segunda-feira, 26 de outubro de 2020

 


 1º. Seminário de Cineclubismos Latino-americanos                           História e histórias 

O Seminário de Cineclubismos Latino-americanos é um colóquio de pesquisadores e militantes cineclubistas que se reunirá periodicamente para a apresentação e debate de pesquisas sobre o cineclubismo e outras atividades relacionadas às práticas comunitárias de apropriação do cinema pelo público. Cineclubes são, por definição, associações democráticas, sem fins lucrativos, que se organizam com a finalidade de se apropriar do cinema e outras mídias audiovisuais de diversas formas: assegurando sua acessibilidade às comunidades onde seu usufruto é difícil ou inacessível em razão de distância, preço ou outra; com o fim de melhor conhecer a linguagem, os estilos, a história dos produtos audiovisuais; tendo por objetivo a produção de filmes ou outras formas de expressão audiovisual, e finalmente, pelo prazer da fruição das obras, gêneros, estilos, nacionalidades e outras características dessas produções. Provavelmente todos os países da América Latina têm e/ou tiveram cineclubes, e sua existência se reflete no desenvolvimento do cinema e outras formas de expressão audiovisual desses países provocando, igualmente, efeitos mais ou menos importantes na cultura das comunidades em que se organizam e mesmo nas sociedades nacionais. Os cineclubes, e sua ação mais organizada como um movimento e uma ideia – o cineclubismo – são pouco conhecidos e só muito recentemente têm sido objeto de estudos e pesquisas, ainda muito incipientes para um amplo conhecimento do seu papel. 

Este é, em resumo, o objetivo deste Seminário: descobrir, conhecer e divulgar as diferentes formas que o cineclubismo assumiu e assume em nossos países. A cada edição, o Seminário terá um tema escolhido pelo Comitê Organizador. Em 2021 o tema é “História e histórias”. Buscamos, então, trabalhos sobre as histórias nacionais ou de grandes segmentos nacionais, culturais, políticos e, paralelamente, histórias de casos, experiências, de cineclubes relevantes para a reflexão sobre o cineclubismo. 

Eixos: 

● História do Cineclubismo em cada país, ou de períodos determinados dessa História – o nascimento do cineclubismo, o cineclubismo nacional sob determinado regime, etc. Também trabalhos comparativos entre países ou períodos; 

● História de cineclubes de segmentos importantes das sociedades nacionais: indígenas, negros, mulheres, LGBT, minorias culturais, étnicas, etc. (inclusive minorias latino-americanas em países anglófonos americanos) – ou períodos determinados dessas histórias; 

● Diferentes formas de publicações: produção gráfica editorial, cartazes, vinhetas, etc.; 

● Relações entre os diferentes cineclubismos e os cinemas nacionais ou sobre segmentos dessas cinematografias: étnicos, de gênero, de classe, etc.; 

● Diferentes formas de cinefilia, abordados sob um ponto de vista teórico, histórico, tecnológico, etc.; 

● Políticas públicas para o cineclubismo; 

● Determinados cineclubes ou experiências de tipo cineclubista, ou influenciadas pelo cineclubismo, em qualquer tempo e lugar dentro do tema latino-americano, e 

● Áreas ou eixos interdisciplinares como conservação fílmica, formação, tecnologias e produção, sempre que produzidas ou ligadas diretamente a cineclubes. 

Os trabalhos devem ter um mínimo de 10 páginas e um máximo de 20 páginas em entrelinha (1.5) e tipo Times New Roman 12 em PDF e sob norma APA. 

Os textos serão examinados e selecionados pelo Comitê Organizador e escolhidos para as apresentações visuais nas mesas que comporão esta primeira edição do Seminário, que será virtual. Os trabalhos que não forem selecionados para as mesas serão publicados digitalmente em espaço próprio do Seminário. Uma terceira seleção de textos, incluindo todos os textos apresentados no Seminário e a quantidade possível dos demais artigos serão publicados em livro. Os artigos publicados em livro terão um resumo em inglês. 

Datas e prazos: 

As inscrições para envio dos trabalhos completos se darão por formulário eletrônico disponível no link: http://abre.ai/seminariocineclubismoslatinoamericanos 

Após realizar inscrição encaminhar os trabalhos completos para o e-mail cineclubismoslatinoamericanos@gmail.com a partir de 26 de outubro de 2020. 

Os textos serão aceitos até 14 de junho de 2021. 

A seleção dos textos a serem apresentados durante o Seminário será divulgada em 06 de julho de 2021. 

O Seminário será realizado de 22 a 25 de julho de 2021 com mesas diárias virtuais.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Está disponível no canal Youtube do Cineclube Ó Lhó Lhó (https://www.youtube.com/channel/UCsRDK9L0SDw6YbxJY4cBzMQ) a série de conversas comigo sobre “Passado, presente e futuro do cineclubismo”. São 4 encontros de três horas cada um, com uma exposição minha seguida de debates. Penso que a série forma uma ampla introdução à teoria, à história e às perspectivas políticas presentes e futuras dos cineclubes.




segunda-feira, 30 de março de 2020

Exibição do filme biográfico de Edir Macedo para presidiárias


As igrejas, as esquerdas 
e os cineclubes
(pertencimento e hegemonia nas instituições populares do Brasil)

O milagre pentecostal

Embora o protestantismo esteja intimamente associado ao desenvolvimento da mentalidade capitalista desde seu surgimento e faça parte das práticas cotidianas e das instituições oficiais e públicas dos grandes países anglófonos, especialmente dos Estados Unidos, a implantação e o crescimento de sua vertente pentecostal no Brasil é surpreendente pela rapidez e extensão, tanto geográfica como social.

O protestantismo de Lutero, e especialmente de Calvino, coincidiram e se ajustaram muito bem à formação de uma mentalidade de poupança e investimento – indicações terrenas da “graça” que identificava os eleitos para o paraíso celestial - que seria uma das bases ideológicas mais importantes para o desenvolvimento do capitalismo, particularmente em suas fases mais iniciais. Essa relação entre riqueza e santidade não servia, entretanto, para as massas assalariadas que se formariam em etapas subsequentes do desenvolvimento desse modo de produção. No século 18, no epicentro das transformações econômicas e sociais que preparam e depois sediam a Revolução Industrial, uma nova contestação à religião oficial (no caso a Anglicana, bem parecida com a Católica) se desenvolve, sobretudo a partir de John Wesley: o Metodismo. Uma de suas principais características é que refutava a predestinação lutero-calvinista e garantia o acesso ao Céu a todos que se arrependessem de seus pecados. O atrativo da Salvação diante das terríveis condições dos primeiros proletários, e uma certa dimensão de acolhimento, também diante da perda de referenciais – como a expulsão das terras em que trabalhavam para irem constituir a mão de obra fabril –, nos templos e comunidades bem mais informais que as da igreja oficial, fizeram desse ramo da sublimação ideológica um sucesso entre os trabalhadores. Cem anos depois, o Pentecostalismo, herdeiro direto do Metodismo, apareceria em meio às contradições de uma nova etapa do capitalismo, agora nos EUA, e de uma classe trabalhadora que se adaptava à modernidade e velocidade da vida urbana, da produção em massa, do cinema... A massa proletária era agora, no plano simbólico, público.

Logo a novidade chegou ao Brasil, por volta de 1910. Mas sem muita aceitação: as primeiras seitas eram muito estritas e distantes da nossa forte tradição católica, que as Assembléias de Deus, por exemplo, combatiam acerbamente. Uma segunda “onda”, nos anos 50, trouxe uma primeira vaga de pastores audiovisuais: o uso do rádio acelerou a difusão das múltiplas seitas. Essas divisões são características, aliás, do pentecostalismo, ligadas à informalidade e maior proximidade – real e midiática - dos templos e congregações, e à possibilidade de enriquecimento autônomo de cada igreja (e de cada líder). A terceira onda seria a dos grandes grupos fundados por pastores brasileiros. São exemplos as igrejas Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus, Mundial do Poder de Deus, Renascer em Cristo, entre muitas outras, tantas que algumas são até mesmo formadas por um único templo e pastor, nos cantos mais remotos do Brasil. Entre suas características principais, além das que percorrem toda a tradição evangélica, estão a chamada Teologia da Prosperidade – uma espécie de versão contemporânea das expectativas milenaristas, a promessa do reino de deus nesta Terra agora traduzida em esperança financeira – e o uso intenso da televisão. Se no início do século 20 os católicos correspondiam a 98% da população, os pentescostais chegaram a ser 13% em 1990 e, 30 anos depois, já são mais de 30% dos brasileiros: um crescimento em torno de 10% ao ano.

Esse fenômeno impressionante, de triplicar seus adeptos num período historicamente curto, tem algumas explicações prováveis, a meu ver. Elas já estão sugeridas nos parágrafos anteriores. O pentecostalismo se expande diante do distanciamento que caracteriza uma igreja católica que abandona, em grande medida, suas posições – geográficas, sociais e teológicas – mais próximas dos ambientes e vivências populares (ainda que esboce reações, justamente adotando, em sua vertente dita carismática, diversas práticas do pentecostalismo). Não terá sido pura concidência que esse sprint evangélico ocorra logo após o abandono da Teologia da Libertação pelo Vaticano. No mesmo sentido, o período coincide com a falênca das expectativas geradas pelo processo de derrubada da ditadura militar e pela não concretização das promessas de maior democracia social esboçadas na Constituição de 1988. Diante disso, as grandes seitas pentescostais de hoje prometem segurança econômica para os que contribuam para a igreja. Mas não parece uma promessa vã - nem passou tanto tempo assim para que o crente avalie. As congregações onde o pastor é uma figura mais próxima e informal – até, frequentemente, pela pouca formação –, oferecem e constituem de fato um ambiente comunitário em que o aderente pode se sentir acolhido, se reconhecer num meio que o adota e o reconforta. Esses ambientes criam uma esfera de pertencimento. E nisso substituem a incapacidade demonstrada não apenas pela Igreja católica, mas igualmente pela tradição revolucionária proletária, o comunismo – hoje identificado com o termo “esquerdas”: no plural, mais um índice da sua fragmentação. É essa espécie de  reconforto, de alívio da dor mesmo, que o jovem Marx chamou de “ópio do povo”, referindo-se não às propriedades oníricas do alcaloide, mas a seus efeitos anestésicos e soporíferos – mais conhecidos na primeira metade do século 19.

O cinema começou com uma platéia de curiosos em festas populares e revistas teatrais, crescendo depois, exponencialmente, quando se implantaram suas salas exclusivas (seus templos?), junto a um enorme público proletário que, pela primeira vez, incluía também mulheres e crianças, para depois se expandir ainda mais, juntando outros segmentos sociais e formando finalmente um público universal. Numa certa analogia, o pentecostalismo brasileiro começou a se implantar nos ambientes mais miseráveis e necessitados, se expandindo para segmentos populares cada vez mais amplos e buscando, finalmente, nos dias de hoje, um alcance generalizado na sociedade. A expansão do cinema, contudo, foi muito mais impressionante.

O recuo da classe trabalhadora

Os últimos 30 anos, mais ou menos, também coincidem, no Brasil, com um progressivo recuo da classe trabalhadora – enquanto identidade, consciência autônoma de si. A ditadura militar reprimiu ferozmente e feriu, aparentemente de forma irrecuperável, a espinha da tradição política e ideológica da classe trabalhadora brasileira, o Partido Comunista. Cindido em diversos grupos e facções, inexpressivas na sociedade brasileira atual, contribuiu também, com algumas dissidências – algumas de origem até mais antiga, como as facções stalinistas e trotskistas – para um último (neste período) avanço dos  trabalhadores com o partido que passou a carregar esse nome.

O Partido dos Trabalhadores construiu uma alternativa político-eleitoral para a classe trabalhadora brasileira como nunca houve na história deste País. Como se sabe, a composição inicial do PT tinha três vertentes: o movimento sindical do ABC paulista, representatividade depois ampliada por todo o território nacional através da CUT (que havia quebrado o princípio de unicidade sindical); as bases da Igreja católica identificadas com a Teologia da Libertação e bem implantadas nos meios populares, e, finalmente, diversos grupos originados direta ou indiretamente de dissidências do PCB, adeptos da luta armada durante a ditadura. De fato, o PT sempre teve uma postura anticomunista – presente em todas as suas vertentes – pelo menos enquanto se podiam identificar as gerações que compuseram o PCB favorável a uma ampla política de alianças e contrário à luta armada como método de luta contra a ditadura. Apesar disso, o PT adotou alguns dos elementos mais discutíveis da tradição comunista, como o culto da personalidade do líder e a supervalorização do papel do Estado, por exemplo.

Como já disse, a Teologia da Libertação, enquanto aparato de intervenção social, sofre intervenção da cúpula da Igreja e do papa Wojtyla (o mesmo que tanto contribuiu para a queda do socialismo na Polônia) e desaparece. Com os governos do PT – de 2002 a 2014, e também nos estados e municípios – grande parte das lideranças originais do movimento operário se transforma em políticos e administradores ligados ao governo; há uma crescente descaracterização do caráter reinvidicatório dos sindicatos – como se nota claramente, por exemplo, nos festejos de 1º. de maio, que se tornam grandes espetáculos politicamente anódinos – e um distanciamento de suas atividades em relação à vida de seus representados. Os antigos grupos revolucionários aderem e se adaptam ao jogo político de Brasília, fornecendo inclusive alguns de seus nomes mais importantes, ou atuam como facções minoritárias dentro do partido. Aos poucos, alguns desses grupos se separam formalmente e constituem novos partidos. Fora desse processo, o PCB se descaracteriza completamente, não apenas mudando de nome – para PPS – mas tornando-se finalmente numa linha auxiliar das agremiações ditas liberais do campo reacionário brasileiro, PSDB e DEM, principalmente. Característica única nessa nossa cissiparidade comunista, temos ainda o PCdoB, oriundo do segmento stalinista do PCB (cisão ocorrida no final dos anos 50, quando são denunciados os “crimes de Stálin), hoje praticamente uma linha auxiliar subalterna do PT, e o PCB, pequeno grupo que não tem maior representatividade nos meios populares ou ressonância social significativa.

O PT participou de várias eleições, e de todas as eleições presidenciais desde a Constituinte (que o PT, entretanto, não subscreveu), tendo Lula como candidato e defendendo uma pauta social bem clara. Em 2002, depois de três derrotas, Lula apresentou a famosa Carta aos Brasileiros, que marcava, segundo muitos analistas, sua submissão às elites e especialmente ao setor financeiro do País. Inaugurou-se um governo híbrido, num certo sentido. Por um lado, implementava pautas progressistas importantíssimas e políticas sociais inéditas, promovendo uma redistribuição de renda limitada, mas sem precedentes na nossa triste história de exclusão. Por outro lado, concentrados no papel do Estado, esses governos aderiram às práticas recorrentes da política mais reacionária – e mesmo corrupta – entre as elites dos três poderes. Concomitantemente, ao invés de mobilizar de forma autônoma a sociedade civil, foi criando programas de cooptação de diferentes setores – sindical, estudantil, cultural – e de suas lideranças, integradas ao Estado.

Ausência das esquerdas no cotidiano e nas organizações populares 

Para os comunistas, socialistas e anarquistas que formavam as grandes correntes politicas do movimento de trabalhadores até o início do século 20, a adesão a essas posturas polîticas e ideológicas constituía, no plano pessoal, um compromisso de vida. Especialmente para os últimos, a anarquia era uma visão de mundo e um modo de vida. A educação não se distinguia da propaganda, pois promover o novo ser humano era o mesmo que formar um verdadeiro anarquista – ou vice-versa. Mas, para qualquer militante, socialista, comunista, essa adesão era integral. Os comunistas, mais tarde, salientavam bastante a solidariedade comunista, que se estendia a toda a humanidade – com exceção dos seus exploradores. Essas atitudes, de maneira geral, perduraram até esse período de crise das esquerdas, sobretudo no final do século. Tantos jovens adeptos – e muitos que não eram - da luta armada deram sua vida em consequência de suas convicções, submeteram-se a todo tipo de torturas e indignidades. Uns poucos desses, no entanto, anos depois estavam trocando favores com os que os trairiam mais uma vez, mais de uma vez, com Temer, Bolsonaro... 

Quando Lula e Dilma foram à televisão vender a ideia de que a classe trabalhadora só queria ter seus eletrodomésticos e o filho fazendo doutorado no exterior (sic), estavam traindo os trabalhadores que lutavam por direitos políticos e os jovens que haviam morrido contra a ditadura. Mas estavam sobretudo retirando a ética comunista do cotidiano dos trabalhadores, substituindo-a pelo consumismo, e logo em seguida pelo empreendedorismo: suposta via de salvação do trabalhador, negação da emancipação como classe. A consciência da identidade de classe, a solidariedade que dela decorre, são valores básicos e centrais da emancipação humana; tergiversar sobre eles é debilitar essa mesma humanidade, contida no segmento social capaz de emancipá-la.

Distribuir empregos aos próximos e, a partir deles, formular programas de cima para baixo – repetindo a tradição sempiterna do patrimonialismo brasileiro – significa igualmente impedir a participação da sociedade organizada, substituindo-a por uma forma “renovada” de notórios especialistas, agora ligados, simpáticos ou simplesmente obedientes ao governo e ao partido. Com isso a sociedade civil recuou enormemente em relação a suas conquistas na luta de resistência contra a ditadura. Desarticularam-se formas de mobilização organizada, trocando-as por gestores reconhecidos pelo poder, especialistas na administração de entidades, no trato de programas e políticas governamentais – e não realmente públicas – que, paradoxalmente, atingiam um número muito maior de segmentos da sociedade, de regiões do País. A contradição é que, pelo vício inerente, tais políticas apenas ampliaram a desarticulação de uma parte importante da sociedade civil.

Grande parte das bases sociais das organizações da sociedade civil foram cooptadas, minadas; lideranças políticas progressistas, igualmente assimiladas ou marginalizadas, neutralizadas. O sistema se organizou – ilusoriamente, como verificamos – sobre a perspectiva de eternização eleitoral. Falsa hegemonia arranjada, negociada, ao invés de construída e garantida pelos trabalhadores.

Políticas importantíssimas também foram estabelecidas e suas bases lançadas. Ainda que esteja fazendo estas críticas, é forçoso reconhecer que, por comparação, os governos do PT e de Lula foram os melhores que já tivemos, com o Bolsa Família – paliativo, mas fundamental para elevar o nível de vida de incontáveis miseráveis brasileiros -; as cotas, que finalmente mexem com o preconceito e a exclusão atávicos do País; as universidades federais, os aumentos acima da inflação do salário mínimo, e muitas outras ações. Mas, ao mesmo tempo, isso equivale a dizer que esses “melhores” governos foram apenas os menos piores de nossa história, pois não atacaram essencialmente, e muito menos prepararam o assalto às raízes da desigualdade e da exploração que definem nossa sociedade. Nem no campo econômico nem no plano político nem na esfera ideológica.

Passado o governo Lula, com seu carisma e os ventos favoráveis da conjuntura econômica internacional, as insatisfações populares voltaram a se expressar – por exemplo no famoso junho de 2013. Mas, faltas de organização e direção, atiravam para todos os lados, expressando um descontentamento abstrato com a injustiça, a corrupção, os centavos do preço do ônibus... Era o caldo de cultura para a expressão da insatisfação cega, a revolta como catarse do mal estar recolhido, reprimido, indefinido. Era a oportunidade não para os trabalhadores, cujas organizações ainda existentes não conseguiam compreender, se posicionar e, menos que tudo, liderar ou dirigir a luta, mas para os agitadores de direita que, desde a primeira eleição de Lula – ou mesmo desde antes, desde a derrota da ditadura - se preparavam para intervir, promover esse tipo de revolta, a rebelião dos recalcados, a batalha pelo caos, contra o Comunismo.

Às manifestações difusas, que se multiplicam logo no início do segundo governo Dilma – instigadas pelo candidato derrotado, Aécio Neves, pelos liberais e, nas ruas, pela direita fascista ascendente – opuseram-se manifestações corporativas, estreitas, petistas, que não estavam à altura do novo desafio, tal como o próprio governo. Desde então mais claramente, as chamadas esquerdas parecem um pouco perdidas, distanciadas dos meios populares, incapazes de se articular com e dar uma direção para as insatisfações do povo brasileiro. Manifestações de rua, seguidas de manifestações de rua, parecem ser a única forma de expressão e organização das classe populares. E parecem também não obter maiores resultados, exceto a satisfação das bolhas facebookianas de uma intelectualidade apenas formalmente progressista, pouco engajada orgânicamente em movimentos ou organizações populares.

Mas, e os cineclubes nisso tudo?

Cineclube – uma introdução

Os cineclubes constituem um tema muito particular, curioso. Sabe-se muito pouco sobre eles e age-se como se esse nível de conhecimento, ou de ignorância, bastasse. “Cineclubes são grupos de pessoas que se reúnem para ver filmes.” “Essas pessoas são cinéfilos, isto é, gostam de cinema.” “E do bom cinema, não de qualquer coisa.” E mais, apesar de cineclubes aparecerem, de vez em quando, um pouco por toda parte, e desde há muito tempo, também ninguém se pergunta sobre isso. Não há (praticamente) livros sobre cineclube. Mas quem gosta de cinema, quem “conhece cineclube”, sabe que eles “começaram nos anos 20 do século passado, quando apareceu a palavra cineclube”. Tem gente que sabe até “quem inventou o termo: Louis Delluc”. Ah! “Tem também os cineastas da Nouvelle Vague francesa, que eram ligados a cineclubes”, ao que parece. Pouquíssima gente, no mundo todo, sabe mais que isso, mesmo os que estão – ou pensam que estão – participando de um cineclube.

Pois é, tudo isso está errado. Ou incompleto, misturado, confuso, mas essencialmente errado. Introduzo, então, o assunto com uns esclarecimentos ultrarrápidos. Os cineclubes nasceram e evoluíram junto com o cinema, desde o início: fim do século 19. Como o cinema também, têm antecedentes bem anteriores, pelo menos até o século 17, por causa dos usos das lanternas mágicas, uma espécie de projetor de imagens fixas, que logo foi empregado para fins educativos e também políticos. Os cineclubes surgiram como práticas educativas de organizações populares e de ações equivalentes da Igreja católica - e, especialmente nos EUA, de algumas denominações protestantes. À medida que o cinema se consolidava como linguagem e narrativa, e como indústria – produção, distribuição, exibição –, uma parte do público, não se sentindo contemplado ou representado nesse cinema, composta novamente pelos setores organizados de trabalhadores, resolveu criar seus próprios filmes e também os espaços para vê-los. Os primeiros cineclubes constituídos com a forma que vem até hoje datam do começo dos anos 10 do século passado. Eram organizações, como já disse, voltadas para a produção de filmes, exibição e discussão, ligadas a uma perspectiva de organização de classe: os primeiros cineclubes chamavam-se, por exemplo, Cinema dos Trabalhadores (1911, EUA), Cinema do Povo (1913, França), Clube da Periferia (1916, França). Seus membros e dirigentes eram militantes socialistas, comunistas, anarquistas, feministas. Tal como o cinema era um fenômeno mundial, havia cineclubes em muitos países, pelo menos nos mais desenvolvidos, onde a classe trabalhadora era mais organizada. No Brasil tentou-se fazer um Cinema do Povo em 1914, mas não há uma comprovação definitiva de que isso tenha prosperado.

Com o fim da 1ª. Guerra Mundial, os intelectuais que frequentavam esses cineclubes – ou conheciam a experiência (que ainda não tinha esse nome, embora o termo existisse, pelo menos, desde 1907) -  começaram a organizar um outro tipo de cineclube. Ricciotto Canudo e Louis Delluc fundaram dois deles quase ao mesmo tempo: o primeiro – o Clube dos Amigos da Sétima Arte - consistia fundamentalmente na promoção de jantares (suntuosos) onde se discutia a importância do cinema (coisa ainda não firmemente estabelecida); o de Delluc eram projeções organizadas para fidelizar uma revista, o Jornal do Cineclube, que logo mudou de nome. Mas o termo pegou e se difundiu muito. Esses cineclubes eram um pouco diferentes dos anteriores – e de outros, seus contemporâneos – mas como eram identificados com algum intelectual ou artista importante, “institucionalizaram-se”, isto é, passaram a ser reconhecidos nos principais meios – artísticos, intelectuais – e pelas instituições mais importantes, como a Imprensa, a Academia e os próprios governos. Ao contrário dos cineclubes identificados e enraizados nos meios populares, que combatiam o cinema -que os alienava, controlava, explorava - e propunham um outro cinema, que mostrasse “a vida real dos trabalhadores” e correspondesse a seus interesses, estes novos cineclubes elitistas agora defendiam o cinema, clamavam pelo sua valorização como arte, independentemente das questões sociais.

É claro que - simplificando rapidamente a questão - como sempre prevalecem os interesses das classes dominantes, foi esse modelo de cineclube que se expandiu mais livremente. Embora tenham continuado a existir cineclubes revolucionários, o modelo elitista tornou-se hegemônico, e sua influência contaminou, de certa forma, a quase totalidade dos cineclubes, em todo o mundo. Ah, sim! Também não se pode esquecer que esse modelo hegemônico também assimilou o paternalismo eclesiástico; em especial a Igreja católica o adotou e promoveu, complementando o papel das elites com a sua função de formar platéias para o cinema. O “bom” cinema, claro.

Há muitos outros aspectos nesse processo de hegemonia de um modelo de defesa, de  culto (uma espécie de reintrodução antecipada da aura, que Walter Benjamin definiria mais de um década depois) do cinema. Os cineclubes deixaram de tratar do cinema como produto social, que deveria ser apropriado pelo conjunto do público, e passaram a valorizar sua fruição mais ou menos passiva (manteve-se o debate, porém), especialmente para um segmento de especialistas conhecedores: os cinéfilos. Os demais, o público comum, devia ser ensinado a ver cinema, levado a reconhecer o bom cinema, sob a tutela dos “conhecedores”. Cineclube passou a ter a função exclusiva de ver filmes; fazer filmes era responsabilidade da indústria, do capital – ou dos prestigiosos autores que, afinal, funcionam dentro da indústria. Os cineclubes também não tratavam mais da memória, da identidade das comunidades em que se instalavam; isso passou a ser responsabilidade de arquivos, geralmente constituídos por cineclubes que buscavam um novo estatuto, mais profissional: o das cinematecas. E surgiram amadores de cinema – não confundir com cinéfilo, embora os termos sejam sinônimos, não é mesmo? – que deveriam fazer filmes de família com os formatos de consumo caseiro lançados pela indústria na mesma época em que surgiam esses cineclubes de elite. Com o correr do tempo, o público se apropriou desses novos recursos, mas já o fez dividindo-se em vários segmentos: cinema amador, experimental, documentário. Separação, divisão, isolamento. Face a uma indústria audiovisual que, cada vez mais, crescia, concentrava-se economicamente (num bairro de Los Angeles!), e se expandia geográfica e socialmente: televisão, vídeo, internet... Cada vez mais concentradas em umas poucas empresas, filhotes de Hollywood. Hoje diríamos: Alphabet, Microsoft, Facebook, Apple, Amazon, Netflix, Disney...

O recuo dos cineclubes

Os cineclubes basicamente mantiveram o modelo criado nos anos 20 e que atingiu seu ápice no final dos anos 50, começo dos anos 60, do século passado: a idade do ouro do cineclubismo e da cinefilia. Depois dessa época entraram em decadência: lenta, gradual e certa. Continuam existindo em todo o mundo; em muito menor número, mas ainda são alguns milhares, considerando todo o planeta. Mas com pouca ou nenhuma ressonância social ou cultural. Exercem mesmo, em boa medida, uma atividade complementar ao cinema comercial, aparando algumas de suas contradições: oferecem filmes “alternativos”, não disponíveis nas cadeias comerciais do sistema; não raro homenageiam e promovem pequenos e grandes nomes da indústria, ou do “cinema nacional”, nos países onde se pode usar essa abrangente expressão.

O público, agora audiovisual, praticamente universal – todo mundo tem pelo menos uma tela para chamar de sua (e um algoritmo que o chama de seu) – já não é mais o público do cinema. Este se tornou apenas uma etapa da circulação do produto audiovisual: não é nem a plataforma mais acessada nem a de maior peso econômico. De fato, nem o filme é preponderante – embora seja sempre o paradigma narrativo básico – superado pelos jogos, os videogames.

Hoje, os cineclubes não vão aonde o público está. Herdeiros dessa influência elitista nem sempre consciente, fixaram-se exclusivamente na postura da exibição “clássica”, de meados do século passado, e não assimilaram, não se apropriaram de todos os recursos e oportunidades tecnológicas que atualmente, de fato, compõem uma realidade diferente. Todas as formas de organização comunitária – no sentido mais amplo dessa palavra – em torno dos meios audiovisuais, que surgem renovadas, atualizadas, se desenvolvem praticamente sem ligação com o cineclubismo: coletivos de hackers, saites, blogues e canais na internet, entre muitas outras. Essa separação, aliás, também as enfraquece, ao desconhecerem a tradição associativa do cineclubismo e, frequentemente, a importância do presencial. Mas são os cineclubes que ficaram parados essencialmente numa postura cinéfila dos anos 50 ou 60: eles são possivelmente o segmento mais atrasado dentre as novas formas de organização criadas pelo público para se apropriar do audiovisual. Isto é, dentre as formas de organização que hoje correspondem às das origens dos cineclubes e à sua finalidade mais essencial: criar um novo cinema, agora  um novo audiovisual. Por outro lado, os cineclubes têm características, e uma história, uma experiência que lhes são exclusivas.

Cineclube como esfera de pertencimento

Os cineclubes são instituições, iniciativas estruturadas, de comunidades. Comunidades no sentido mais completo do termo: grupos que apresentam características, que têm necessidades, interesses, objetivos comuns. Talvez mais frequentemente essa definição se aplique a um espaço, um território: um bairro, uma cidade. Pode ser um local de trabalho, de formação, de estudo, ou outra forma de atividade coletiva. Mas corresponde também a grupos que partilham traços identitários, que vão dos culturais, étnicos, aos de gênero, ou ainda os corporativos: de profissões ou atividades compartilhadas. Muitos expressam necessidades comuns, como aprender sobre um tema determinado ou em geral, e mesmo simplesmente ter acesso ao cinema, tornado um bem de luxo para muitos, ou a certos filmes. Uma comunidade pode ser inclusive de gosto: há um campo comum entre os que se interessam por filmes de terror, gostam de ficção científica, apreciam uma abordagem psicanalítica do audiovisual, ou curtem e seguem séries, telenovelas... Um cineclube pode se constituir em torno de uma dessas características de comunidades, pode reunir mais de uma delas ou, quem sabe, representar alguma de que me esqueci ou ainda não conheço.

O que estes traços comunitários têm, por sua vez, em comum, é que acesso, conhecimento, desfrute, identificação e partilha com outros representam formas de apropriação do cinema e/ou do audiovisual. Apropriação: tomar posse, ter integralmente, isto é, poder usar em benefício próprio. Apropriar-se do cinema era o objetivo que deu origem aos cineclubes: tomá-lo das mãos do capital, do comércio, para que atendesse a suas necessidades, interesses, e principalmente para que pudessem se expresssar através do cinema. Lembro o lema do mais que centenário Cinema do Povo: “Divertir, instruir, emancipar”. Divertir sem alienar; instruir com informação e cultura, conhecimento construído e compartilhado e não “depositado” na conta vazia do espectador, como diria Paulo Freire. E, sobretudo, emancipar. E o que significa emancipar? Emacipação é atingir a maturidade, poder ser autônomo. Ter plena consciência de sua condição no mundo, como pessoa mas também como grupo, como comunidade e, num sentido mais amplo como classe social. E, sobre essa consciência, poder atuar de forma independente, ser sujeito da vida e da história, e não apenas objeto, consumidor, espectador.

Se a consciência emancipada é, em última instância, a consciência de classe, ela se constrói no convívio social, principalmente no trabalho e na comunidade. De fato, esses dois elementos se completam: representam a condição de vida e da sua reprodução como parte da sociedade. É nas fábricas e outras formas de trabalho coletivo, assim como nos bairros e outras formas de convívio urbano que se observam e se toma consciência dos traços comuns que constituem a identidade social dos trabalhadores. Como dito mais acima, justamente trabalho e moradia, em sentido amplo, estão entre as principais formas de comunidade. O sentido de fazer parte, de pertencer e de formar essas comunidades é, também, uma das formas básicas de consciência de sua identidade. Exercer essa convivência é construir, reproduzir essa identidade.

Nesse sentido, algumas práticas e alguns espaços podem ser identificados como esferas de pertencimento: espaços onde acontece, se constrói, até se sente essa identidade, essa consciência subjetiva quase palpável. São as comemorações, as festas, os saraus, alguns sindicatos e outras associações comunitárias, até mesmo certos bares. E certamente muitos cineclubes. O cinema, a sala de cinema, nunca ou quase nunca constituiu um desses espaços de convívio realmente integrados à comunidade. As pessoas vão ao cinema pelos filmes – e esses produzem outro efeito semelhante, a identificação, de caráter sobretudo individual (e que não vou estender aqui) -, as salas importam pouco, exceto quanto ao conforto, recursos técnicos e pela pipoca. Alguns cinemas de arte tinham um pouco essa característica: os famosos templos de cinefilia, como o Cine Paissandú, no Rio de Janeiro, o Coral ou o Bijou em São Paulo, entre outros. As pessoas criavam um vínculo com esses espaços, sentiam-se um pouco “em casa” neles, alguns tinham até seus lugares na terceira fileira...

Os cineclubes, ao contrário, são quase sempre espaços diferenciados onde o público é estimulado de várias formas a se autoconscientizar. Para começar, o espaço não é uma sala de uma cadeia de comércio, mas uma adaptação de algum local comunitário ou, no máximo, uma ocupação – pela comunidade organizada –, ainda que temporária, de um espaço público. A organização da sessão é “amadora”, a técnica é mais ou menos transparente, muitas vezes visível, até sujeita a acidentes. Geralmente se fala  com o público e, claro, o mais importante, ele pode falar, é estimulado a falar, isto é, a ter voz. A tradição cineclubista – hoje muito enfraquecida – é a da associação dos frequentadores, que se tornam, assim, “donos”, responsáveis, têm voto sobre o que se passa. O frequentador, e especialmente o associado, adquirem o costume de ir ao cineclube, reconhecem e interagem com os outros, internalizam em alguma medida o hábito e subjetivamente incorporam como uma sensação de pertencimento o estatuto democrático real que embasa a instituição do cineclube. E os filmes, claro, sobretudo, são pontes que todos usam, juntos, para aceder ao mundo e além dele. Os cineclubes constituem esferas de pertencimento das comunidades. Promovem e geram consciência da participação de cada um em uma identidade coletiva – ao mesmo tempo que estimulam sua autonomia individual.

Cineclube como aparelho de hegemonia

Mas essa identidade da comunidade, discutida mais acima, não está dada, ela é frequentemente, quase sempre, alienada, enviesada, parcial e dirigida. Ela é substancialmente dependente da ideologia dominante, que lhe é externa, mas que se insere nas consciências individuais e nas formas de convívio de múltiplas maneiras: pelas relações de trabalho, pelas instituições que participam da vida cotidiana – como as igrejas, especialmente as evangélicas, mas também as escolas e, hoje, especialmente os meios de comunicação: a televisão, os computadores, os celulares, etc. Uma identidade emancipada geral não existe ainda; ou melhor está escondida, subalterna, sob outras formas dominantes, pois as forças hegemônicas representam fundamentalmente o que é externo à comunidade, à sua identidade e aos seus interesses. De certa forma, há que construí-la, resgatá-la dos escombros, libertá-la do entulho ideológico que a recobre.

Essa cultura de certa forma subterrânea, a cultura dos segmentos subalternos da sociedade, a cultura popular enfim, é, em grande medida, oral. É uma das razões de sua não permanência, e de não alcançar ou não ser significativa nos meios institucionais dominantes – aos quais, em princípio, não tem acesso, pois não tem os meios para os produzir. A própria cinefilia elitista se faz institucional justamente pela via da escrita e da autoria, da identificação de um empreendedor, de um proprietário, de um autor. A cultura oral, por outo lado, é essencialmente coletiva, anônima, democrática, uma cultura de todos transmitida informalmente dentro do seu próprio ambiente, comunitário. Vulnerável em seu formato não fixado por nenhum suporte físico – e pela ausência de reconhecimento institucional. É também, principalmente, local, no sentido de que praticamente não circula através dos grandes meios sociais de comunicação, controlados pelo capital. Apesar disso, tem uma dimensão social bem mais ampla, pois corresponde a uma realidade partilhada com o conjunto dos trabalhadores.

São justamente os meios audiovisuais que tornam possível o registro, a divulgação e a conservação da cultura oral e local: a fotografia, o registro sonoro, o cinema e todos os outros. Só mais ou menos recentemente, e hoje como nunca antes, tornou-se possível tirar da marginalidade e do esquecimento as diversas manifestações culturais do povo. Mas, como o problema na verdade não é técnico, mas político, isso ainda não acontece.

O audiovisual, ou melhor ainda, o conjunto de meios de comunicação que existem hoje levaram o patamar da representação audiovisual da realidade a um nível muito mais amplo do que o cinema fazia – ou do que era legitimado como cinema. Essa representação é fundamentalmente tributária do cinema, ou mais exatamente do filme, principal base narrativa das formas que reúnem imagem, som e escritura. Mas novas formas também já estavam em germe no cinema – ele mesmo também tributário de outras formas de expressão. O jornal, em suas formas filmadas, radiofônicas, depois televisivas. Os espetáculos - que também eram filmados, como as lutas de boxe que fascinavam o público feminino bem no início do cinema -; o futebol e outros esportes dos cinejornais e dos sábados ou domingos na televisão; as óperas que se veem nos cinemas de hoje. Coerentemente com a visão elitista preponderante, essas formas menos legítimas, de interesse sobretudo popular, também foram abandonadas pela grande maioria dos cineclubes (embora a produção de noticiários, por exemplo, fosse uma das principais atividades de muitos cineclubes operários nos anos 30, e de coletivos de produção mais ou menos cineclubistas até a atualidade).  

Os cineclubes que fica(ra)m presos a um modelo cinéfilo, elitista, datado, reduzem as  dimensões de sua esfera de pertencimento. Perdem, ou abandonam, o público mais amplo do audiovisual: de fato, muitos cineclubes giram em torno de comunidades etárias mais reduzidas ou de grupos de cinéfilos de vários tipos, até os “politizados”, que não constituem uma amostra representativa das comunidades mais amplas onde atuam. Ou limitam-se a trazer públicos mais amplos de forma extremamente esporádica, efêmera, como nos projetos com crianças, presidiários e semelhantes. A atividade exclusiva com o próprio cinema – ou mais exatamente o filme – implica hoje numa redução dessa esfera, pois o “audiovisual do povo” – ou ao contrário, o audiovisual contra o povo, aquele que lhe é imposto – reúne muito mais formas de apresentação, representação e recepção. Restringir-se à exibição de filmes equivale a demitir-se da dimensão de criar, de se expressar pelo cinema e pelas múltiplas formas audiovisuais. Implica em receber (em não produzir) notícias e interpretações comprometidas com o poder vigente, em não conhecer nem divulgar as notícias locais ou de interesse da comunidade do cineclube. Significa não coletar, conservar e promover as formas da cultura, da memória, da identidade de seu público. Atuar exclusivamente com filmes de cinema implica em excluir as formas seriais veiculadas em streaming ou na televisão, acarreta  a recusa dos espaços de convívio virtual e real dos jogos audiovisuais, as formas de comunicação pela internet e todas os formatos de recepção que não o da grande sala retangular. Cada um desses casos representa um espaço de pertencimento perdido, uma possibilidade de autoformação crítica abandonado, um público excluído. Um recuo ideológico e político.

Na ausência da produção e divulgação da cultura do público, o que existe, as instituições que fazem o papel que seria do cineclube, mas com sinal inverso - isto é, para alienar, aliciar e controlar o público - são os meios controlados pela indústria do audiovisual. O cineclube é essencialmente o seu avesso, o embrião de uma futura expressão e comunicação audiovisual livres. A vocação do cineclube é substituir completamente o cinema e o audiovisual do sistema – e não gerir pequenas capelas de culto ou de “alfabetização” para o bom cinema. A atividade do cineclube constitui-se na construção de um novo audiovisual em todos os seus sentidos e possibilidades – e como tal, faz parte da construção de uma nova sociedade. Representa a edificação de uma instituição fundamental dessa sociedade futura. Antonio Gramsci, teorizando sobre o processo de hegemonia, salientava a importância da construção dessas instituições, pois esse processo é parte da viabilização da própria sociedade futura. Mas ele também lembrava que uma instituição só pode se tornar hegemônica se for superior “moral e intelectualmente” à existente. Em outras palavras: o cineclube, a instituição audiovisual do público, tem que ser melhor, e superar as diferentes práticas e instituições que compõem o audiovisual a serviço da classe dominante. Ser melhor significa corresponder, responder melhor às necessidades e possibilidades das suas comunidades, do seu público. E fazê-lo de forma mais eficaz.

Hoje, mais que nunca, o cineclube tem condição de exercer esse papel – ainda que tenha um bom caminho a percorrer. Tem essa possibilidade porque, para começar, representa embrionariamente a superação da divisão de trabalho – e consequente alienação - criada pelo sistema comercial. A superação da divisão entre produção e consumo, entre criação e recepção ou entre autor e espectador estão ao alcance com a revolução digital e a universalização da rede de comunicação autônoma. Podem-se unificar no cineclube todas as ações separadas pelas formas que priorizam o lucro privado sobre o valor social real. Hoje, mais do que nunca, é possível visualizar a integração entre criação, produção, difusão, recepção e preservação num mesmo espaço - real e virtual - dirigido e controlado pelo público.

Felipe Macedo                                         
Montreal, 30 de março de 2020 (em quarentena)


quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

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 Bolsonaro, o filme

Assisti aqui (em Montreal), ontem, um documentário belga de 52 minutos – As flechas de prata: o orgulho de Hitler (Les flêches d’argent: l’orgueil de Hitler. Mais informações, em francês, em https://www.laliberte.ch/news/ces-firmes-qui-roulaient-pour-hitler-469913) - sobre a indústria automobilística e a evolução do espetáculo dos grands prix a partir da renovação geral na Alemanha com a ascensão do nazismo. 

O documentário é dinâmico, fluente, de fácil compreensão, sem abandonar um elevado e sério teor informativo e crítico. É uma combinação de muito material de arquivo e de análises – depoimentos – feitos por especialistas. Enfoca desde a formação da moderna indústria alemã, no quadro da superação das limitações impostas pelas potências vencedoras da Primeira Grande Guerra, o alinhamento dessa indústria (Audi, Mercedes, BMW, etc.) e do genial Ferdinand Porsche com o nazismo, suas ligações com os grandes fabricantes americanos, Ford e GM (ambos dirigidos por racistas financiadores do nazismo: Henri Ford e Alfred P. Sloan, respectivamente), até o uso dos grandes prêmios de velocidade para a divulgação das conquistas tecnológicas alemãs (base da fama que vem até nossos dias) e da “superioridade da raça”. É bem possível que a TV5 exiba, ou já tenha exibido, aí no Brasil.

Ao mesmo tempo, a televisão canadense trata há dias do aniversário de 75 anos da libertação, pelo Exército Vermelho, do campo de Auschwitz. Com outro registro, de reportagem, mas histórica, também esse tema traz para as telas bastante material de arquivo.

Mas nenhum desses é o assunto aqui. Esses dois exemplos me trouxeram à cachola o fato bem conhecido da valorização da propaganda e da publicidade pelo nazismo – e outros fascismos – para o qual constituíram um elemento central não apenas na sua divulgação, mas para a própria construção do conceito, e do aparato que revestiu não só sua imagem, mas seu dispositivo social e político. O próprio Hitler, Goebbels e outros nazistas foram mestres na construção dessa imagem e na sua manipulação.

O que eles não previram, certamente, é que a mesma capacidade de impressionar, de provocar interesse e admiração,  de incitar sentimentos e comportamentos, diante da queda da máscara espetacular – com a derrota na 2ª. Guerra - resulta no diametralmente oposto: as imagens de arquivo sobre o nazismo (principalmente) constituem um material incrível, riquíssimo, grandioso à sua maneira, sobretudo chocante, de denúncia das atrocidades, de demonstração da manipulação de consciências, da básica falsidade – e horror – dos pressupostos e das ações dessa ideologia, política e Estado. Daí é que pensei no Bolsonaro, meu tema aqui.

Imagino que não há nenhuma originalidade nesta minha reflexão, mas desconheço qualquer material sobre o advento do bolsonarismo e este primeiro ano do seu mito no poder. Bolsonaro, seus filhos raivosos, seus ministros impagáveis e seu ideólogo vigarista usam as mesmas técnicas bem retratadas no documentário a que me referi mais acima. Conseguem, assim, supostamente comover seus seguidores. Também atraem a atenção das mais diversas mídias institucionais, mas essas, geralmente, apenas destacam o evento: o ridículo, o chocante, até o horroroso de certas acões ou declarações. Apesar de se pretenderem “investigadoras” e “intérpretes” das notícias, praticamente nunca vão além de reprodução e descrição desse tipo de acontecimento. Nas equivocadamente chamadas mídias sociais, essas manifestações absurdas, repugnantes ou grotescas do aparato bolsonarista também são tratadas, no mais das vezes, com muita superficialidade, quase que numa espécie de simetria com os pretensos seguidores do nosso hitlerzinho de fancaria, repetindo apenas as críticas mais óbvias para um auditório já convencido, limitado nas e pelas bolhas da internet que, numa certa extensão, realimenta-se, afirma-se nesse processo.

Como se sabe, o material audiovisual sobre Bolsonaro, seu governo e seguidores já é farto, rico e atraente, e penso que na mesma linha que as fontes de arquivo do nazismo: se não há um evidente genocídio, o ódio racial está presente, assim como outras destruições maciças, como a dos recursos naturais. O racismo, que atinge indígenas, negros (visados pela promoção da violência policial) e vira homofobia e outras formas de preconceito – inclusive o incentivo à hostilidade sobre outras etnias importantes no Brasil, como os asiáticos. O nosso fascismo, claro, tem sua originalidade – como tudo em países que não conseguem desemvolver seus próprios projetos nacionais. Tem os militares e sua ideologia machista de honra corporativa, seu desprezo imenso pela vida e sua subserviência aos poderosos, daqui ou de mais ao Norte. Tem as milícias, manifestação “informal”, pelo crime, de uma cultura que bebe naquela outra. E tem os evangélicos e outros fanáticos religiosos, com sua própria simbologia de absurdos e pesado carregamento de intolerância e preconceito. Mas o importante aqui, é demonstrar que esse ajuntamento de interesses resulta, guardadas algumas proporções, no mesmo fenômeno simbólico produzido pelo nazismo.

Análises originais e profundas também não faltam – embora apareçam pouco e comuniquem menos ainda. Mas existem. Exames instigantes, especialistas que sabem se comunicar. Questões fundamentais para o público estão ainda a se desenvolver e pedem pelo esclarecimento: os efeitos da destruição de direitos em vários níveis, a eliminação dos principais elementos de distribuição de renda, o desmate da educação, da cultura e da ciência, o ataque à Amazonia... E as imagens e discursos produzidos neste pequeno período de domínio também abundam: Bolsonaro ensinando “arminha” para uma criança; suas ligações (e fotos) de longa data com as milícias e o crime – inclusive o nexo lógico com a assassinato de Marielle Franco -; as patacoadas audiovisuais do ministro da Educação; as declarações da ministra de Direitos Humanos, do titular do Meio Ambiente, de Relações Exteriores, além, é claro, da trajetória intelectual do farsante Olavo de Carvalho, astrólogo kierkegaardiano e gramscista, mentor intelectual de grande parte dessa gente.

Um ano de Bolsonaro – ou mais, se contarmos a campanha sem debate, o “atentado”, o culto à tortura e os símbolos de violência, e ainda excertos de sua juventude irrefletida (isto é, as três décadas desde que foi expulso do Exército) – dá mais reflexão, dá mais cinema e talvez tenha produzido mais imagens interessantes que todos os protagonistas anteriores. Certamente minha ideia não é nada original, mas desconheço e gostaria de ver algo nesse sentido que tenha sido produzido. Pergunto aos meus tantos amigos realizadores, roteiristas, produtores: cadê o documentário que pode ganhar o próximo Oscar?

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020



Cineclubismo universitário:
esteticismo cinéfilo ou resistência política?
          
          Minha última postagem neste blogue anunciava a criação de um Seminário Brasileiro de Cineclubismo, iniciativa que já havia começado um pouco antes. Apesar de uma certa adesão inicial, a ideia acabou se mostrando inadequada e o debate não se instaurou. O Seminário morreu. Antes desse quadro se delinear, entretanto, um primeiro tema de debate havia sido proposto e decidido entre os participantes: o cineclubismo universitário. Para mim era um pouco distante: minha experiência, e de certa forma meu interesse maior no cineclubismo universitário, datam dos anos 70 do século passado. Por essa prática estar tão longe no tempo e na minha experiência, resolvi abordar o tema às avessas, começando pelas questões mais gerais antes de chegar à Universidade. Minha intenção era demonstrar que é possível, dentro de certos limites, trabalhar um tema segundo os interesses de cada um, conforme a abordagem que adotemos. Nesse sentido, como estímulo, não funcionou. Acabei sendo o único a escrever sobre o tema que, em princípio, nem me interessava muito. Mas é um tema importante, sem dúvida, e dialoga com múltiplas experiências cineclubistas em todo o País. Por isso resolvi publicar o texto aqui, na hipótese de que possa interessar a alguns. O tema, tal como expresso na votação do seminário, era: Cineclubismo universitário: esteticismo cinéfilo ou resistência política?
Esteticismo e cinefilia
          Numa primeira aproximação, esteticismo e cinefilia têm muito de redundância. Estética é um termo mais antigo – proposto, na acepção moderna, por Alexander Baungartem em meados do século 18. Cinefilia, não sei se tem uma primeira referência realmente documentada, mas o termo já era usado por volta de 1910, talvez em uma variante: cinematofilia. Creio que o termo cinefilia, com toda a imprecisão que o caracteriza, ainda mais complicada a partir de sua eleição como uma espécie de categoria da análise do cinema – especialmente a partir das repercussões do livro de Antoine de Baecque[i] – consiste, ressumidamente, na transposição do conteúdo e dos valores ideológicos associados à estética de Baungartem para os tempos do cinema.
            A estética, como sistematização de princípios que permitem estabelecer o valor de uma obra que impacte a sensibilidade humana permitindo-lhe a contemplação da beleza é, na verdade, num resumo quase grosseiro, a expressão ideológica da apropriação privada e mercadorização de obras que poderíamos compreender, numa perspectiva mais materialista, como meios de comunicação humana, veículos do diálogo social e intersubjetivo que incluem outras formas simbólicas além da palavra. De fato, ainda resumindo bastante, a ideia de arte sempre esteve associada a capacidades e talentos quase impessoais, habilidades sempre estreitamente ligadas à vida social, seja pelo compartilhamento do imaginário identitário, dos liames comunitários, das crenças religiosas e de outros laços sociais. As noções de originalidade e autoria, necessárias ao isolamento, à individuação de cada criação – base da sua valoração em termos de mercado – só se desenvolveram em concomitância com a reurbanização, o capitalismo mercantil e a Renascença, entre os séculos 13 e 17. A consolidação de exposições e salões, base de um mercado de arte para as novas formas de consumo suntuário da burguesia, no século 18, explica a necessidade de uma nova ideologia precificadora do “belo”. Se a arte – esse vago rótulo que agora inclui toda forma de expressão subjetiva que possa ser transformada em mercadoria – sempre foi apropriada pelas classes dominantes (desde que as classes se estabeleceram, porque essas formas de expressão acompanham toda a evolução da espécia humana), e sua posse por chefes, sacerdotes ou nobres, identificada como forma de prestígio e poder, só com o capítalismo ela se torna realmente mercadoria, de “livre” circulação no mercado, para quem puder adquiri-la.
          O cinema passou por um processo comparável, mas bem diferente, já que consistia numa nova forma de expressão - junto com a fotografia, a litografia e outras técnicas - não baseada na exclusividade e originalidade, mas reprodutível mecânicamente, como bem identificou Walter Benjamin[ii]. Seu desenvolvimento também só foi possível no âmbito do capitalismo. “Síntese de todas as artes”, como queria Ricciotto Canudo[iii], o cinema também foi tributário de todas elas, e sua primeira infância se caracteriza por uma busca de identidade em termos de mercadoria, a procura de um lugar e uma maneira para se desenvolver plenamente na economia capitalista. Visionário, ao mesmo tempo que elitista, Canudo visualizava e defendia a autonomia do cinema como forma de arte, isto é, como forma de expressão que podia integrar os cânones valorativos da estética. Canudo tinha uma visão idealista e elitista da arte – e do cinema -, que via como expressão sublime, metafísica da sensibilidade de seres especiais, os artistas. Sua postura precedia a valorização necessária para a reintrodução da aura[iv] como índice de valor estético e econômico no campo do cinema. E esse culto se apropriaria do termo cinefilia – que inicialmente procurava nomear o amor das massas pelo cinema – transformando-o numa prática esotérica de especialistas, connaisseurs[v] que, tal como os sommeliers, sabem apreciar e legitimar os melhores filmes, sobretudo pela individuação de seus autores.
         Canudo é o grande precursor; Louis Delluc[vi], o maior divulgador dessa apropriação do cinema pela ideologia hegemônica. Reconhecer e promover a legitimidade artística do cinema significava, simultaneamente, entregar esse juízo aos eleitos, e estabelecer uma nova forma de propriedade simbólica (ou intelectual) privada: a autoria. A cinefilia, de tantas possíveis interpretações, passou a ser compreendida, no âmbito da ideologia hegemônica, como uma capacidade seleta de apreciação – pelos cinéfilos – e um culto apaixonado das qualidades intangíveis produzidas pela sensibilidade única de um autor.
          Nos anos 20 do século passado, o público do cinema, mais ou menos recentemente formado – no processo de ampliação explosiva de sua extensão, a partir dos nickelodeons, seguida pelo seu completo enquadramento e controle pelo sistema comercial, entre 1905 e mais ou menos 1915 – foi alijado dessa função de legitimação da arte; de fato, passou a ser o índice principal do seu contrário, a vulgaridade. Embora fosse a base indispensável para a própria existência do cinema, o público de massas, expressão de uma cinefilia da pessoa comum[vii], se viu relegado, de certa forma como o trabalhador no sistema produtivo, a uma condição de irrelevância social, tornou-se um proletariado do cinema.
A instituição cineclube também se formou nesse processo[viii], inicialmente como uma forma de organização da resistência do público à implantação de um dispositivo econômico do cinema que lhe retirava todo protagonismo, consistindo mesmo numa nova forma, mais ampla e mais sutil, de alienação e de dominação.  As primeiras práticas que antecipavam a instituição cineclube, e depois as primeiras organizações a que podemos realmente dar esse nome – como o Workers Film Theatre (1911), de Los Angeles ou o Cinéma du Peuple (1913), de Paris – tinham como principal objetivo contrapor-se ao cinema comercial e lançar as bases de um novo cinema, que refletisse a vida, os interesses e expectativas dos trabalhadores. Já os cineclubes de Canudo, Delluc e outros, procuravam, ao contrário dos anteriores, promover o cinema – em que não viam ou reconheciam uma luta de interesses de classes, mas uma diferença de qualidade retórica, basicamente[ix] identificada na oposição entre o bom gosto e a vulgaridade. É nesses cineclubes que se forjou o conceito de cinefilia que, com amplo reforço institucional, se espalharia pelas elites de todo o mundo, tornando-se praticamente hegemônico na compreensão da própria atividade cineclubista.
A adoção do modelo elitista, cinéfilo, de cineclube, implicou outras características. A ideia de que o valor artístico da obra cinematográfica se assentava na sensibilidade e talento exclusivos de um autor, identificado na tradição europeia com o diretor, ou metteur-en-scène, reservava, automaticamente, numa divisão de funções que emula a divisão do trabalho social, a criação para esses autores, e o consumo, para o público. Este último já não tinha o objetivo de poder se expressar pelo cinema, ainda que conservasse, ao menos nos cineclubes, a possibilidade de apreciação crítica dos filmes. Ao mesmo tempo, a indústria cinematográficca lançava os pequenos formatos – 9,5 mm e 16 mm – que facilitavam a feitura de filmes. Um enorme investimento foi feito para criar uma nova categoria de cinema: o cinema amador[x], que deveria operar fora do cinema “profissional” e do espaço público, ficando restrito apenas à esfera privada, familiar. O público foi essencialmente separado da criação, do poder de se expressar, funções reservadas a pretensos especialistas (ironicamente formados, em sua maioria, nos cineclubes), ou a diletantes inofensivos, sob a direção do capital.
Mas hegemonia não significa domínio absoluto nem permanente. Muitos cineclubes continuaram – e isso vem até hoje – a vocação original de se constituírem como ferramentas completas de construção de outro cinema. Mesmo cada vez mais descaracterizados, cultuadores de um discurso independente da vida social, a grande maioria dos cineclubes conserva traços fundamentais da forma organizativa herdada de sua origem proletária: o associacionismo, a ausência de fins lucrativos e o debate - índice do papel crítico do público. Mas mesmo estes têm sido enfraquecidos, obliterados: o associativismo democrático controlado por formas de gestão comerciais, a autonomia trocada pela dependência do Estado ou de empresas, a programação feita por curadores e o debate substituído por palestras. 
Resistência política ou construção do novo?
Estamos muito acostumados com esse termo no Brasil: resistência. Talvez demais. Porque há uma dimensão essencialmente passiva na resistência, que constitui reação, mais que iniciativa. Conservar posições, mais que avançar. Responder, e não propor. De alguma maneira, o uso desse vocábulo demonstra o caráter geralmente subalterno em que nos encontramos – e pior, com que nos identificamos – todos que nos reconhecemos como parte da base da pirâmide social brasileira, formada pelos trabalhadores sem acesso aos meios de produção. Ou sem acesso aos meios de expressão e comunicação, para dialogar com o público audiovisual. Em boa medida, o uso acrítico do termo elude essa dimensão de subalternidade, de ausência de iniciativa.
Qual é a posição que queremos manter?  Qual a nossa referência? A legalidade institucional formal, o capitalismo liberal? Estamos nesse tipo de resistência há muito tempo: contra o Estado Novo, contra a ditadura militar; agora contra o golpe institucional e o bolsonarismo. É indiscutível que a “normalidade democrática” é preferível e superior a qualquer uma dessas alternativas e, nesse sentido, a resistência contra a perda de direitos de toda natureza – constitucionais, trabalhistas, humanos – é indispensável. Mas penso que nosso objetivo está além, e mesmo que a própria existência do público, dos trabalhadores[xi], enquanto classe social autoconsciente implica necessariamente em seu compromisso com a superação do modo de vida e de produção vigentes.
Mesmo que se colocasse a questão da resistência em termos de conter a hegemonia não apenas política, mas cultural, ideológica, do sistema, ainda assim temos uma conotação um tanto passiva: resistir não é atacar, não é avançar. Instalados na resistência, também criamos outros vícios. Prendemo-nos muito aos referenciais apresentados por aquilo a que queremos resistir; em vez de propor os nossos, ficamos muitas vezes na denúncia, na mera identificação da condição opressiva, sem proposição concreta para a sua superação. A denúncia tem seu papel, claro, ocasião e circunstância, mas não contribui muito para construir uma alternativa. Pensando no trabalho cineclubista – mas com equivalentes em outras práticas organizativas populares e democráticas -, a denúncia e mesmo, em boa medida, a agitação em geral, esgotam-se rapidamente e raramente propõem um trabalho de autoconstrução coletiva, como é o caso das instituições populares efetivamente transformadoras. A agitação é mais fácil: parente do evento, no plano cultural, não exige seguimento, compromisso, disciplina. Está mais para a catarse ou a epifania que para a consciência de classe, que é processo, não evento, instante ou momento. Na organização cultural – como o cineclube - que se caracteriza pelo enraizamento progressivo numa comunidade e na construção coletiva de sua consciência social, a denúncia tipicamente se esgota em um evento, e não raro dialoga apenas ou quase que somente com os já convertidos.
Outro aspecto dessa condição de resistência é um abandono significativo das instituições de hegemonia - na acepção de Gramsci -, que observamos na sociedade brasileira em geral e no cineclubismo em particular. Acredito que esse movimento de recuo antecede e, de certa forma, constitui uma das grandes condições para o fenômeno de radicalização à direita que precede e caracteriza o governo bolsonaro e o atual desmonte das instituições democráticas liberais no País.
Enquanto a sociedade civil avançava, nos anos 70, lentamente construindo uma alternativa à ditadura, que culminaria na Constituição de 1988, o neopentecostalismo, caracterizado pela postura sectária, pela adesão aos valores econômicos neoliberais e pelo avanço sobre os meios eletrônicos de comunicação, ocupava espaços essenciais no plano da hegemonia ideológica. Com o fim da ditadura e o grande acordo de anistia aos crimes do governo militar, também desse meio veio uma forte reação contra as denúncias de impunidade do terrorismo de Estado. É nesse momento que se organizam os intelectuais fardados, que em seguida “descobrem” Gramsci, Paulo Freire e outros teóricos da organização da sociedade civil, construindo sua própria leitura do conceito de hegemonia e seus desdobramentos. O general Coutinho, o projeto ORVIL, Olavo de Carvalho[xii] e outros filósofos de igual profundidade também entram nesse processo de construção de um discurso ideológico profundamente reacionário. Essas duas correntes, militar e neopentescostal – às quais vieram se somar mais recentemente setores do crime organizado - embasam a atuação do campo filofascista brasileiro, hoje no poder.
Ao avanço dessa direita extremista e sectária correspondeu, de certa forma, um importante recuo na inserção social de vários setores progressistas e sua ausência na ocupação dos novos espaços criados pelos avanços tecnológicos nas comunicações. Ambos esses espaços têm sido ocupados principalmente pelo neopentecostalismo, presente de forma avassaladora nas emissoras de televisão, mas também nas comunidades populares, com templos, muitas vezes informais, em todos os espaços sociais do País. Os setores progressistas, em especial os partidos políticos com esse tipo de orientação e que tinham fortes tradições de ação e inserção social, foram incapazes de se organizar proporcionalmente nos espaços midiáticos, e recuaram nas organizações comunitárias, de trabalhadores, de soldados e da cultura. Agravante paradoxal é que o Estado, quando administrado por setores mais à esquerda, sobretudo nos governos Lula, contribuiu – pela cooptação e substituição da iniciativa popular - para o enfraquecimento do movimento sindical e a desarticulação das organizações culturais comunitárias.
O movimento cineclubista brasileiro – certamente identificável com um segmento progressista da sociedade e, mais que isso, como um setor composto de instituições de hegemonia, os cineclubes - experimentou de forma muito marcante e própria esse processo, cujo melhor entendimento é vital para a superação do domínio pela reação e o fascismo. No final dos anos 80, com a redemocratização do País, os cineclubes se desorganizaram rapidamente, e grande parte de seus quadros abandonou o movimento para participar de movimentos mais diretamente envolvidos com a política institucional, no movimento estudantil e nos partidos políticos, especialmente no PT. Como ocorreu historicamente em diversas outras situações, essa absorção de cineclubistas em outros segmentos implicou de forma bem generalizada na sua total descaracterização. Em outras palavras: como em outras situações, ou em outros países, os cineclubistas que passam ao Estado, ao comércio (isto é, à atividade “profissional”), à Universidade, perdem completamente suas características e mesmo memória de cineclubistas, papel com que não mais se identificam. Assim, a reestruturação do cineclubismo brasileiro, quase 20 anos depois, foi iniciativa de militantes partidários e gestores do governo, mais identificados com a produção que com a organização do público. Passado esse impulso em boa medida artificial, com a falta de investimento governamental, o movimento voltou a se desarticular. O paralelo com outros movimentos sociais, inclusive com o sindicalismo, não é imediato nem simétrico, mas é certamente real.
O cineclubismo universitário
Até aqui, procurei questionar a formulação do problema, expresssa no próprio título do tema a discutir. Ao mesmo tempo, a articulação dos conceitos no enunciado me parece, justamente, particularmente rica para desenvolver a discussão. Então, finalizando pelo início, o que significam os opostos cinefilia e resistência localizados na fórmula cineclubismo universitário?
Numa abordagem mais superficial, poderíamos pensar numa contraposição entre a atividade de discussão formal do discurso cinematográfico e uma prática mais diretamente política de questionamento não apenas do filme, mas da própria realidade que ele refrata e em que o público está inserido. Mas, na verdade, essa aparente contradição não existe. O filme é sempre um discurso ideológico que se pode examinar e, nesse sentido, remete também sempre a uma situação social – ou mesmo mais de uma, já que se aplica à coisa narrada e à condição social de sua própria criação. A alienação reside, pois, mais na forma de conceber e organizar esse debate, essa crítica, pelo público, do que a uma polarização conceitual entre filme e realidade. É fato que o que identificamos com a cinefilia, tal como a critiquei anteriormente, está bastante ligado à ideia de prevalência e autonomia do filme, ou seja, de que o sentido do discurso audiovisual se expressa e se esgota exclusivamente no plano do texto fílmico ou, eventualmente, que isso pode ser melhor contextualizado colocando o filme na perspectiva da obra de seu autor. A meu ver, no entanto, o sentido é um espaço conflituoso, continuamente construído socialmente: a heteroglossia[xiii] de Bakhtin. Mesmo no discurso interior, no sonho, em todas as formas de representação simbólica, o sentido é produzido no processo social, cultural, intersubjetivo. Se o acento dessa relação cai, em última instância, na recepção, não se pode excluir também o fato de que o filme é que suscita as interpretações. Este, contudo, também é produzido a partir do ambiente social: uma questionável autoria está igualmente imersa no público. O público é, portanto, em última instância, o “autor”.
Gramsci, principalmente, demonstrou que certos espaços sociais, certas instituições, têm um papel especial na produção de sentidos éticos, estéticos, políticos. Chamou esses espaços de instituições criadoras de valores ou aparelhos de hegemonia; como Bakhtin, ele compreendia que, embora em permanente conflito, os sentidos ligados ao interesses das classes dominantes tendiam a prevalecer, a assumir uma significação mais estável. Hegemonia significa isso: a capacidade de uma classe social estabelecer seus sentidos como dominantes, aceitos e reproduzidos pelas demais classes sociais como se fossem delas.
O cineclube é, essencialmente, uma instituição de hegemonia. Ou melhor, uma contra-instituição, que se opõe ao dispositivo econômico e social do cinema. O cineclube propõe um modelo antitético ao sistema de criação, produção, distribuição e recepção do cinema. Constitui o embrião de outra forma de organização desse dispositivo, reunindo todas essas funções numa única instituição audiovisual vocacionada a superar as múltiplas instituições criadas pelo capital. O cineclube é um aparelho de hegemonia do público, do povo, dos oprimidos, do proletariado contemporâneo – conforme os diferentes tratamentos dados por inúmeros pensadores da questão social. É a instituição do público no campo do audiovisual.
Mas como se localiza esse público, em que base ele se organiza para formar um cineclube? Ele responde às exigências, aos interesses e à necessidade  de expressão audiovisual de comunidades. Recentemente tem-se empregado esse último termo como uma espécie de sinônimo de bairro mas, justamente, apoiando-se no sentido subjacente de identidade ou união. Uso a palavra em seu sentido original, de grupo de pessoas organizado conscientemente com um sentido de união. Uma comunidade pode ter uma base geográfica comum, como um bairro ou uma cidade não muito diferenciada, mas pode indicar igualmente um conjunto de traços comuns econômicos, culturais, de gênero, de posições ideológicas e até de gosto. E, eventualmente, combinar diversos desses casos. Os cineclubes se organizam e, portanto, em grande medida se identificam, a partir de suas comunidades, que potencialmente defendem, fortalecem, aperfeiçoam e representam no campos do cinema e dos outros meios audiovisuais.
Desde suas mais remotas origens, mesmo no tempos das projeções de lanternas mágicas, uma das primeiras atividades nesse terreno da organização audiovisual comunitária esteve ligada à emancipação dos setores populares através da educação. Um dos berços do cineclubismo foram as ações educativas de organizações operárias e as iniciativas de alfabetização independentes das igrejas – que também as desenvolviam. Desde o final do século 19 usava-se o cinematógrafo como ferramenta pedagógica[xiv]; por volta do fim da primeirra Guerra Mundial essas práticas se expandiram enormemente, com a realização de congressos internacionais e a constituição de grandes redes de cinema educador, por exemplo na França. Entre organizações operárias, promoção do ensino informal e laico e suas contrapartidas dirigidas por igrejas e organizações patronais, a educação com o cinema e a formação do público no sentido da cidadania sempre estiveram entre as principais atividades praticadas pelos cineclubes e que, em boa medida, os identificavam. Mas, quais eram essas comunidades? Na maioria dos casos eram bairros ou distritos dos grandes centros urbanos, cidades menores pelo interior dos países, locais de reunião de trabalhadores (tanto os organizados por eles como os criados pelos donos de empresas), paróquias e outros espaços de diferentes igrejas. Embora em muitos casos - principalmente na França, onde a educação laica e o cinema educador fazem parte de uma tradição fortíssima – essas atividades fossem conduzidas por professores, só mais tarde passariam a ocupar espaços estritamente escolares, e a trabalhar exclusivamente com um público estudantil.
O cineclubismo universitário é em parte tributário dessas velhas tradições. Por outro lado, tem muito a ver com a consolidação da cinefilia, sobretudo no sentido da legitimação do cinema como forma de arte, e da crítica como prática culta. Os primeiros cineclubes universitários, organizados em campi acadêmicos pelos próprios estudantes, aparecem nos anos 30. Mas, como todos os cineclubes que mais ou menos adotam o modelo de Delluc, seu ápice seria o período pós-guerra, prolongando-se até as grandes mobilizações estudantis no fim dos anos 60 e início dos anos 70. Nos países subdesenvolvidos em geral, incluindo a América Latina, o meio universitário sempre foi fundamental para a proposição de atividades independentes do cinema comercial, de divulgação e crítica de filmes – até pela ausência de uma verdadeira tradição e capacidade propositiva no campo da cultura por parte dos setores populares mais organizados, como os sindicatos. Desde os anos 40, com o Clube de Cinema da Faculdade de Filosofia de São Paulo – depois Clube de Cinema de São Paulo – já se mostra essa dependência da existência de intelectuais tradicionais para a formação de um posicionamento quanto ao cinema. Os anos 50 confirmarão essa condição e irão, de certa forma, “atualizar” o cineclubismo brasileiro com os dos países centrais, tornando-o o grande celeiro da crítica de cinema – dando realmente um caráter nacional a essa cultura cinematográfica culta -, formador de uma nova geração de realizadores e, mais ou menos indiretamente, já em plena ditadura militar, organizador dos primeiros cursos de cinema do País. Os cineclubes universitários dos anos 50 também se constituíram como contraposição do cineclubismo católico, talvez o mais influente do período.
Penso que uma explicação para a quebra dessa inserção – ainda que “pelo alto”, elitista – desse cineclubismo na cultura brasileira vem da ditadura militar: ela quebrou a rica mas incipiente relação cultural do movimento estudantil com alguns movimentos e comunidades populares, como no caso dos Centros Populares de Cultura, da União Nacional dos Estudantes e da produção de filmes ligados ao cineclubismo universitário, como Cinco Vezes Favela, Liberdade de Imprensa e outros. Um certo vínculo entre o cineclubismo universitário e outros segmentos da população só seria criado pela intermediação do movimento cineclubista organizado, na segunda metade da década de 70. Mas que seria novamente quebrado com a desarticulação do movimento nos final dos anos 80. Já a remobilização dos cineclubes no início deste século foi em grande parte orientada pelo governo federal, sobretudo na gestão de Juca Ferreira[xv]. Um de seus condicionamentos era o apoio exclusivo a comunidades mais ou menos vulneráveis, o que não ajudou na retomada de um cineclubismo tipicamente universitário.
Esse distanciamento ou isolamento dos cineclubes universitários em seu ambiente imediato, isto é, as instituições acadêmicas, a partir da ditadura, foi também acompanhado por uma certa especialização dentro dessa comunidade. Em parte devido ao controle e perseguição sobre o corpo docente, em parte pelo próprio impulso democratizador e participativo dos estudantes, na resistência ao regime autoritário, os cineclubes universitários tornaram-se sobretudo cineclubes estudantis, sem uma participação mais significativa do conjunto da comunidade acadêmica, composta por três vértices: estudantes, professores e funcionários. De fato, essas comunidades podem ser consideradas de maneira mais ampla, incluindo familiares nos três segmentos, o entorno imediato dos campi, e os diversos setores sociais que interagem de alguma forma com os múltiplos campos de pesquisa e ensino da Universidade. Essa relação – a propalada relação escola/comunidade - é claramente problematizada quanto a cineclubes de escolas de outros níveis, mas raramente na Universidade. Uma parte importante das atividades audiovisuais envolvendo a comunidade – em qualquer um dos recortes mencionados acima – já não é organizada como cineclube, mas sim como uma espécie de atividade funcional da Universidade, com um ou mais responsáveis remunerados. Ou seja, agora – em muitos casos – os estudantes foram substituídos por um quadro particularmente restrito: a administração. Apoiado exclusivamente sobre o corpo discente, o cineclube enfrenta direta e constantemente o problema da renovação e permanência de seu quadro associativo. Tocado pelo aparelho pedagógico administrativo, vulnera sua representatividade e autonomia. A comunidade em que se apoia o cineclube universitário é, hoje, uma questão aberta e em crise.
Mas há ainda uma crise mais profunda no cineclubismo universitário – mas que não lhe é exclusiva - e que também tangencia a dicotomia do nosso tema: qual é, ou quais são os meios de comunicação que constituem a prática desses cineclubes, e em que medida isso influencia, ou compromete, sua finalidade cultural e social?
O cinema firmou-se como um dispositivo ótico de reprodução do movimento sobre uma fita de celulóide. Essa base material determinava um modelo social de recepção: projeção sobre tela em um espaço escurecido, de forma retangular. Desde a criação da rede mundial de computadores e a consolidação das formas digitais de suporte e visionamento da imagem, esse paradigma, que durou praticamente todo o século 20, foi não apenas substituído por outro, mas essencialmente modificado. As salas de cinema já não são nem a forma mais importante de consumo dos produtos audiovisuais nem ocupam o centro econômico do fenômeno comunicacional. O filme, mais que o cinema, ainda é o paradigma das formas de expressão audiovisual, mas sua recepção alterou-se quantitativa e qualitativamente. As mídias – termo que descreve essa ampliação e modificação do paradigma cinematográfico – tornaram-se mais que uma nova forma de comunicação: são a configuração dominante, omnipresente, uma esfera pública múltipla, hegemônica numa escala que engloba instituições como a imprensa e supera outras – como a Escola e até a Família - na função de mediação das relações sociais.
As mídias ampliam e modificam a recepção, criando um público em nova dimensão, que não é apenas o espectador do entretenimento ou mesmo da educação, mas é agora objeto  da própria socialização e, cada vez mais, da política. O público, que engloba a totalidade da população, constitui os famosos 99% da população, o grande proletariado moderno, destituído não apenas do acesso aos bens de produção de sua vida material, mas também da sua representação subjetiva e simbólica, subtraída a partir de sua participação em todas as relações midiáticas que estabelece com o mundo.
Os cineclubes, porém, ficaram estacionados na relação tradicional do público com o cinema: na forma retangular de disposição do público diante da tela, nas formas narrativas – ou eventualmente experimentais – mais consagradas e, de maneira geral, restritos ao visionamento dos produtos audiovisuais, ainda que acompanhados de palestras e até de debates, mas sem outras atividades de documentação, informação e mesmo entretenimento de suas comunidades. Muito poucos produzem e, quando o fazem, geralmente adotam uma postura autoral que distancia essa produção da base comunitária do cineclube. Reproduzimos sem cessar os cineclubes de 50 ou mais anos atrás: essencialmente o modelo cinéfilo.
Os cineclubes instalados em universidades apresentam, portanto, problemas de identificação e representação de suas comunidades que, em última instância, podem ser entendidos como uma forma ampliada de alienação cinéfila. No entanto, o conceito de resistência também tem, nessas entidades, um conteúdo conservador: elas não têm sido capazes de atender às novas necessidades de seus públicos, de contribuir para o reconhecimento e preservação da identidade da comunidade, de expressar seus interesses, reivindicações e desejos. Como o cineclubismo em geral, de outras comunidades, esses cineclubes precisam de uma profunda reavaliação e atualização de suas práticas e objetivos em consonância com nosso século, nossa sociedade, nosso audiovisual.



[i] Baecque, Antoine de. 2010. Cinefilia. São Paulo: Cosac & Naify
[ii] Benjamin, Walter. 1936. A obra de arte na era da sua reprodutibidade técnica, disponível em https://www.marxists.org/portugues/benjamin/1936/mes/obra-arte.htm
[iii] Morel, Jean-Paul (org.) 1995. Usine aux images - Ricciotto Canudo. Paris : Séguier
[iv] A aura, para Walter Benjamin, é decorrente do culto à obra de arte pelo seu caráter de exclusividade e originalidade. Essa aura deixa de existir nesses termos com a introdução de técnicas de reprodução. No cinema não existe um original, mas cópias de um negativo.
[v] Ginzburg, Carlo. 1989. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, em Mitos, emblemas, sinais, p. 145-181. São Paulo: Companhia das Letras.
[vi] Burch. Noel. 2007. De la beauté des latrines - Pour réhabiliter le sens au cinéma et ailleurs. Paris : L’Harmattan.
[vii] A paixão das massas pelo cinema é uma das causas essenciais da sua existência. Em 1910, um terço da população dos EUA ia ao cinema pelo menos uma vez por semana; em 1920 esse número já alcançava a metade dos habitantes daquele país. Essa mesma paixão, guardadas as características de cada país, se manifestava em todo o mundo.
[viii] Diversos autores, desde Noel Burch (El Tragaluz del infinito - contribución a la genealogía del lenguaje cinematográfico. 2006. Madrid: Ediciones Catedra), descrevem o período entre 1905 (ou 1907) e algo entre 1915 e 1917, como sendo de institucionalização do cinema, isto é, o processo de consolidação de todas as principais práticas e instituições que definiriam, a partir de então, todo o dispositivo social do cinema: sua linguagem, seus modos de produção, de recepção, etc.
[ix] A questão de classe é base essencial dos primeiros cineclubes, surgidos no meio operário e popular, sob a liderança de anarquistas, socialistas e feministas. Canudo tinha uma postura bastante anti-comercial, que convivia com seu elitismo (seu cineclube consistia em banquetes com a nata intelectual parisiense em que se discutia filmes e o cinema); Delluc tem uma atitude mais marcadamente reacionária, até mesmo com palavras de desprezo pelo público mais popular
[x] Note-se como cinema amador, de amadores de cinema, é  semânticamente comparável a cinéfilo. Aqui o termo amador denota, separa, contrapõe essa produção àquela que visa a produção de resultados financeiros, reservada para a “indústria”, isto é, para o capital.
[xi] Tenho trabalhado  e retomo aqui a equivalência destes conceitos: o público como proletariado contemporâneo ou audiovisual.
[xii] Coutinho, Sérgio Augusto de Avelar (General) – A Revolução Gramscista no Ocidente (2002). O projeto ORVIL (LIVRO ao contrário) foi um relatório elaborado pelos setores de inteligência do Exército em resposta ao documento Tortura Nunca Mais. Olavo de Carvalho é uma liderança de extrema direita com forte influência institucional no governo atual e na internet.
[xiii] Heteroglossia, do grego heteros - diferente, do outro, e glôssa - língua, ilustra para Bakhtin a virtual existência de incontáveis significados nas palavras, ou melhor enunciados, a cada vez que são usados, dependendo da entonação, que nunca é a mesma. Os significados estão determinados pelo processo interpessoal de comunicação entre as pessoas. Nos ambientes mais amplos, e mesmo nas línguas nacionais, significados mais estáveis ou permanentes expressam influências de grupos, classes, culturas, etc. A interpretação mais corrente tende a ser a que se identifica com as classes dominantes.
[xiv] Vale notar que para os movimentos anarquistas, importante senão principal vanguarda dos movimentos operários, educação e propaganda política não se distinguiam. Divulgar seu ideário e formar “o novo ser humano” eram a mesma coisa.
[xv] Discuto essa questão mais longamente em outros artigos. Por exemplo em: https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/2015/07/teses-para-uma-jornada-de-cineclubes-e_7.html.