quarta-feira, 3 de março de 2021

 


 

Da cinefilia à curadoria

Hesitei bastante antes de escrever este artigo. Por um lado, o tema é recorrente e importante entre os cineclubes existentes no Brasil; por outro, é um assunto espinhoso e de difícil trato pois, pelas próprias condições que explico a seguir, este texto pode ser mal compreendido e gerar uma discussão empobrecida, talvez, e mesmo hostil. Ou pior, pode ser recebido (ou nem ser propriamente recebido) com simples negacionismo e indiferença. É o caso típico de cutucar a ferida: ou ela purga e se supera, ou segue infeccionando o corpo. Bom, haverá quem não concorde, e com razões; para isso existe o debate.

Alguns autores – e costuma-se imputar esse tratamento a Gramsci - separam o bom senso do senso comum: o primeiro indicaria uma parte “sadia” da sabedoria popular que interpreta criticamente a realidade e sua própria condição histórica; já o senso comum corresponde à repetição acrítica da ideologia dominante, compondo um conjunto de ideias sem fundamento, reacionárias e que ajudam a reproduzir a subordinação das classes destituídas dos meios de produção em nossa sociedade.

Acho que se pode encontrar formas mais localizadas de senso comum, expressão de ambientes sociais particulares. Nesse sentido, penso que há uma série de ideias que constituem um senso comum do cinema e mesmo do cineclubismo. É a crítica de algumas delas que tentarei desenvolver aqui.

Antes de entrar nos conceitos, porém, queria falar um pouco de sua origem e método, isto é, como, na minha opinião, são gestados e reproduzidos. Para começar, pelo empirismo, isto é, pela assimilação e reprodução de ideias e conceitos através da mera observação, ou seja, sem buscar as totalidades em que essas observações estão inscritas, e em que, e como, se articulam, em especial social e historicamente. Veja bem, toda análise começa por essa observação, que é seu ponto de partida, mas encerrá-la nesse estágio significa ficar simplesmente no nível da aparência. Exemplos disso são a definição de cineclube como “reunião de quem gosta de cinema” ou “locais onde se exibe e debate filmes”; os preconceitos bem mais difundidos de “bom filme” e “mau filme” ou a categoria de “cinema de autor”. Mas existem muitos outros. A superficialidade da observação, que leva em conta apenas os aspectos mais evidentes, é um corolário frequente do empirismo. Outra característica associada ao senso comum, isto é, à repetição acrítica de enunciados ideológicos, parciais, incompletos, é o maniqueísmo, a incapacidade de compreender o movimento contraditório que é parte de todo e qualquer fenômeno. E uma decorrência comum do maniqueísmo é a estreiteza do discurso próprio, assim como a dificuldade de compreender um discurso complexo (oposto de maniqueísta ou superficial).

Cinefilia

Em família, a gente diz que alguém é cinéfilo porque gosta de cinema, vai bastante ao cinema ou, pelo menos, vê muitos filmes. Essa acepção da palavra pode confundir um pouco quando contamina seu significado supostamente mais preciso, acadêmico, originado, entretanto, do primeiro: a cinefilia como cultura especializada. Essa movimentação semântica se dá pelo movimento da própria sociedade, e por seu devir histórico.

Os primeiros reconhecimentos dessa mania ou amor ao cinema no discurso, precursores ou variações da palavra cinefilia, datam do final da primeira década do século 20. Muito provavelmente isso se dá pela explosão do fenômeno do cinema a partir da multiplicação das salas de cinema (depois de 1905), já que ninguém pensava, até então, no cinema como “arte”. Em 1910, um terço dos americanos ia ao cinema pelo menos uma vez por semana: sua motivação era o gosto pelo cinema, para o qual a imprensa iria logo procurar um nome, e daí vem a ideia mais popular e familiar de cinefilia. Na verdade, ela exprime, aqui, uma atração simples, genérica, acrítica pelo cinema; não tem ainda o sentido que vai adquirir a partir dos anos 20.

Os primeiros cineclubes surgiram dentro daquele mesmo processo de generalização, consolidação e institucionalização[i] do cinema, assumindo a forma organizada, que todos vamos herdar, por volta também dos anos 10 do século passado. Mas, se esses cineclubes estavam imersos nessa constatação de que praticamente todo mundo gostava de cinema, eles não eram propriamente cinéfilos. De fato, os primeiros cineclubes (tal como a primeira explosão de cinefilia popular) surgiram nos ambientes proletários, e representavam – e tinham como objetivo manifesto – uma oposição ao cinema que lhes estava sendo oferecido, buscavam criar um outro cinema, que reproduzisse fielmente a vida do povo e seus interesses[ii]. Sua ligação com o cinema não era de caráter passional (como muitos autores identificarão posteriormente a cinefilia), mas político e ideológico.

Também tal qual o cinema, o cineclube se institucionalizou, isto é, se adaptou e se integrou ao espaço superestrutural do capitalismo. Esse foi, como tudo, um processo contraditório, dialético. O cineclube que entrou para a história oficial, ideologicamente reconhecido e, de certa forma, estimulado, conservou algumas características essenciais de sua origem proletária e revolucionária: o caráter coletivo, associativo e democrático; sua posição contra a organização capitalista da atividade, isto é, a busca do lucro e, finalmente, a disposição de apropriar-se coletivamente do cinema. Ao mesmo tempo, contudo, essas mesmas características se modificaram. Os estatutos do Ciné-club publicados no número 1 do famoso Journal du Ciné-club, aprovados em assembleia de 3 de janeiro de 1920, propõem uma ampla organização nacional com o fim de “reunir os profissionais e amadores do cinema da Metrópole e das Colônias” para poderem tratar das “questões morais, cívicas, técnicas, etc. (sic), referentes à Cinematografia”. Está mais para uma espécie de federação do que para o cineclube propriamente, pois admite a formação de seções provinciais e de “círculos” de realizadores com uma certa autonomia – mas coordenados pelo núcleo dirigente nacional. “Ao mesmo tempo, a Associação se propõe a favorizar o desenvolvimento e a prosperidade da indústria cinematográfica francesa”. Charles de Vesme, que assina a apresentação do Cineclube, explica “Para que servem o cineclube e seu jornal ” no editorial: é preciso “reunir, em torno da elite e dos profissionais atuando como quadros dirigentes, todo um exército constituído por um público apaixonado pelo Cinema, numa época em que as massas têm um papel tão importante e exercem sobre todas as coisas uma influência tão grande.”

O cineclube não mais se opunha ao cinema dominante, mas passava a defendê-lo[iii], inclusive sua indústria. Seu caráter associativo não devia mais ser tão radical e igualitário mas, ao invés, como na sociedade em que se instala, organizar-se em torno de quadros dirigentes, uma elite alegadamente mais capaz, que iria orientar e formar uma massa de ignorantes: o público. Os maiores mentores desse novo cineclubismo elitista foram Louis Delluc e Ricciotto Canudo, que criaram dois cineclubes quase no mesmo momento. Canudo, autor do Manifesto das Sete Artes, republicado em 1923, defendia desde o início da década anterior o reconhecimento artístico do cinema, muito desprezado justamente pela sua inicial e mais ou menos longa relação preferencial com os ambientes populares. De fato, também concomitantemente, a própria “indústria” da exibição lutava igualmente por uma valorização do cinema por públicos mais “aceitáveis” socialmente, e pela ampliação das plateias incluindo setores das classes médias. De fato, é o que finalmente acontece com a conclusão daquele mesmo período posterior à primeira década do século passado. Coincidentemente (?), os capitais do cinema e a intelectualidade burguesa buscavam uma valorização do cinema. E valorização é a palavra-chave. Embora os empresários buscassem o valor como receita e lucro mesmo, e os intelectuais o procurassem como medida de prestígio estético, as duas coisas convergiam e se alimentavam mutuamente. Como dizia o artigo primeiro dos estatutos já citados, “a prosperidade da indústria cinematográfica” passara a ser fundamental.

O novo sentido da cinefilia que nasce com o modelo de Delluc e Canudo consiste na criação de uma medida de valor como argumento da nobreza estética do cinema. Cinefilia não é mais o gosto indiscriminado pelo cinema, mas o gosto informado, cultivado, que, claro, poucos possuem, mas pode instruir os demais. É a qualidade do especialista mais ou menos autodidata[iv] cujos antepassados são, provavelmente, os conhecedores de pintura que identificavam autores e também davam a medida de valor – a autoria – dos quadros dos salões de arte do século 18 e seguintes. No cinema o autor, menos evidente, foi estabelecido como o diretor, seguindo o modelo um pouco menos industrializado, mais diversificado – e mais intelectualizado – do cinema francês. No modelo americano, como todos sabem, a autoria dispensa intermediários: pertence inequivocamente ao capital – ou a seus capatazes, os produtores. A medida de valor do filme, aquilo que ele tem de único, original, irreproduzível, é a autoria; e esta é encarnada pelo diretor. Nasce a ideia do cinema de autor, complemento necessário, e não oposição, ao cinema comercial. A pessoa capaz de avaliar esse valor é o cinéfilo: não mais a figura do povo que vai ao cinema, ou seu público, mas a elite pretensamente capaz de compreendê-lo e interpretá-lo para as plateias também supostamente ansiosas por esse conhecimento que lhes é inacessível de outra maneira. Nasce a “formação de público”, com dois sentidos: aumentar as plateias para os filmes, ou “alfabetizar” seu olhar. Valha-me, São Paulo Freire!

Foi esse modelo que se tornou hegemônico, como todas as instituições tendem a ser hegemonizadas pela ideologia dominante. Mas, também como todas elas, não é o único: sempre existiram outros tipos, muitos deles conservando a faísca revolucionária dos primeiros cineclubes.

Dialeticamente, esse cineclubismo dominante, de caráter elitista, mas que conservou características democráticas e anticapitalistas, deu contribuições importantíssimas para a cultura e para o cinema. Os cineclubes estão na origem ou influenciaram fortemente a criação das cinematecas, dos festivais de cinema, a crítica de cinema, o próprio ensino universitário de cinema. Foram os agentes mais importantes, ou básicos, na formação das próprias culturas cinematográficas nacionais e, nos países com menos indústria de cinema, no desenvolvimento de seus cinemas nacionais. Os movimentos nacionais de renovação do cinema, como o neorrealismo, a Nouvelle Vague ou o Cinema Novo, entre muitos outros, nasceram dos e nos ambientes cineclubistas. O cineclube, de diferentes maneiras, foi relevante culturalmente.

O auge desse modelo elitista de cineclube, e consequentemente o auge da cinefilia e da autoria, foi alcançado no pós-guerra na Europa, com efeitos mais ou menos duradouros em todo o mundo. Mas aparentemente ele se desgasta, também de forma desigual, em todo o mundo, a partir dos anos 70.

Curadoria

Coincidindo, mas não simetricamente, as décadas de 60 e 70 são também as de grandes transformações na indústria “que importa”, isto é, que orienta a organização da maior parte do dispositivo comercial e cultural do cinema: sua capital, ou seu capital, é Hollywood. Começando nos anos 50, há uma perda muito significativa de audiência, causada pela expansão da televisão, mas a capacidade de adaptação do cinema comercial é enorme: as formas de produção, distribuição e o consumo nos diferentes países transformam-se bastante, paulatinamente, constituindo os primeiros alicerces do sistema atual, mundial e altamente concentrado, baseado nas superproduções e na exploração de todos os subprodutos do campo audiovisual. Os cineclubes também perdem importância, em número certamente, mas especialmente em termos de sua significação social e cultural.

Tal como Hollywood, o cineclubismo experimentou desde então uma queda significativa de seus públicos. A própria cultura da cinefilia, isto é, aquele ambiente de cinéfilos e de atraídos pela cinefilia elitista se estiola. Os cineclubes que sobrevivem no modelo passam a atuar com públicos reduzidíssimos. Se o modelo elitista tradicional teve grandes momentos de influência cultural, seus herdeiros experimentam a insignificância. São menos numerosos, com públicos reduzidos e praticamente sem ressonância social ou cultural.

Nos países centrais, os cineclubes transformam mais uma vez suas características: o caráter associativo se torna praticamente mera aparência; a gestão coletiva é apenas um símbolo, o poder de decisão é, de certa maneira, terceirizado, e entregue a um administrador ou grupo gestor; a ausência de fins lucrativos é também uma formalidade – sobretudo para justificar vantagens fiscais e patrocínios – enquanto o cineclube é gerido como uma verdadeira empresa capitalista. Assim, hoje os Estados Unidos são o país com maior número de cineclubes no mundo, as chamadas film societies, que existem em praticamente todas as cidades como entidades de prestígio local, e que atuam complementando o mercado com os filmes que não interessam à atividade propriamente comercial. Muitas delas atuam em colaboração com Hollywood. Esse novo modelo espalha-se também especialmente entre os países de língua inglesa.

Na maioria dos outros países, o que se vê é a murchidão e até desaparecimento das características dos cineclubes. Mas seu interlocutor, ao contrário dos países centrais, não é Hollywood ou o mercado, mas principalmente o Estado. No Brasil, que é o que nos interessa neste artigo, a questão tem aspectos bem locais, e talvez mais agudos que em outras partes: os cineclubes não se constituem mais como associações organizadas, mas atuam sob a forma de pequenos grupos informais ou até, em muitos casos, como iniciativas pessoais. O próprio governo, ao estabelecer uma disposição legal para os cineclubes[v] acrescenta no texto da Instrução Normativa que a adesão à norma estabelecida é opcional. Na mesma ocasião, com a política de editais, foi se reconhecendo – e, portanto, estimulando - em todos os níveis de Estado, a pessoa física como única responsável legal por diversas atividades culturais comunitárias, o que evidentemente incentivou a informalidade e o empreendedorismo, em detrimento da organização, da democracia e da comunidade.

O debate segue geralmente valorizado mas, no mais das vezes, é realizado a partir de uma conferência ou palestra de especialista ou autoridade, com menos tempo para a participação do público. A própria palavra cineclube perdeu em parte seu sentido, sendo bastante usada como equivalente de “sessão especial”, ou como simples adorno de marketing em ações que não têm nada a ver. Mas nosso tema é cinefilia e curadoria...

Tal como a palavra cinéfilo, o curador é uma figura derivada da museologia e das artes visuais. Etimologicamente não é um neologismo, como cinefilia, mas tem uma tradição bem clara desde o latim. Seus sentidos principais são o de curatela ou tutela, ligados originalmente ao cuidado de deficientes; também se refere à autoridade que cuida de um patrimônio – urbano, museológico, etc. Cuidar de patrimônios artísticos inclui, naturalmente, organizar sua exposição; daí o sentido moderno aplicado à organização de exposições de pinturas. E dessa forma curadoria passou para o cinema (como arte), e para os cineclubes, como espaço social. Numa acepção mais simples e inócua, curadoria é sinônimo de programação. Um simples modismo, sem maior importância?

Não, a palavra tem ressonâncias mais perniciosas: aquelas que a associam à tutela. E, por aí, também à cinefilia, enquanto sistema de organização de uma relação entre elites e públicos. Penso, aliás, que a noção de curadoria é, justamente, a reação ou adaptação diante da crise do modelo cinéfilo preponderante de cineclube. O surgimento do seu emprego como atividade de especialistas, separada não apenas da ação coletiva do público, mas mesmo de uma mais estreita base e um novo tipo de cinéfilos, parece corresponder à substituição generalizada de outras atividades estruturais do cineclube por “profissionais” ou, numa outra linha de abordagem, por figuras de autoridade. São os conferencistas personificados por realizadores, produtores e outros técnicos, por professores e outros especialistas nos temas em debate. Também muito importantes, os “produtores culturais” como especialistas em elaboração e encaminhamento de demandas para editais públicos, e posterior gestão dos mesmos. Na verdade, muitos cineclubes só atuam ou o fazem principalmente sob a condição de terem patrocínios públicos diretos, pelos editais, ou através de empresas que gerem e repassam recursos públicos: sua gestão coincide com a administração dos projetos. E os curadores, claro, quando a curadoria é entendida como atividade de programação por especialistas, inclusive muitos que sequer participam, de qualquer outro modo, do cineclube.

Antoine de Baecque, (A Cinefilia, 2009), observando a geração cinéfila do pós-Guerra, descreve a cinefilia como uma cultura, um conjunto de práticas e comportamentos que definia um grupo relativamente grande de frequentadores da Cinemateca, certos cineclubes e algumas salas de cinema de Paris[vi]. O cinéfilo calcado no jovem francês, com suas paixões pelo cinema, seus autores e suas musas, foi uma figura copiada e reproduzida um pouco por toda parte, estendendo essa influência até os anos 70, mais ou menos. Essa cultura, justamente, desaparece ou definha nos anos posteriores, e os cinéfilos já não são suficientes para constituir uma base de sustentação para um cineclubismo transformado, descaracterizado. Parece que, na ausência de uma cultura culta – como escreve De Baecque – apela-se a um especialista ainda mais especializado. Onde houvesse cinéfilos não haveria, provavelmente, necessidade de curadores. Mas, e o público?

Notas:[i] O período e processo de institucionalização do cinema cobre mais ou menos dez anos, entre aproximadamente 1905 e 1915, quando o cinema sofre um processo profundo de transformação e de consolidação de suas instituições: econômicas, sociais, da linguagem, etc., passando de uma forma mais primitiva (Noel Burch) de expressão, também chamada de cinematografia de atrações (André Gaudreault e Tom Gunning) a uma forma narrativa consolidada.

[ii] Os nomes desses primeiros cineclubes sempre indicam sua identidade: Cinema do Trabalhadores (1911, Los Angeles), Cinema do Povo (Paris, 1913), Clube da Periferia (Paris, 2016), entre outros.

[iii] Para compreender melhor essa institucionalização dos cineclubes é interessante cotejar os estatutos do Ciné-club de 1920 com os do Cinema do Povo, de 1913. Veja Cinema do Povo, o primeiro cineclube, disponível em https://www.academia.edu/6409070/Cinema_do_Povo_o_primeiro_cineclube.

[v] A Instrução Normativa 63, da Ancine, de 2007, que pretensamente regulamenta a atividade dos cineclubes.

[vi] Embora relativamente pequena em termos de número, girando em torno de pouco mais de uma dúzia de salas de Paris – na época existiam cerca de 10.000 cineclubes só na França – o prestígio dessa cultura cinéfila foi enorme, influindo - principalmente através das revistas de cinema Cahiers de cinéma e Positif, e o movimento de cineastas da Nouvelle Vague - sobre o cinema da época e, sobretudo, espalhando por praticamente todo o mundo uma espécie de atitude cinéfila que marcou sua época.