terça-feira, 25 de outubro de 2022

 

Ushers (lanterninhas) em formação 
Com uniforme e em formação "militar",
responsáveis pela ordem no cinema
E uma enfermeira, se precisar...

 

O terceiro turno e os cineclubes

 

O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro

 

O título do filme icônico de Glauber Rocha serviria bem para enquadrar a situação que vivemos neste segundo turno das eleições presidenciais no Brasil. Estamos diante de uma perspectiva de horror, representada pela possibilidade de reeleição do criminoso psicopata Bolsonaro: o Dragão da Maldade. Isso nos levaria a uma destruição tão grande das chamadas instituições republicanas e das estruturas administrativas ligadas à educação, à ciência, à cultura, ao meio ambiente e à segurança dos setores eufemisticamente denominados de vulneráveis, que ou implantaria de forma mais estável um já esboçado regime fascista à moda contemporânea ou, mesmo que essa fase fosse depois superada, ainda deixaria um monte de escombros sobre o já arrasado solo social brasileiro:  uma condição de atraso e dependência que levaria gerações para ultrapassar, ou pior, que poderia até se tornar nosso modo permanente de existir. No lado oposto temos um herói popular: Lula, o Santo Guerreiro que, independentemente de qualquer crítica que possa lhe ser feita, representa a única possibilidade de determos esse processo destrutivo já iniciado e de retomarmos uma trajetória de reconstrução institucional e social. Estamos diante de uma encruzilhada de alcance histórico inigualável.

 

No entanto, por mais vital, como de fato é essa decisão, seu resultado não altera – na melhor das hipóteses atenua - uma condição essencial do Brasil: sua subalternidade em relação ao capital internacional e a exploração sistemática, estrutural e histórica, assim como a exclusão da grande maioria da sua população dos mínimos benefícios permitidos pela evolução das condições de vida em nossos tempos. Só uma verdadeira revolução – política, social e econômica - mudará a essência dessas condições. Por isso, este texto não tratará dessa escolha imediata, mas do que nos espera no momento seguinte ao resultado das eleições. E daí para a frente.

 

A sobrevivência dos mais fracos

 

No Brasil, a conhecida cesta básica equivale – segundo levantamento recente do DIEESE – a 60% do salário mínimo. Os aluguéis mais baratos estão mais ou menos nessa mesma proporção, ou pior. Só essa soma, necessária, mas insuficiente para a sobrevivência, já ultrapassa o mínimo. Ainda segundo o instituto intersindical, uma família de 4 pessoas necessitaria de, pelo menos, 5,39 salários para viver. Ora, entre desempregados, trabalhadores informais e todas as demais categorias, cerca de 70% da população brasileira ganham menos que um salário mínimo. Uma parte considerável não consegue sequer comida suficiente, metade da população não tem esgoto e um contingente muito significativo não tem sequer acesso regular a água potável. Mais de 30 milhões passam fome! É o tamanho da população do Peru, por exemplo.

 

Essa grande maioria cuida, basicamente, de sobreviver. Numa sociedade moldada pelo passado recente de escravismo (cerca de 400 anos) e, posteriormente, das ditaduras (mais quase 40 anos), ao todo resta-nos menos de um século de “liberdades democráticas” temperadas de privilégios, preconceitos e exclusão. As maiorias – mulheres e negros, por exemplo – e outros segmentos de brasileiros, junto com aquelas, ainda têm sua situação definida, e piorada, em função de características de gênero, de raça, ou segundo heranças e opções culturais e comportamentais.

 

O Brasil – os dois terços da população que praticamente definem o que é este país - vive na miséria. Segundo o dicionário: um estado de carência absoluta de meios de subsistência. Miséria também é um estado de alma: uma situação permanente de indigência, de penúria, acompanhado de enorme sofrimento, infelicidade, desgraça. A luta pela sobrevivência em seus níveis mais básicos não favorece o tirocínio ou o juízo moral: as opções éticas e a compreensão da vida social tendem para as escolhas que permitam a alimentação, o abrigo, a segurança. Ou, em muitos casos, apenas a ilusão desse abrigo e segurança. Ainda mais: os que escapam desses limites também estão presos na instabilidade de sua condição – as fronteiras de pobreza no Brasil oscilam conforme os governos e os ciclos econômicos – e apresentam esse perfil ideológico de medo da pobreza que, como bem definiu Paulo Freire, favorece uma espécie de consciência necrófila, transformando a frágil superação da condição de oprimido pela necessidade de, por sua vez, reproduzir a opressão. A base social mais ampla da psicopatia bolsonarista se enquadra nessa explicação freiriana.

 

Mas a grande maioria não está sequer nessas regiões limítrofes, e sim nas situações mais graves de carência. A miséria, a luta diária pela sobrevivência básica, também trazem uma dificuldade extrema de formular um projeto próprio de emancipação, de poder compreender, ter consciência de seu papel na sociedade complexa e na história. A luta pela sobrevivência, com alguma frequência, vira competição; e esta facilita, empurra ao crime.

 

Tanto para Freire como para Gramsci, a consciência de classe é um processo em relação constante com práticas de luta social; elas é que constroem a hegemonia de valores contrários à exploração do trabalho, de emancipação e de solidariedade. A definição de uma nova ordem social e moral se dá no próprio processo da sua construção. É na luta que aponta para, ou resulta em novas formas de relação social e na construção de instituições, isto é, de formas de organização, de valores morais, comportamentos e normas com que vão se tecendo as bases e a estrutura uma nova sociedade, com novas formas de convivência entre as pessoas, de administração e distribuição da produção, de definição de valores e projetos para o futuro da humanidade.

 

A condição miserável de grande parte da população brasileira, assim como sua herança histórica de exclusão e exploração extremas não facilitam a tarefa de compreensão e construção de novas instituições, de uma nova sociedade. É mais difícil pensar em deter a destruição do planeta quando não se tem água para beber, ser solidário quando se buscam restos de comida (e, no entanto, exemplos de solidariedade são tão comuns entre os que pouco têm). Por isso podem florescer as crenças que situam a felicidade num mundo imaginário, místico e sempre por vir, iminente mesmo. Mas que, na verdade, nunca chega.

 

De fato, a crença religiosa – e o milenarismo que acompanha as seitas de maior sucesso no País, nos últimos anos – é muitas vezes uma forma de descrença, de desânimo, de abandono da esperança no real. Descrença nas possibilidades de gerir sua própria emancipação no mundo real, remetendo-a ao plano do divino. Algumas igrejas, constituídas como grandes corporações, e mesmo como partidos políticos (próprios ou ocupados em alguma medida), oferecem interpretações da esfera divina para as opções materiais, sempre conservadoras no plano das relações sociais e reacionárias no campo da economia – o que é a antítese das necessidades da população e mesmo dos princípios de fraternidade, paz e justiça que constituem o discurso e as crenças não apenas do cristianismo, majoritário no Brasil, mas de todas as religiões.

 

Nossa miséria também se reflete nas características da classe dominante, dependente por sua vez do domínio e controle das classes dominantes do “primeiro” mundo: aquele que vem antes, tem a primazia, detém a hegemonia real. Nossa classe dominante também não tem perspectiva de futuro e limita-se a posturas predatórias e oportunistas, violentas e cruéis, cujos exemplos recheiam nossa história. O oportunismo estrutural das “elites” brasileiras também é uma forma de descrença e de desânimo, mas marcadas pela adesão confortável ao mais forte, ao governante, ao estabelecido.

 

As eleições, as ruas e o cotidiano do proletariado

 

A formação das classes subalternas criadas com o capitalismo, nos países centrais inicialmente, foi marcada pela superexploração, pela violência e por níveis de miséria e fome que não são nada estranhos à experiência de seus equivalentes na população brasileira contemporânea. O proletariado foi expulso do campo, concentrando-se nas áreas urbanas, juntando-se a outros pobres como massa disponível para o trabalho fabril – que caracteriza o capitalismo sobretudo do século 19 – e para a prestação de serviços à burguesia e seus servidores mais aquinhoados. Reunidos em grandes contingentes nas fábricas, convivendo e partilhando uma mesma condição – e sendo, ao mesmo tempo, a base principal da formação do capital - o operariado se tornou uma força política e formou a vanguarda política dos segmentos populares. Durante mais de um século, foi essa vanguarda que conduziu as lutas e as maiores conquistas das classes trabalhadoras, entre elas a grande revolução que deu origem à União das Repúblicas Soviéticas.

 

Depois da 2a. Guerra Mundial outros segmentos também tiveram um protagonismo mais decisivo: os camponeses na constituição da República Popular da China, e muitos setores populacionais unidos em revoluções anticoloniais e socialistas na África, principalmente, mas também na Ásia e na América Latina.

 

Os últimos 50 anos, no entanto, estão marcados pela acumulação de experiência pelo Capital no enfrentamento – e, em muitos casos, neutralização - daquelas lutas; pelo desenvolvimento das forças e dos processos produtivos, com o estabelecimento sempre crescente da hegemonia do capital financeiro; pela expansão geográfica e vertical do sistema, com a derrocada do sistema soviético e, mais recentemente, pela revolução digital, afetando não apenas a produção, mas resultando na criação de sistemas planetários de comunicação e transmissão de dados, valores e controles sociais.

 

As classes trabalhadoras não lograram progressos significativos em sua emancipação neste último período. Ao contrário, houve um recuo bastante generalizado nas principais instituições criadas – e nos direitos conquistados - pelas lutas dos trabalhadores, especialmente em seus partidos políticos, sindicatos e outras organizações e movimentos sociais. O proletariado não deixou de lutar com as mesmas disposição e intensidade a que a própria vida o obriga, mas encontra-se enfraquecido e desorientado. Muitas de suas manifestações não têm coerência de propósitos (como o Occupy Wall Street, por exemplo) e se esgotam sem objetivos concretos; outras não conseguem unidade nos objetivos, como os Coletes Amarelos na França, e muitas já não mobilizam a maior parte dos que seriam interessados. Na América Latina temos ondas que se entrechocam, de avanços e recuos políticos que, no entanto, não estabeleceram até agora mudanças mais duradouras.

 

O Brasil tem uma história própria, dependente, e construída com relativamente menos protagonismo popular que o das nações mais avançadas do sistema. Mesmo assim criou uma sociedade civil forte o bastante para, no período referido, derrubar a ditadura. Grande e significativa vitória, mas não o suficiente para construir uma democracia vigorosa ou estável. E mesmo essa sociedade civil comparativamente frágil também experimentou o refluxo e o enfraquecimento de suas instituições. O Partido dos Trabalhadores, que foi uma espécie de cume da fase de avanço popular, não conseguiu apontar caminhos realmente sólidos, indispondo-se logo de início com a Constituinte – o outro ponto alto das lutas populares e democráticas –, e paulatinamente adaptando-se às exigências e costumes da via político-institucional à moda brasileira, enfraquecendo as bases populares organizadas e mesmo comprometendo seu próprio prestígio. Seus governos, de conquistas significativas – de fato, os melhores de toda a nossa história republicana -, ao mesmo tempo não ajudaram a organizar os trabalhadores nem estabeleceram instituições sólidas sob o controle das maiorias. Outros partidos, como o histórico Partido Comunista, se desconjuntaram: uma parte substancial simplesmente aderiu, transformando-se em complemento de partidos liberais ou ainda mais à direita, e uma pequena parte busca uma recomposição partidária e ideológica coerente, mas sem conseguir superar, ainda, a irrelevância política e social. O PCB de hoje divide esse espaço de isolamento com outros partidos nanicos: PSTU, PCO, UP. A cisão dos anos 60 do velho Partidão, o PCdoB, é mais importante que esses no campo parlamentar, mas também é mais uma força auxiliar do PT do que uma agremiação partidária com propostas claras, além das que se referem ao aparato político institucional. O que Gramsci, em referência a Maquiavel, chamava de “príncipe moderno”: o intelectual coletivo capaz de conduzir a construção e estabelecimento de uma nova hegemonia, é no Brasil um conjunto de forças ainda muito dispersas e que sequer conseguem estabelecer uma unidade operacional numa eleição como a que estamos vivendo. Essa unidade, aliás, teria dado à classe trabalhadora a vitória no primeiro turno das votações.

 

Essas chamadas esquerdas, contudo, constituem o patrimônio e a expressão concretas da organização do proletariado brasileiro real (constituído por uma grande maioria de desempregados e subempregados, além dos trabalhadores mais “tradicionais”, se cabe a expressão). Elas ajudaram a criar e a manter as perspectivas políticas dos trabalhadores limitadas atualmente ao campo eleitoral e às “ruas”, isto é, passeatas e comícios. Isso não deixa de ser um reflexo de uma crescente ausência das esquerdas nas organizações e instituições populares. De fato, nestas eleições, a ausência da apresentação de programas e, especialmente no segundo turno, a aceitação do estilo fascista imposto pelo bolsonarismo, com intrigas e difamação, é mais um indício claro da incapacidade de realmente organizar a participação popular no processo político. No plano ideológico – e, exemplarmente, nas chamadas mídias sociais – a vantagem da direita (que, note-se, costumamos designar no singular...) ou, no mínimo, do seu estilo e de suas pautas, parece evidente.

 

Como votar com consciência política, social, histórica, se essa discussão não é a principal da campanha eleitoral? E mais, se mesmo essa questão, quando muito, só aparece na campanha eleitoral, a mais curta da história recente? As ruas, por sua vez, foram crescente e nitidamente melhor aproveitadas pelos setores reacionários. O carisma fascista do Führer, do Duce ou do Mito; a apropriação muito bem sucedida dos grandes símbolos nacionais (bandeira, suas cores, a própria Seleção de futebol), além do uso escancarado das instituições e dos recursos públicos (em certos casos, até com a anuência das esquerdas parlamentares) mostraram-se, em geral, mais eficazes – ainda que traficadas - para mobilizar maiores e/ou mais visíveis manifestações nas ruas, sem que a contestação das múltiplas ilegalidades do processo tenha conseguido mostrar a mesma efetividade.

 

As instituições geradoras de valores, os aparelhos de hegemonia, segundo Gramsci - dos partidos políticos aos sindicatos, das associações de bairro e de movimentos sociais aos cineclubes -, foram em grande parte abandonadas, ou desprovidas de muitas de suas práticas e atribuições pelas esquerdas, pelas vanguardas políticas, sociais e culturais. O convívio nas organizações proletárias e populares, a construção coletiva da identidade de classe (da qual faz parte essencial a compreensão da importância das questões raciais, de gênero e outras, como também da defesa do planeta) nas práticas e lutas do cotidiano foi deixado sobretudo às igrejas mais conservadoras, que se dedicaram a isso com afinco. E às mídias, que também intervêm profundamente na vida diária de todos. É inclusive exemplar como essas duas coisas se somam: proselitismo religioso e mídias audiovisuais.

 

Proletariado ou público

 

Ao mesmo tempo que o proletariado se expande, com o assalariamento dos trabalhadores do campo ou com a proletarização de setores médios, por exemplo, o papel central do segmento operário e fabril diminui comparativamente em importância. No Brasil, com a desindustrialização; no mundo todo, com o crescimento da automação e o aumento do setor de serviços.

 

Tal como o ambiente da fábrica, os espaços comunitários – com exceção, claro, dos estabelecidos pelas igrejas, especialmente as evangélicas – também perdem relevância, em boa medida para as mídias, que substituem o convívio direto pela interação virtual e automatizada. É unânime a consideração de que as mídias hoje constituem os principais veículos de comunicação, de formação e de socialização, em seus espaços cada vez mais “íntimos”, regulados por sistemas automáticos organizados para a produção de informação para os donos dos meios de produção: o Capital, a classe dominante. Embora existam iniciativas de resistência, elas são extremamente minoritárias. A própria estrutura das plataformas em que estão instalados esses espaços virtuais é concebida para se apropriar e, na maioria dos casos, neutralizar ou cooptar essas iniciativas, especialmente as de maior público, através de sua monetização.

 

O outro aspecto essencial desse sistema é que sua produção de lucro se dá pela venda de dados de seus consumidores a anunciantes – os metadados -, num processo cumulativo ininterrupto de coleta de informações as mais diversas: de interesses e hábitos de consumo, de locomoção, mas também financeiros, de saúde e muitos outros. Com isso, o Capital pode cada vez mais aperfeiçoar e sintonizar sua comunicação com esse público, com esses consumidores, esse proletariado expandido. Além desse controle das informações sobre as necessidades e anseios do público, os mesmos dados servem para o controle político e social, e para a repressão mesmo, no que hoje se chama de “capitalismo de vigilância”.

 

As maiores corporações do mundo se apropriam dos dados de todos que frequentam suas plataformas – Google, Facebook, YouTube, Netflix, etc. - ou que adquirem seus produtos – Apple, Microsoft, Amazon – ou, em muitos casos, as duas coisas juntas. Esses dados das vidas de todos e de cada um são, por direito, privados. De fato, definem a própria privacidade no campo das relações sociais contemporâneas. No entanto, eles são apropriados sem nenhuma compensação, sem autorização e sem controle por parte do público. Essa apropriação é muito semelhante à da mais-valia, do sobrevalor produzido pelo trabalho que não é restituído integralmente ao trabalhador, mas apropriado pelo capitalista que o emprega. Por isso, vejo uma identidade crescente entre o conceito de público – receptor e consumidor de todas as mídias – e o proletariado, isto é, o conjunto de assalariados e outros dependentes do capital. Em ambos os casos estamos designando uma mesma população, que tem como característica principal não ter a propriedade dos meios de produção: hoje tanto os de sua própria vida material, como também do seu imaginário, da sua vida no campo simbólico – ou espiritual.

 

As mídias audiovisuais (e o cinema)

 

Sem me estender muito sobre as reviravoltas etimológicas da palavra meio (de comunicação), lembro que ela veio do latim (medium, plural media), assim passou para o inglês e, através da pronúncia macarrônica do plural naquele idioma, voltou para nós e acabou sendo abrasileirada como mídia ou mídias. A ideia de meio - uma maneira, um sistema, um suporte, um veículo ou aparelho - de comunicação não se limita, como costumamos empregar, aos meios mais modernos ou mesmo audiovisuais de comunicação. A escrita é um meio de comunicação. De fato, o meio de comunicação mais básico e essencial é a fala: um meio que utilizamos com extensão e sutileza que nos são exclusivas; constituem uma das principais características distintivas da espécie humana entre todos os animais.

 

Embora a fala pudesse ser incluída num campo do áudio, e muitos meios de comunicação sejam também visuais – a pintura, a fotografia, mesmo a escultura –, convencionamos chamar de meios ou mídias audiovisuais os que envolvem recursos técnicos definidos, principalmente mecânicos e eletrônicos, em sua criação e uso. O cinema, que como sistema de captação e projeção de imagens (ainda sem som) se consolida no final do século 19, e que, no final dos anos 20 (um pouco depois do uso generalizado do rádio) passa também a reproduzir o som, pode ser considerado a base do paradigma audiovisual. Em boa medida, outros meios audiovisuais já estavam em desenvolvimento ao mesmo tempo que o cinema: o rádio e outras formas de reprodução e transmissão do som, e mesmo a televisão, que só vai se tornar predominante depois da 2ª. Guerra Mundial.

 

A evolução técnica experimenta um salto qualitativo com a introdução da tecnologia digital, que redefine a produção, difusão e consumo, ou recepção, dos meios audiovisuais mais ou menos um século depois da “invenção” do cinema. Penso que poderíamos falar em duas revoluções: uma começando com o cinema (cujo desenvolvimento é bem anterior, desde a invenção da fotografia, ou mesmo antes), na última década do século 19, e outra, a digital, com generalização dessa tecnologia e a constituição da rede mundial de computadores. Mas o paradigma audiovisual, enquanto tal, começa e se define com o cinema.

 

Todo meio de comunicação implica numa linguagem, na verdade linguagens: diversas variações e evoluções do modo de expressão do meio. É nesse sentido, principalmente - pois há outros - que o cinema estabeleceu o paradigma audiovisual. É sobretudo em torno da expressão da realidade em imagens e movimento, que o cinema inaugurou, que se constituem as variações derivadas: na televisão e em outras telas, isto é, sistemas de captação e reprodução das imagens e sons. Na verdade, em muitos níveis, todas as formas de expressão e comunicação, todos os meios, se influenciam mutuamente todo o tempo, e têm suas raízes numa mesma capacidade ancestral dos seres humanos de se comunicar, determinada pela sua vida social e pela habilidade em transformar a natureza (e, assim, a si próprios).

 

Povo, proletariado e público

 

De certa forma, sempre existiram públicos: desde que os homens se comunicam em suas comunidades. Mas hoje, quando falamos em público, estamos nos referindo aos públicos do nosso tempo. De fato, com a generalização quase absoluta dos aparelhos digitais conectados numa rede planetária, o público contemporâneo praticamente se confunde com o conjunto da população da Terra. Público também remete à ideia de ser público de alguma coisa, isto é, de um espetáculo de qualquer tipo, mas também, em outros níveis, das mídias: o público leitor, público de cinema, de televisão, etc. Até chegarmos ao público total, esse que chamei de público contemporâneo, que se confunde com a ideia de povo, de proletariado.

 

E por que essa identificação? Porque se o público é sempre público de alguma coisa, seu papel social ainda seria, num certo sentido, dependente, subalterno a quem produz aquela “alguma coisa”: o espetáculo e os outros produtos industriais (livro, cinema, televisão, internet, etc.). Como o proletariado, como já foi dito anteriormente, o público não detém os meios de produção daquilo de que é público.

 

Mas a coisa é mais complicada. Ou dialética. Ainda que ocupe essa posição formalmente subalterna, as mensagens, os sentidos de que o público é público, se constituem socialmente através e apenas através de sua adoção ou apropriação pelo público. Como já demonstrou Bakhtin, os sentidos variam o tempo todo, não numa relação dualista, tipo emissor-receptor, mas numa espiral de interação permanente, que não tem começo, não tem um lado principal: o emissor de uma mensagem (ou de um enunciado, como diria Bakhtin), dos sentidos nessa mensagem, já é produto de um repertório constituído; e sua mensagem e sentidos serão reconstituídos e ressignificados pelo interlocutor, ou pelo público. Esse é um processo permanente, que varia também segundo os contextos históricos e sociais, em ambientes de classe, de território, etc. De certa forma, como todos os participantes nesse processo – receptores/emissores/receptores - estão inseridos num público geral, podemos dizer que o público não é apenas o público de alguma coisa, mas o sujeito dialético, o autor em última instância daquilo de que é, também, público. E, como o proletariado, que não detém os meios de produção, mas é o produtor real e concreto de toda a riqueza, o público é o criador, o autor de todos os sentidos. O público é, na atualidade, a expressão no campo simbólico do que o conceito de proletariado exprime nos campos econômico e social.

 

Público, proletariado, cinema e as mídias audiovisuais.

 

Esse público geral ou contemporâneo a que já me referi, especificamente nessa acepção se constitui inicialmente com o advento do cinema. Em sua formação e consolidação, o cinema formou (ou, de fato consolidou, a história é mais complexa) um público de um novo tipo. Um público muito mais amplo do que outras mídias tiveram anteriormente: pela primeira vez mulheres e também crianças foram parte importante, e às vezes, numericamente maiores que outros segmentos na frequentação desses espaços públicos. Esse público surge com o cinema e, sem ele, o cinema – todo o dispositivo econômico e social – também não existiria. São duas faces da mesma moeda.

 

O cinema também é parte da chamada modernidade: uma etapa do capitalismo que alguns chamam de segunda revolução industrial (especialmente no século 19 e sobretudo entre 1870 e 1920), com a confluência de diversas inovações tecnológicas nos transportes (estradas de ferro, aviação), nas comunicações, transformando o próprio ritmo da vida urbana. O cinema foi o dispositivo mais importante entre outros que também caracterizam essa modernidade, como o fonógrafo, o telefone e outros. O proletariado se consolida na mesma época, no mesmo contexto e no mesmo processo. O público de massa inicial do cinema era especificamente de trabalhadores e imigrantes pobres (na segunda década do século 20 se expande ainda mais, assimilando as classes médias).

 

Se o cinema foi muito importante naquela fase do capitalismo, seu papel já evoluiu no pós-guerra com a televisão e, no final do século, com a internet. Atualmente, as mídias ampliam e redefinem o papel do cinema e o conceito de público. O público continua sendo a expressão do proletariado no plano do simbólico, mas ambos mudaram. De fato, a transformação das formas de trabalho – em boa medida devido à revolução digital – é uma das grandes características do tempo que estamos vivendo. Muitas formas de produção, inúmeras profissões, diversos ofícios estão desaparecendo, ou sendo profundamente transformados e reorganizados. A revolução digital não acabou; as revoluções não “acabam”, mas diluem-se e se integram a uma nova situação, com suas próprias condições a serem, por sua vez, superadas. Hoje a mídias não são apenas importantes, no sentido que o cinema inicialmente instituiu: agora elas penetram, interferem e interagem, de forma inaudita e própria, na vida de todos e de cada um. Em escala muito maior e numa proximidade, numa intimidade, poderíamos dizer, inédita. E é nesse campo, hoje o mais importante, que a direita, mesmo que superficialmente, parece ter uma dianteira.

 

E os cineclubes?

 

Os cineclubes não surgiram nos anos 20, como afirma quase que um consenso – no entanto desinformado e equivocado -, mas junto com o cinema, no processo de luta pela apropriação dos sentidos produzidos pela nova linguagem, na afirmação da nova mídia. À medida que o público se formava (processo que se consolida por volta do final da primeira década do século 20), também evoluíam suas formas de resistência ao cinema que se organizava para dar mais lucro e melhor entreter e controlar as massas que ele, ao mesmo tempo, ajudava a formar.

 

Descontente com um cinema que, em síntese, representava sua alienação e dominação, uma parte importante do público resistia a procurava formas próprias de organização como sujeitos, protagonistas do processo de produção do dispositivo do cinema. Insatisfeitos com os filmes que lhes eram apresentados, grupos (sobretudo de militantes socialistas, anarquistas, feministas) produziam seus próprios cinejornais, documentários e mesmo ficções, e alugavam salas, ou usavam as das organizações de trabalhadores, para sua apresentação. Também no final da primeira década do século, consolidam-se iniciativas do tipo que hoje reconhecemos como cineclubes: com estatutos democráticos e salas próprias e mais permanentes de exibição, além da produção de filmes. Essa luta criou o que chamo de paradigma cineclube: uma organização exemplar - uma instituição, constituída inclusive juridicamente - para a apropriação do cinema de forma coletiva e democrática, não capitalista. Essas mesmas características se encontrarão reproduzidas em todas as outras formas de organização em torno do cinema – e hoje no campo mais amplo das mídias audiovisuais - que têm origem no público, e não na estrutura industrial, capitalista, do cinema e das mídias audiovisuais.

 

Nos anos 20, o cineclubismo, como ideia de organização integral de apropriação do cinema pelo proletariado, se fragmentou, dando origem a várias instituições: o cinema educativo, o cinema amador, os festivais e arquivos de filmes, e mais tarde (já nos anos 50) o ensino universitário do cinema.

 

A fragmentação do primeiro modelo de cineclube deu origem a uma forma nova e dominante de cineclube: uma organização limitada em grande medida à recepção dos filmes. A cinefilia, ou a recepção crítica do cinema, herdou parte da tradição já estabelecida: a organização coletiva, democrática e a ausência de finalidades comerciais. Ela teve importante papel na disseminação e mesmo na constituição de uma cultura cinematográfica, em boa parte crítica, nos mais diferentes países. Mas também elitista e paternalista, muitas vezes calcada na valorização absoluta do autor e, em contraposição, numa visão paternalista e até preconceituosa em relação ao público. De certa forma, estabelecia um modelo hierárquico, estamental ou de castas: havia o autor, objeto de culto; o cinéfilo, especialista, esclarecido, e o público, ignorante, a ser dirigido, “alfabetizado”. De qualquer forma, esse modelo cinéfilo se expandiu por praticamente todo o mundo, sendo talvez o principal instrumento de formação de culturas cinematográficas – marcadamente nos países periféricos, como o Brasil – contraditórias: ao mesmo tempo críticas e progressistas, mas simultaneamente elitistas, e concentradas nos ambientes intelectuais e universitários.

                                                                                                                   

Com a televisão e outras formas de reprodução da imagem em movimento - VHS, DVD, etc. -, que hoje podemos situar como prenúncios da revolução digital, aquele modelo da cinefilia entrou em processo de crise. De fato, todo o dispositivo social do cinema entrou em crise. O cineclubismo, em primeiro lugar, diminuiu enormemente nos países centrais (anos 50); e um pouco mais tarde, na periferia do sistema. Na América Latina, as ditaduras dos anos 70 e 80 interferem de forma diferenciada nesse processo. O Brasil, particularmente, teve um movimento cineclubista bastante atuante até a segunda metade dos anos 80 e importantes cineclubes “independentes” até os anos 90. De toda maneira, os muitos cineclubes que ainda existem em todo o mundo baseados naquele modelo cinéfilo, limitado à exibição e debate de filmes considerados especiais ou mais relevantes, constituem o que Raymond Williams chamou de formas residuais de cultura: práticas que já não correspondem aos interesses e necessidades do público contemporâneo e apenas refletem modos e formas, em grande parte superados, de organização da comunicação pelo que chamamos de “imagem em movimento”.

 

Isso porque o cinema morreu, metaforicamente. Apenas de certa forma, claro, é preciso frisar. O cinema – na verdade o filme de ficção ou documentário (excluindo todas as outras formas de cinema) exibido em sala escura para um grupo de espectadores relativamente pequeno – já não é o formato ou o espaço mais relevante, nem economicamente nem quanto à participação do público. O espaço simbólico disputado pelos setores populares é o espaço das mídias: a televisão, o computador, os celulares. O modelo cinéfilo não (se) dá conta das mídias, não integra as mídias. O cineclubismo – como outras instituições geradoras de valores, outros aparelhos de hegemonia – corre o risco de morrer, como o cinema “morreu”. Ou definhar numa relativa irrelevância cultural e social, limitado a públicos muito reduzidos e a setores da sociedade que não são tão fundamentais nem para o próprio cinema nem para a transformação da sociedade. É preciso um novo tipo de cineclube, para novos tempos e novos desafios.

 

O cineclube no terceiro turno (no Brasil e no mundo)

 

Os cineclubes em todas as suas formas – o cineclube revolucionário do início do cinema; o cineclube da cinefilia que se espalhou por todo o mundo; o cineclube educativo que se disseminou pela educação formal e informal; os clubes de cinema voltados para a produção amadora, entre vários outros – influenciaram, em maior ou menor grau, a cultura e a sociedade nos diversos países e contextos em que existiram. Na análise que fiz mais no início deste artigo, falei da necessidade absoluta de instituições sociais e comunitárias que organizem, representem e deem expressão aos trabalhadores, à grande maioria da população brasileira. Um novo tipo de cineclube deve ter a capacidade de ser uma dessas instituições. E acredito que o cineclube pode realmente ter esse papel e uma importância fundamental nestes tempos de centralidade das mídias audiovisuais.

 

Para isso, o primeiro e indispensável passo é o reconhecimento e superação do isolamento de classe do cineclubismo. Esse fenômeno não é brasileiro, mas mundial. Sua forma é que tem características próprias. E estas não se devem exclusivamente – e talvez nem principalmente – aos animadores dos cineclubes existentes. Em boa parte, explicam-se pela própria estreiteza de muitos setores populares, naquilo que Francisco Foot Hardman chamou de “estratégia do desterro”: uma desconfiança anti-intelectual, uma espécie de “purismo de classe” que apenas revela a permanência de uma incapacidade de interagir e dirigir setores mais amplos da sociedade – condição necessária para construir uma nova hegemonia. Nos cineclubes que ainda operam sob o modelo cinéfilo, mas que não satisfazem, de alguma forma, seus integrantes, é necessário ter a capacidade de reconhecer a realidade: que não conseguem reunir um número significativo frequentadores, são incapazes de manter uma atividade mais intensa que as poucas exibições mensais ou quinzenais, ou que, nos espaços virtuais, atingem ainda menos pessoas. Intelectuais, professores, estudantes universitários e cinéfilos que não habitam torres de marfim precisam procurar as organizações populares para nelas e com elas construírem cineclubes. As escolas de ensino básico e médio – através dos seus professores e alunos - devem se articular, integrar e atuar conjuntamente com as organizações comunitárias de seus bairros e cidades. Os sindicatos, associações comunitárias e movimentos populares precisam também, por sua parte, procurar educadores, intelectuais, artistas e técnicos progressistas, ligados às causas e projetos populares, para ajudarem a organizar e manter cineclubes em suas sedes, ocupações, acampamentos, e formar, num espírito solidário, não paternalista, os cineclubistas desse novo tipo. Também é necessário inventar e expandir o modelo de organização e ocupação de espaços: cineclubes podem ser instalados nas proximidades de igrejas, quartéis, e outras instituições que atraiam ou reúnam grupos normalmente afastados ou excluídos de formas de entretenimento mais crítico ou de formação mesmo. E mais, cineclube não é uma atividade eventual, um encontro cultural mensal: nesta época de presença permanente e ubíqua dos celulares, o cineclube deve ser uma organização complexa, que também esteja presente na dimensão cotidiana e virtual do seu público.

 

Uma revolução, entretanto, no seu sentido mais pleno, não é feita por entidades culturais ou educacionais. Certamente também não é resultado de eleições, especialmente da forma como são realizadas hoje no Brasil e em outras “democracias ocidentais”. São muitos os exemplos – e os nossos são bem recentes – de governantes progressistas eleitos e logo derrubados pela violência fascista (Salvador Allende, no Chile) ou por ardis “parlamentares”, como aconteceu com Fernando Lugo, no Paraguai, e com Dilma Roussef no Brasil – ou pela combinação dos dois, como com Evo Morales, na Bolívia. Mas também não acontece “nas ruas”, exceto em estágios muito avançados de luta, quando esse tipo de manifestação é geral, avassalador, impossível de ser detido. Mesmo assim, geralmente isso acontece em combinação com outras ações – sobretudo a greve geral. A mobilização para uma transformação radical da sociedade precisa ser conduzida por uma direção política capaz de liderar a edificação das novas instituições que vão constituir uma nova sociedade. Essa força de mobilização ampla e radical e a capacidade de formar uma direção experiente e capaz é produto da combinação necessária de todos esses níveis de ação e organização. Cada um deles é essencial, mas só em conjunto podem produzir uma transformação radical e plena.

 

No Brasil é bem evidente a falta – e como já disse, o recuo histórico – de instituições culturais e formativas. Mas não falo das que querem ensinar alguma coisa ao povo ou ao público, que querem transferir uma cultura decorativa, pretensamente apolítica, inócua. As organizações que nos interessam aqui precisam estar do lado da grande maioria da população, da classe trabalhadora, e desenvolver com esse público, coletivamente, um projeto de emancipação. Não me canso de lembrar do Cinema do Povo, criado na França em 1913, e que propus fosse considerado “o primeiro cineclube”, devido à documentação bastante completa que mostra essa condição. Seu lema, válido até hoje – mais de um século depois - para os cineclubes engajados nas causas populares: “Divertir, instruir, emancipar”. É preciso atuar nessas três instâncias.

 

O cineclube de novo tipo

 

Com a crise, que já mencionei, do modelo predominante de cineclube, o cineclube cinéfilo, várias de suas características passaram a se desestruturar. Creio que o Brasil, pelas muitas vicissitudes que este artigo já mencionou também, é possivelmente o país onde esse processo foi mais longe. Hoje não existe praticamente por aqui um cineclube organizado formalmente, com regras de participação e projetos de atuação deliberados democraticamente, e direções eleitas regularmente. A própria palavra cineclube em seus usos mais correntes, passou a designar apenas uma atividade - a exibição de um ou mais filmes (no caso dos curtas-metragens) acompanhada de debate ou palestra – e não a instituição organizada. Fala-se em “fazer um cineclube” a tal hora, em tal lugar; não em organizar um cineclube, permanente, sistemático, representativo.

 

O que, a meu ver, indica uma desestruturação do modelo “tradicional” de cineclube, de resto presente também em vários outros tipos de organizações culturais, educativas e políticas, é muitas vezes explicado como “informalidade” e “horizontalidade”. Haveria que se acrescentar também “gratuidade” para descrever completamente o que não é propriamente um modelo organizativo mas, bem ao contrário, um exemplo de incapacidade de organização institucional e democrática e, complementarmente, de sustentação de maneira autônoma de iniciativas estruturadas e representativas de comunidades organizadas. Corolários dessas características, as iniciativas aqui citadas são geralmente de grupos bem pequenos – e uma parcela significativa é mesmo exclusivamente individual – realizadas com grandes intervalos, frequentemente mensais e bastante precárias quanto a recursos, instalações e equipamentos.

 

A grande maioria dos cineclubes que assim se denominam no Brasil e, entre eles, os de maior organização e assiduidade, está instalada nas universidades. A instituição e os programas de verbas e bolsas de extensão acadêmica também são um elemento fundamental para a manutenção dessas atividades. É nesses ambientes, sem dúvida, onde melhor se realiza a proposta de exibição de filmes de alguma forma “alternativos” e a discussão de suas características estéticas, narrativas, políticas, entre outras. Há alguns cineclubes que são mesmo oficiais, mantidos por uma universidade e dirigidos por professores alocados também nessa função; estão entre os mais ativos e influentes.

 

Nos anos 70 e 80, num contexto de fortalecimento da sociedade civil contra a ditadura militar, os cineclubes se reconheciam e se estruturavam como um movimento social e cultural e se organizavam também em comunidades populares, junto a movimentos sociais – inclusive étnicos e de gênero – e alguns sindicatos. Com os dois governos de Lula e a criação do programa Cultura Viva, depois seguido pelo Cine Mais Cultura (exclusivo para a exibição), o governo investiu bastante em seus projetos de exibição de filmes brasileiros em comunidades populares – mas já sem as características organizativas dos cineclubes do século passado. Depois dessas duas experiências, em seus momentos históricos, o cineclubismo de certa forma refluiu para o tipo de inserção social que (sempre) tivera até o início da Ditadura – e que tem em quase todo o mundo: nas classes médias cultas.

 

Um novo modelo de cineclube, penso, consistirá na recuperação das características democráticas e anticapitalistas que definiram o paradigma cineclube desde seu surgimento até a crise iniciada no terço final do século 20. Esse paradigma, que informa e influencia todas as outras formas de organização com origem no público, consiste na forma coletiva e democrática de organização e na ausência de finalidade de lucro, isto é, de apropriação privada dos resultados econômicos que a organização eventualmente produzir. O objetivo desse paradigma de organização é a apropriação integral do cinema pelo público organizado. Esse modelo, contudo, só será realmente novo – será a atualização da proposta cineclubista - se incluir em sua organização e propósitos a articulação com as mídias audiovisuais, sendo o cinema “apenas” uma delas, ainda que uma espécie de paradigma ele também, nas bases das inovações e diferenciações nas linguagens desenvolvidas em outras mídias.

 

Recompor e atualizar a proposta cineclubista de organização integral para a apropriação das mídias audiovisuais pelo público, na perspectiva de transformação democrática radical dos processos de expressão, comunicação e informação, bases estruturais de uma sociedade livre e justa. Em outras palavras, cineclube não pode mais ser cinefilia, no sentido de culto elitista do cinema. Mas também não pode ser “exibição e debate” que, no fundo, exprime objetivo semelhante. As tecnologias digitais, a difusão global de conteúdos e as perspectivas, em sua maior parte não realizadas, de interatividade - isto é, participação -, permitem a reconstituição da totalidade do processo produtivo da expressão audiovisual sob a forma do paradigma cineclube. A produção, a difusão, o consumo ou recepção, e a preservação da memória, do patrimônio imagético das comunidades humanas pode hoje ser integrado num mesmo processo, organizado num mesmo espaço social (comunitário): o do cineclube. A divisão de trabalho capitalista, organizada por setores corporativados (as “indústrias” de produção, distribuição e exibição), pode ser superada pela organização integral, democrática, participativa, do público informado e organizado, e pela sua intercomunicação planetária em redes livres e públicas.

 

O novo modelo de cineclube deve integrar todas as mídias num processo unificado de atividades orgânicas e críticas nos campos da informação, da formação e educação, do entretenimento produtivo, da preservação da memória e das identidades e da diversidade. Deve saber ocupar, organizar e gerir as dimensões presenciais e virtuais de suas atividades. Articular a dimensão comunitária, local, de base, e a dimensão social, planetária, em redes.

 

O objetivo político do novo tipo de cineclube, aquele que pode ajudar a construir uma novo modelo de comunicação e uma nova sociedade, é superar e substituir as instituições vigentes: alienantes, controladoras, de dominação. Em uma palavra: capitalistas. O objetivo político do novo tipo de cineclube é a substituição/superação das sala comerciais de cinema, das televisões e das redes sociais.


O objetivo político do novo tipo de cineclube não é modesto, não é fácil e não é simples. É apenas indispensável.


Algumas referências no texto:

 

Freire, Paulo – Pedagogia do Oprimido - https://cpers.com.br/wp-content/uploads/2019/10/Pedagogia-do-Oprimido-Paulo-Freire.pdf

Gramsci, Antonio. 2002. Cadernos do Cárcere. 6 volumes. São Paulo: Civilização Brasileiratambém acessível na internet.

Maquiavel, Nicolau. 2019. O Príncipe. Ed. Do Senado Federal (https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/573552/001143485_O_principe.pdf)

Bakhtin, Mikhail (Voloshinov, Valentin). 2014. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec. (https://hugoribeiro.com.br/biblioteca-digital/Bakhtin-Marxismo_filosofia_linguagem.pdf)

Williams, Raymond. 2011. Cultura e Materialismo. São Paulo: UNESP. (https://www.academia.edu/34926870/williams_raymond_cultura_e_materialismo_pdf)

Hardman, Francisco Foot. 1984. Nem pátria nem patrão! Cultura operária e anarquista no Brasil. Ed. Brasiliense (https://pdfcoffee.com/nem-patria-nem-patrao-francisco-foot-hardmanpdf-pdf-free.html)

 

Rocha, Glauber (dir.) O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro – 1969 - (https://www.youtube.com/watch?v=SSEnlffMB5s&t=695s)

DIEESE - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (https://www.dieese.org.br/