist-league/1850-ad1.htm

[ix] A íntegra das leis pode ser encontrada facilmente na internet.

[x] Nos anos imediatamente anteriores ao desgoverno atual, os recursos aplicados pelo Estado na produção de cinema eram de pouco menos de 1 bilhão de reais anuais, numa aproximação superficial. Assim, esses quase 3 bilhões equivalem mais ou menos, e coincidentemente, aos recursos perdidos durante a (falta de) gestão atual.

[xi] Essa questão é mais complexa do que isso. Apenas recordando: o governo Sarney começou a legislação que o PSDB completaria: a lei Rouanet, que expressa bem a política de cultura desses grupos, de privatização ação cultural do Estado. O Governo Dilma Roussef, ainda que formado com os mesmos partidos das gestões de Lula, foi uma nulidade no campo cultural. E Collor, Temer e Bolsonaro ilustram, em diferente momentos, um processo de degradação intelectual e moral baseado na desarticulação de instituições e programas.

[xii] O Sistema, entretanto, continua sendo lei e se aplica, de forma bem mais desarticulada, em variável medida, nos estados e municípios.

[xiii] DAGNINO, Evelina. 2004. “Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando?”, em MATO, Daniel (coord.), Políticas de ciudadanía y sociedad civil en tiempos de globalización. Caracas: FACES, Universidad Central de Venezuela, pp. 95-110. Acessível em http://biblioteca.clacso.edu.ar/Venezuela/faces-ucv/20120723055520/Dagnino.pdf

[xv] Desde o final da primeira década deste século os cineclubes não conseguem se reunir, com poucas exceções, em âmbitos local, regional ou nacional. Pretensas “jornadas nacionais de cineclubes” foram realizadas em 2013, 2015 e 2019, com no máximo três dezenas de iniciativas presentes (quando o País tem, no mínimo, algumas centenas delas). Para contornar essa situação, o atual sucedâneo da entidade nacional dos cineclubes, o CNC, decidiu estabelecer em seus estatutos que as assembleias (e eleições) da entidade se darão a cada 4 anos!

[xvi] Para Antonio Gramsci, intelectual não é a pessoa estudada, culta, mas aquela que tem a função social de intelectual, de liderança em seu meio. São os professores, engenheiros, padres, pastores, babalorixás, militantes de diferentes tipos, cineclubistas e muitos outros, que exercem uma função de informação, orientação, formação em seus ambientes sociais. Cada classe social tem seus próprios intelectuais, que ajudam a desenvolver a consciência do papel de cada um na sociedade, num sentido ou em outro. Os intelectuais das classes populares lutarão pelos interesses e ajudarão a organizar essa parte da população. Mas há, igualmente, os intelectuais da burguesia, do agronegócio, etc.