sábado, 27 de julho de 2013

Exibição de A Comuna (1914, Cinema do Povo) pelo Cineclube Latino-Americano no centenário do cineclubismo (Memorial da América Latina, 14/07/2013)


Cem Anos de Cineclubismo
ou a presença do público no cinema
(publicado na revista América Hoy, no. 2, julho 2013 - Memorial da América Latina)

Ausência do público no cinema

Nos estudos acadêmicos sobre o cinema existem as mais diversas abordagens: da linguagem, da narração, do processo cognitivo, psicanalítico, entre outros. O público, porém, não aparece. A recepção, como já aponta o conceito, é ato passivo, determinado sobretudo pela obra que exerce sua influência sobre o espectador. E o espectador, por sua vez, é uma abstração generalizante que, desconhecendo os diferentes contextos culturais, sociais, históricos, se impõe como paradigma. Significativamente, essa abstração tende a ser calcada num espectador ocidental, branco, masculino, de classe média e mesmo cristão. O público, ao contrário, é contexto concreto, não individuação abstrata.

No plano sociocultural, das políticas públicas por exemplo, o público também só é considerado como objeto, nunca sujeito. Faz-se políticas para ele, nunca com ele. Ele não tem voz na política: conselhos, câmaras e outras formas de participação da sociedade civil na elaboração de programas para o cinema e/ou o audiovisual em geral têm representantes de produtores, distribuidores, artistas – e mesmo de numerosos subgrupos de interesse, como diretores, documentaristas, técnicos – mas não do público. Consagra-se e consolida-se a visão do público como massa indistinta de espectadores praticamente incapazes, consumidores inconscientes, receptáculos inermes de catequeses, autoritarismos, propagandas. Objeto, nunca sujeito.

Mesmo a semântica que impregna os usos da relação entre cinema e público é significativa: plateia, assistência, auditório; espectador, ouvinte, consumidor. Parece que só a palavra público tem uma conotação mais ativa, comporta responsabilidade e capacidade coletivas.

Cinefilia

Cinefilia é uma espécie de ramo do cinema que vem sendo estudada de uns tempos para cá. A julgar pelo número de publicações – ainda um fenômeno mais dos países desenvolvidos – a cinefilia está meio na moda. O termo é uma construção híbrida que pretende descrever o amor, o gosto pelo cinema. Mas que amor é esse? Nos anos 10 do século passado, um terço da população estadunidense ia ao cinema toda semana; na década seguinte, a metade de todos os americanos. Não seria isso uma forma clara de amor ao cinema, de cinefilia? Segundo depoimentos, nos anos 50, certas chanchadas ou alguns títulos do Mazzaropi eram vistos por mais de 15% da população brasileira. Isso era cinefilia?  A idéia de cinefilia que passou para a posteridade, no entanto, foi mais a de uma apreciação “culta” do cinema. Culta no sentido de que era característica de especialistas, supostos conhecedores de cinema que se diferenciavam da massa de frequentadores. Essa diferenciação se localizava frequentemente na capacidade de produzir textos mais elaborados – de onde a crítica, que veio a se estabelecer até como profissão – e no fato de alguns desses espectadores se notabilizarem, justamente por seus escritos ou por fazerem seus próprios filmes. Mais uma vez se fazia do público massa; e dos sinais evidentes da sua participação, selecionava-se uma elite: os cinéfilos connaisseurs. Assim, a cinefilia seria um fenômeno típico dos anos 20, com as vanguardas cinematográficas francesas principalmente. Ou dos anos 50 e 60, com as revistas parisieneses Cahiers de Cinéma e Positif, e a produção que surgiu daqueles grupos, a Nouvelle Vague. Cineclube seria uma espécie de templo desse culto, a cinefilia. Logo, o mesmo raciocínio situava o surgimento dos cineclubes naquela primeira época dos anos loucos e identificava o pequeno grupo de cineclubes parisienses que deu origem às revistas de cinema já citadas como “a idade do ouro” do cineclubismo. No entanto, nos anos 20, muitos dos primeiros “cinéfilos” cultuavam os filmes mais populares da época, como as aventuras seriadas de Fantômas, Judex ou da vamp Musidora. Assim como nos anos 50 seguia-se todos os chamados peplums italianos, de heróis como Maciste e Hércules... Os cineclubes que deram origem aos Cahiers e Positif eram uma meia dúzia em Paris, em meio a alguns milhares de cineclubes que se espelhavam pela França na época, sobretudo nos meios mais populares. Também nos anos 20, ao lado das sessões chiques promovidas por Louis Delluc ou Ricciotto Canudo, vários clubes de bairro ou a rede de “Amigos de Spartacus” exibiam e debatiam cinema em termos bem mais populares e desde bem antes...

Cineclube como organização do público

Em outras palavras, cineclube não é uma reunião de especialistas, mas uma organização quase espontânea do público, que reage e busca ter voz num cinema em que frequentemente não se reconhece. Desde o início das projeções – e mesmo antes do cinema, com as lanternas mágicas – principalmente nos ambientes mais populares, com menos acesso a meios mais tradicionais de educação e cultura, já se usava as imagens para ilustrar palestras educativas, de proselitismo político ou religioso. Essas atividades se desenvolviam principalmente em associações e clubes populares e têm origem em ações de ajuda mútua, de organização política e estímulo cultural que vêm desde meados do século XIX. Ali estavam as primeiras sementes do cineclubismo que comemora este ano seu centenário formal.

Com a massificação do cinema a partir das salas fixas, de 1905 em diante, seu público inicial era fundamentalmente proletário e imigrante, e as salas – os famosos nickelodeons onde o ingresso custava 5 centavos – simples, pobres e localizadas em bairros populares. Mas os filmes apresentavam o ponto de vista dos empreendedores capitalistas: assumiam uma temática próxima do gosto dessas modernas massas da cultura, o tratamento, no entanto, era seu oposto: a ridicularização do imigrante, o combate e censura às conquistas sociais, até mesmo (um pouco depois) a repressão ao público com uma força de polícia própria – origem dos lanterninhas uniformizados que marcarão épocas posteriores do cinema.

As salas de cinema eram locais de manifestações ruidosas, com o público cantando, vaiando, participando enfim de várias formas – e várias delas organizadas, como as siffleries (apitaços) parisienses. Desde essa época começam a surgir alternativas para um cinema que não mostrava e não representava os interesses daqueles públicos. Organizações operárias, entre outras (a Igreja também criou várias instituições que tratavam com o cinema, desde o início do século), alugavam salas e promoviam suas próprias sessões, começaram a produzir filmes. Há vários relatos nesse sentido, documentados pelo menos desde 1908. Em 1911, em Los Angeles, o jornal L.A.Citizen  fala de uma sala gerida por socialistas e feministas; um entrevistado explica que “nossa sala é o resultado da rebelião do público contra o que oferecem a ele" (Steven Ross, Working Class Hollywood, 1998).

O primeiro cineclube

Mas o provável primeiro caso realmente bem documentado da organização de um cineclube – com estatutos, sessões com debates e produção de filmes – é o do Cinéma du Peuple (Cinema do Povo), organização criada por militantes e simpatizantes anarquistas em Paris, em 1913. O programa do cineclube foi publicado no jornal Libertaire, de 13 de setembro; os estatutos foram registrados em 28 de outubro. O mote do cineclube era “Divertir, instruir, emancipar”. O Cinema do Povo teve vida curta, interrompida no ano seguinte pelo início da I Guerra Mundial. Mas deixou uma produção própria, quase inteiramente preservada, com títulos como As misérias da agulha, sobre o trabalho de costureiras; O velho doqueiro e A Comuna, sobre a insurreição de 1871, entre outros.

Um detalhe interessante é que a iniciativa dos anarquistas franceses foi bastante difundida, e chegou ao Brasil através de artigos de Neno Vasco, anarquista português muito ativo no Brasil que, em um de seus períodos de exílio em Portugal mandava para o jornal A Lanterna notícias do movimento internacional. De fato, na sequência dessas matérias, no seu número 242, de 8 de maio de 1914, o periódico traz o seguinte anúncio: “para tratar de fundar uma sociedade cujo objetivo será a propaganda social através do cinematógrafo, uma reunião será feita na próxima segunda-feira, 11 do corrente, às 19h30, no salão da Lega della Democrazia, na Rua Bonifácio, 39, 12º. Andar. Pede-se a todos os interessados que compareçam.” Não há contudo, confirmação da realização dessa reunião.

Também a igreja católica mantinha atividades voltadas para a formação de um público orientado pelos melhores princípios cristãos, embora isso fosse marcado por uma orientação pré-definida e não deva se confundir com o cineclubismo em que esse público se auto-organiza. O padre Pedro Sinzig, numa revista Vozes de Petrópolis de 1912 cita várias salas de cinema – paroquiais? comerciais? – católicas, como a do Centro Popular Católico, de Petrópolis, o Cinema Modelo de Belo Horizonte e o Cinema Católico de Recife.

América Latina

As pesquisas sobre público e cineclubismo são bastante raras em toda a historiografia do cinema; na América Latina esse problema se agrava profundamente. Isto contribui para manter velhos mitos e, no nosso caso particular, para consagrar os anos posteriores aos cineclubes “clássicos” franceses – e também espanhóis – como origem do cineclubismo em nosso continente. Certamente não é assim: os movimentos operários, principalmente, criaram em toda a América instituições próprias que promoviam atividades culturais; o que acontece é que não há pesquisas e grande parte dos documentos se perdeu ou não está organizada e/ou acessível. Não sabemos ainda até que ponto o dispositivo cinematográfico era utilizado nas associações, clubes, ateneus, círculos de debate, escolas, que os meios populares criaram em grande número na virada e início do século 20.

Por isso, nos países de maior tradição cinematográfica – do ponto de vista industrial -, que são a Argentina, o Brasil e o México, identificam-se os primeiros cineclubes no final dos anos 20, isto é, aqueles que surgiram por influência do cineclubismo europeu daquela década, a essa altura já consagrado. Na América Hispânica, foi a influência do Cineclube da Casa Universitária de Madri (que teve Buñuel entre seus fundadores) e da chamada “geração de 27”, através da Gazeta Literária, que deram origem ao Cineclube de Buenos Aires, em 1928, e o Cineclube Mexicano, em 1930. No Brasil foi o Chaplin Club, do Rio de Janeiro, também fundado em 1928, que é considerado até hoje o primeiro cineclube.

Na grande maioria dos outros países latino-americanos, as primeiras referências – e não será mera coincidência – surgem nos anos 50, justamente quando novamente se prestigiava um cineclubismo e uma cinefilia “de norma culta”, identificados com os críticos e cineastas da Nouvelle Vague. A partir dessa época os cineclubes se tornam bem visíveis em todo o continente. Mesmo nos três países com mais estrutura é também nessa época que os cineclubes proliferam e quando se pode notar as influências que exercem sobre os cinemas nacionais e suas instituições. De fato, antes dos anos 70 – quando surgem as primeiras escolas de cinema – todos os cineastas se formavam nos cineclubes. E as faculdades foram criadas com a geração de cineclubistas dos anos 50 – porque a geração seguinte, formada por aquela, já é a dos “cinemas novos” que, a partir dos cineclubes, renovou o cinema latino-americano e, em boa medida, de outras partes do mundo. No longo período em que pululavam ditaduras em nosso continente, uma importante resistência se organizou a partir dos cineclubes. A crítica cinematográfica profissional tem a mesma origem cineclubista. Os festivais de cinema surgem por iniciativa dos cineclubes e as cinematecas nacionais se organizam a partir de cineclubes. Elencar esses casos ultrapassaria qualquer espaço disponível num artigo como este. Mas, em resumo, nos países de maior e mais antiga cinematografia, os cineclubes foram responsáveis pela criação de uma cultura cinematográfica nacional, isto é, praticamente tudo – obras e instituições – que não vinha de Hollywood. Nos outros, os cineclubes praticamente se confundem com o que se possa identificar como cinema nacional: é neles ou a partir deles que se produziram os poucos filmes realizados antes da revolução digital; é nos cineclubes que se pratica e desenvolve o estudo, a crítica, a produção e a exibição de filmes diversos do discurso monolíngue estadunidense.

Paulo Emílio Salles Gomes, considerado uma espécie de patrono do cineclubismo brasileiro pode ser dado como um exemplo pessoal onde se encontram essas potencialidades que resultam das práticas cineclubistas. Aliás, em uma entrevista já no fim da vida, ele definia-se, enfim, como cineclubista, ou seja, era esse adjetivo que melhor englobava uma trajetória que envolvia política, ensino, crítica, teoria, que começou com o Clube de Cinema de São Paulo (do qual participou desde 1940), passando pela “conversão” absoluta ao cinema através de Plínio Sussekind (fundador do Chaplin Club), em Paris, e termina na Cinemateca (em 1957, o Clube de Cinema se torna Fundação Cinemateca Brasileira) e nos cursos de cinema das universidades de Brasília e de São Paulo. Louis Delluc, responsável, de certa forma, pela disseminação do termo cineclube, também pensava nesse tipo de relação com o cinema: foi o criador da palavra cineasta que, para ele, definia aquele que via, pensava e fazia cinema em todos os níveis. Em outras palavras, é o público organizado para se apropriar individual e coletivamente do poder e do sentido do cinema.

Na sociedade atual, o público é um conceito que praticamente se confunde com a totalidade do população, pois o principal meio de comunicação e socialização em todo o planeta são as mídias, controladas pela chamada indústria cultural ou de entretenimento. E, entre essas, a base fundamental é o audiovisual (cinema, tevê, internet, celulares, etc.), cuja linguagem matriz é a do cinema. Os cineclubes são a forma organizacional e mesmo institucional (existem nas legislações da maioria dos países do mundo) desse público, desse proletariado contemporâneo que não só não tem acesso aos meios de produção, mas igualmente não tem acesso aos meios de produção do seu próprio imaginário. Que não dispõe apenas de sua força de trabalho para vender, mas cuja subjetividade, hoje, é apropriada e comercializada ao simples aceder à internet e às ironicamente chamadas de redes sociais, de fato sob controle privado.

 

 

 

 

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Pelo cartaz, o autor: Marcos Madalena


Fique são

Desinformação e ilusão

O movimento cineclubista brasileiro está passando por uma crise bastante séria, talvez terminal. No entanto, a imensa maioria das pessoas interessadas no tema e no processo mostram um nível de desinformação incrível, alarmante. E os mais informados, os que mais se manifestam “em nome do cineclubismo”, dividem-se entre três categorias: a) os que querem de alguma forma se isentar de responsabilidade e sair limpos desta situação; b) os que se dedicam desde o início desta fase histórica – isto é, desde 2003 - a acabar com a tradição centenária do cineclubismo associativo e democrático, e c) os mais inexperientes, que de certa forma ingenuamente, carregando aquele entusiasmo e generosidade ditos cineclubistas - mas alguns também por oportunismo -, assumem o discurso absolutamente irreal, ufanista, pretensamente solidário e democrático, vendido pelas duas outras categorias.

 Há, de fato, um quarto grupo. Que mais que maioria silenciosa é uma maioria misteriosa, composta pelos cerca de 1.000 integrantes da lista cncdialogo que nunca se manifestam mas estranhamente também não se desligam da lista. Essa maioria deve coincidir, talvez, com esses alardeados “milhares” de “cines”,  pontos de cultura com vocação digital” e até mesmo cineclubes que eventualmente ainda existam mais ou menos dois anos após a interrupção ou desorganização dos programas governamentais que se supunha estimulá-los. Programas sem os quais parecem não conseguir sobreviver; quantos ainda estarão em funcionamento? Desses, quantos serão mais que uma atividade mais ou menos periódica de exibição, e que realmente organizem seus públicos na perspectiva de participar do processo todo do audiovisual? Penso que muitos, muitas dezenas, talvez até mais que isso em todo o Brasil. Mas certamente não são milhares, como costumava apregoar o MINC, e nem mesmo várias centenas como querem crer e/ou fazer crer os três primeiros grupos a que me referi mais acima. É nesses relativamente poucos cineclubes que reside a possibilidade de salvação do movimento cineclubista brasileiro. E, além desses, no próprio público que, ainda que mantido como mera platéia dos muitos exibidores criados pelos programas governamentais e pelos produtores sem mercado, não é constituído por espectadores inertes, consumidores ou massa ignorante que possa ser alfabetizada pelo Estado e seus mandatários.

 Nas manifestações cada vez mais acanhadas que circulam na lista cncdialogo passeia um  cineclubismo de ficção, uma atitude de negação da crise mais que evidente e um impulso cego, provavelmente suicida, em direção a miragens miríficas que iriam resolver tudo. Quem, como eu, procura analisar essa situação e propor alternativas, é alijado dos debates, preterido nos questionamentos e, é preciso encarar, também ignorado por essa maioria misteriosa. Ou, no caso de pessoa menos conhecida ou assídua nas listas, é paternalizada, e se explica a ela que está mal informada; ou hostilizada, desqualificada como interlocutora.

Mas o movimento cineclubista – que quase não merece mais esse nome nas condições atuais (para satisfação do grupo que trabalha nesse sentido) – está visivelmente afundando, se desorganizando, cada vez mais ignorado pelo Estado e pela sociedade. E que não se confunda as diversas menções abstratas a cineclubes em discursos políticos – que ali são apenas sinônimo de exibição - com a participação efetiva dos cineclubes, ou do público, na elaboração de políticas, programas, etc. O movimento cineclubista está se desorganizando justamente como movimento, caminhando na direção do isolamento, da atomização, e daquelas entresafras históricas em que o cineclubismo some para o opinião pública e a sociedade, mantendo-se apenas como atividades singulares e irregulares.

A alternativa – até provável no curto prazo imediato – é um “cineclubismo” de mera exibição (e eventual debate com o autor), válvula de escape para a produção sem mercado que o orienta, argumento para o financiamento pelo Estado da produção que não se sustenta de nenhuma outra forma (nem pelo público nem pelos mercados). “Cineclubismo” esse que, por ser reprodução da empresa, iniciativa privada gerida por esse método, também não tem futuro: morre quando não se remuneram os fatores envolvidos e não produz capital que o sustente.

 Muitos trabalhos acadêmicos têm estudado o fenômeno da onguização dos movimentos sociais, da transformação de organizações associativas, representativas e democráticas em empreendimentos profissionalizados em que indivíduos ou pequenos grupos assumem a tarefa de intermediar a relação do Estado com a chamada sociedade civil, trocando o processo de participação, representação e reivindicação por um clientelismo dirigista com intermediários empreendedores. Infelizmente, o movimento cineclubista me parece um caso exemplar em que esse processo foi incrivelmente bem sucedido. Para a grande maioria, a palavra cineclube hoje refere-se a uma sessão de cinema, à projeção de um ou mais filmes; os promotores dessas sessões se identificam como cineclubes, mas já não têm uma estrutura associativa, participação efetiva do público, autonomia econômica ou independência ideológica. Pretendo escrever um artigo mais analítico sobre como o cineclubismo brasileiro se insere nesse processo, mas não aqui e agora; o propósito deste texto é apontar, talvez esclarecer os menos informados, sobre as diversas ficções que estão prevalecendo neste momento praticamente caótico do nosso movimento.

 Ficções

          Na lista em que ainda me é permitido participar, a cncdialogo (meu acesso às diversas listas regionais foi impedido inicialmente pelos responsáveis pelo Cine+Cultura - hoje de novo lideranças “cineclabedistas” -, isolamento que foi mantido depois pelos atuais dirigentes do CNC), está circulando um magro debate sobre a estranha situação da entidade nacional dos cineclubes brasileiros. E a convocatória, também muito incomum, para uma eleição limitada em todos os sentidos: no número dos eleitores; na legitimidade destes e, portanto, dos eleitos; no alcance e conteúdo do mandato que receberão; na sua duração. Essa discussão, e sobretudo os vazios dessa discussão, se apóiam preponderantemente numa incrível desinformação, numa boa dose de falta de compromisso e no egoismo de muitos dirigentes, um bocado de má-fé dos que querem destruir o cineclubismo, e um tanto de inexperiência e amadorismo. Infelizmente, todas essas carcaterísticas só são possíveis devido à falta de interesse e mobilização das chamadas bases cineclubistas.

 Tudo isso pode ser resumido de alguma forma no termo desinformação, em seus sentidos principais: falsa informação, omissão de informação e ignorância. Creio que, sem esgotar esse rico-pobre universo de equívocos, alguns tópicos principais abarcam a maior parte das questões que confundem atualmente esse processo tão vital para o cineclubismo brasileiro. Vou elencar, então, algumas dessas ficções sobre as quais se constroe o abismo mistificado em futuro brilhante que é objeto de um debate meio esquizofrênico, já que confunde a realidade com o delírio.

 Vou tratar dessas ficções um pouco de trás para diante, pois sei que os temas mais urgentes e as primeiras linhas – até porque este texto já está muito longo para o esforço de muitos – são os que mais prendem os leitores.

 
1)   As ficções das últimas jornadas

 
          Desde a incapacidade do CNC de organizar a Jornada de 2005, por falta de patrocínio e de iniciativa para se auto-organizar, mudou-se os estatutos do CNC e as jornadas, que foram anuais por um longo tempo, passaram a ser bianuais. Com isso todas as jornadas passaram a ser eleitorais e, encurtadas em um ou dois dias (também supostamente uma questão de preço, que desculpa incapacidades organizativas) se empobreceram bastante, tendo boa parte de sua atividade voltada para a composição de chapas únicas. Um novo “consenso”, falso, baseado na negociação de pesos e influências regionais (copiando a prática da ABD), substituiu a elaboração de um programa nacional. O último programa discutido em plenário é de 2004. Foi reratificado em 2006 e 2008 e, em 2010, uma rápida declaração de intenções – uma listinha de reivindicações gerais da produção e quase nada de cineclubismo – foi apresentada como sucedâneo de programa.
 A Jornada de 2006, que incorporava a falecida do ano anterior, foi realizada em Santa Maria, com muitos recursos locais e poucos federais e ainda uma ajudazinha do Memorial da América Latina (para a vinda de convidados internacionais). A partir dali, os organizadores teriam dois anos para preparar e “captar” para as jornadas.

 A Jornada de 2008 é um desses escândalos que se varreu para baixo do capacho da História. Proposta por esses mesmos protagonistas a que sempre retornamos (dirigentes do Cine+Cultura e hoje novamente de movimentos culturais com siglas criativas que mudam a cada ano), a jornada deveria ser realizada no Rio de Janeiro. Um mês antes, os organizadores informaram que não haviam conseguido os recursos. A Jornada acabou sendo realizada em Minas Gerais, quatro meses depois e partindo do zero, graças à capacidade e esforço dos companheiros daquele estado. Curiosamente, os mesmos protagonistas do Rio organizaram um Encontro Nacional, amplamente subsidiado (eles estavam assumindo a direção da Programadora Brasil), na data em que seria realizada a Jornada, mas para a constituição de um Circuito separado do CNC – e não era ainda o Cine+Cultura, nem nada estatal, apenas mais uma tentativa de organização paralela. Que, com o tempo, como tantas outras tentativas desse grupo, foi sumindo, sumindo...

 Em 2010 tivemos a Jornada em Moreno. Do ponto de vista organizativo foi um encontro normal e que ainda contou com a realização em paralelo da assembléia geral da FICC.


2)   A ficção da Jornada da Bahia


Em Moreno a Bahia pleiteou a realização da Jornada de 2012. Fiquei com a impressão que nada foi feito até meados de 2012 – isto é, por 18 meses -, apesar de o prazo ter sido criado exatamente para facilitar a organização da Jornada. A Pré-Jornada, realizada com vários meses de atraso e fora da estrita legalidade estatutária, recebeu em junho de 2012 o projeto da Jornada da Bahia. Projeto bem inicial, para começar a procurar parcerias e patrocínios, 6 meses antes do final do mandato do CNC. Eu (que não fui convidado, claro) sugeri por via eletrônica que se prorrogasse o mandato da diretoria numa pequena gambiarra legal: a Pré-Jornada era o último momento em que uma instância com alguma representatividade – o Conselho de Representantes – poderia legitimar uma tal deliberação, de resto não prevista nos estatutos. Recentemente alguém se referiu a essa reunião como a “mais representativa de todos os tempos”, o que é mais uma balela gratuita que só “cola” por falta de contestação. Nem vou entrar aqui nessa discussão, que nos afasta do mais importante. Então, voltando ao assunto: inicialmente todos eram contra; incrivelmente, acreditavam ser possível organizar a Jornada nos seis meses seguintes! Ao final do encontro, porém, a decisão já era unânime: prorrogava-se o mandato da diretoria e estabelecia-se a Jornada para até o final de março de 2013. Num encaminhamento equivocado, a diretoria do CNC contou seus votos (em causa própria) com os do CR nessa deliberação.

 Como me parece óbvio, o que não havia funcionado em dois anos também não funcionou nos 8 meses seguintes. Parece não ter havido acompanhamento, nem dos mobilizados integrantes do CR (mobilização que durou muito pouco) nem da diretoria do CNC, pois só em janeiro veio a público o reconhecimento de que a Bahia não conseguiria realizar a Jornada no tempo deliberado. Ora, a soma final de todas essas ficções é a idéia de que haverá um Jornada na Bahia no meio do ano. Não quero estabelecer julgamentos sobre os companheiros da Bahia, cujo trabalho respeito enormemente, mas me parece evidente que não há nenhuma informação clara e decisiva demonstrando a viabilidade da Jornada não apenas em julho, mas em qualquer futuro previsível. Não há recursos confirmados (pelo menos não há informações nesse sentido), apenas um relato dos esforços feitos e uma vaga esperança de que apoios fraternos se transformem em recursos tangíveis. Isso é irrealista. No entanto, estamos tratando a Jornada da Bahia como fato consumado, como grande conquista do movimento, prevista para meio milhar de cineclubes, além da criação de (mais) uma grande distribuidora de filmes (que integra o mesmo projeto). E nessa grandeza, ao que parece, se resolveriam todos os problemas atuais do cineclubismo brasileiro.

Não duvido da capacidade nem do empenho dos companheiros da Bahia, mas atrevo-me a considerar que a realidade se apresenta muito diferente: parece que continua não havendo recursos, não há indicadores concretos para a realização da Jornada e, como também ficou claro nos apelos feitos na lista, nem o CNC (seja lá o que ele for na situação atual) nem outros segmentos do movimento estão mobilizados para ajudar os organizadores locais dessa Jornada. Isso demanda mais engajamento, mais informação, mais planejamento. E mais tempo.


3)   As ficções de uma Jornada em Vitória

 
             Como disse mais acima – e em outras intervenções – o CNC caiu praticamente na ilegalidade a partir do momento em que não realizou eleições até dezembro de 2012. Como a gambiarra para prorrogar seu mandato foi proposta minha, creio que sou habilitado a reconhecer sua fragilidade. Não sendo advogado, não sei com certeza se um cartório reconheceria essa prorrogação. Ainda mais, como também já disse, que a deliberação foi divulgada como sendo tomada em reunião de que participou a própria diretoria – que, evidentemente, não poderia votar em causa própria. O importante era manter uma via qualquer para que a morte institucional do CNC não se tornasse um fato. Esse encaminhamento complica, mas quem sabe também passa... O que não era de se esperar era a ingenuidade de fazer essa prorrogação por tão pouco tempo, apenas três meses, diante da visível dificuldade de realizar a Jornada prevista.

 Em janeiro, na ultimíssima hora (os estatutos exigem convocatória com prazo mínimo de 60 dias), o CNC decidiu convocar uma Jornada exclusivamente eleitoral. É um caso único na história da entidade e do movimento. Uma solução evidentemente improvisada que, pela primeira vez, concede à falta de representatividade e democracia, e expõe o movimento a uma alta probabilidade de golpe. Vejam bem, não penso que isso seja intenção dos organizadores – tournou-se, no máximo, um vício que a maioria não percebe. No centro dessa proposta está a idéia de não deixar a entidade cair na ilegalidade, o que é louvável. No entanto, esse encontro já é assumidamente limitado. Como sempre só se pensa em passagens, hospedagem, tudo pago...  – mas mesmo que haja uma súbita e inédita mobilização, as condições não permitem uma eleição amplamente representativa. O que aliás, está nas entrelinhas de todos que comentaram o assunto. Alguns pensam numa eleição feita por delegados das regiões – já que a organização avisa só poder acolher 50 pessoas. O que seria uma eleição indireta, completamente fora da tradição democrática do movimento e da legalidade estatutária! Um arreglo antidemocrático. De qualquer forma, pela primeira vez na história deste movimento se faz uma concessão grave à falta de representatividade! E arrotando democracia, bleargh!

 Outra ficção é imaginar que esse mandato será muito curto, rapidamente substituído por uma diretoria eleita numa Jornada regular a ser logo realizada: essa é a ficção de que tratamos antes. Na verdade, essa nova diretoria, eleita às pressas e com dúbia representatividade, deverá administrar o CNC por um período que ainda não está definido: eleita, terá uma mandato mais amplo do que sugere a ficção que está sendo divulgada. Se bem que “administrar” o CNC seja em boa parte também uma ficção, como veremos no ponto seguinte.

 Mas o mais importante disso tudo é que, diante do prazo muito curto de convocação, da improvisação geral da participação e da falta de transparência gritante (em que pese a ficção da “horizontalidade”), de qualquer maneira haverá uma disparidade nas presenças, beneficiando regiões próximas, grupos “amigos” ou “especialmente mobilizados”, causando um desvio inaceitável na democracia do processo. Em palavras mais simples: a maior probabilidade é de que essa eleição configure um verdadeiro golpe.

 Mas estes meus comentários, como sempre, não são apenas derrotistas, ainda que a situação esteja muito feia. Podia ser pior, houve quem (os de sempre) sugerisse que se aproveitasse a oportunidade para mudar os estatutos do CNC. Seria a oportunidade de ouro para dar um golpe fatal no cineclubismo - que, como dizem esses, não é um movimento cultural -, dissolvendo-o nessa geléia geral de empreendedorismo. Bem, mais adiante (item 5) faço algumas considerações propositivas diante do quadro em que estamos.


4)   As ficções do CNC

 
          O CNC tem sido um acúmulo de mitos e desinformações. Num primeiro período, misturando muita inexperiência com o caráter autoritário de alguns líderes, estabeleceu um modelo muito centralizador que tinha dificuldade em formar e incorporar novos quadros dirigentes. A esse modelo veio somar-se o fenômeno tardio do apoio/dirigismo do Estado. Com os recursos obtidos pela terceirização de algumas ações do Cine+Cultura, o CNC ficou durante um bom período a reboque da distribuição desses apoios financeiros: equipamentos, ajudas de custo pessoais, pagamento de oficinas, etc. Mas nunca se estabeleceu, com o Governo, uma política cineclubista mais ampla; atividades, interesses específicos do cineclubismo não eram atendidos: publicações, encontros, inclusive as Jornadas. E muita coisa nem era pleiteada, por isso a justa expressão “a reboque”. Como sempre denuncio, o marco político dessa relação de dependência foi o meu afastamento da coordenação de oficinas e do manual de cineclubismo, este censurado, aquelas descaracterizadas quanto à formação de cineclubes (associativos). A direção do CNC foi basicamente a mesma, de duas pessoas, entre 2004 e 2010, mas formou alguns dos dirigentes que a sucederiam nesse ano.

 Não sei informar exatamente – como todos, não recebo essa informação – mas o CNC esteve inteiramente regularizado, se é que esteve, durante um período muito pequeno nestes dez últimos anos. A atual diretoria já recebeu a entidade sem relatórios completos – sempre pedidos pelo CR – e sem os muitos cadastros necessários para uma organização dessa importância. O estado legal do CNC é precário há muito tempo; com o não cumprimento do mandato torna-se agora catastrófica.

 No entanto, principalmente seu presidente insiste num discurso grandiloquente sobre grandes conquistas e uma democracia exemplar, que apelidou de horizontalidade. Para mim, essa horizontalidade é a da prostração, porque democracia e informação não prosperam e não circulam. Como, afinal, demonstra claramente o fato de a entidade cair na ilegalidade não apenas formal, mas fundamentalmente política, e isso ter sido empurrado com a barriga por meses, e acabar sendo praticamente uma surpresa para tantos.

 O CNC praticamente não se reúne fisicamente (creio que uma única vez desde 2010). Por skype realizou inicialmente muitas reuniões que paulatinamente foram rareando. Mas só uma minoria dessas reuniões teve quorum, medida de democracia obrigatória, estabelecida pelos estatutos. Há muitos meses, de plena crise, essas reuniões já não funcionam. Mas ainda se alardeia uma horizontalidade nunca vista. Vários diretores já abandonaram a diretoria na prática, pelos mais diversos motivos. A direção mantém uma lista privada onde circulam discussões e informações, mas a quase totalidade delas não chega aos cineclubes. Os assuntos – especialmente os que envolvem valores políticos ou econômicos - são entregues já prontos, para serem “cumpridos” pelos cineclubes. Ou não são levados ao seu conhecimento. Há muitos exemplos, que se transformariam em incontáveis discussões nesta lista - ou não, porque a maioria não reage. Mas agora, por exemplo, há o convite enviado pela Secretaria Latino-americana da FICC e pela Federação Tunisiana de Cineclubes para que os cineclubes interessados em participar da Assembléia Geral da entidade mundial, em abril, na Tunísia, se inscrevam: não há passagens, mas a Tunísia dá hospedagem completa. Aliás, o CNC recebe dezenas de convites anualmente para indicar membros de júris em festivais em todo o mundo, com as despesas pagas total ou parcialmente, mas não os divulga para os cineclubes como fazem outras entidades nacionais. Diversos problemas também são tratados internamente; aparentemente a incrível e inédita horizontalidade só se aplica às questões em que a diretoria decide que os cineclubes estão maduros para compreender. O que não é o caso quando se pensa no famoso Pontão Cineclubista, na Filmoteca Carlos Vieira ou em crises internas graves da diretoria e suas disputas intestinas, que foram bem intensas nesta gestão. Não sei se o espírito mais tradicional do político profissional brasileiro – a desfaçatez - contagiou os dirigentes do CNC ou se é uma espécie de ironia perversa, mas realmente cantar a horizontalidade das informações e decisões do CNC constitui uma enorme ficção. Quando alguém pede informações sobre a Jornada, na lista cncdialogo, recebe como resposta: “está tudo ótimo, estamos conversando entre nós”. Deixe com a gente – mas nenhuma informação. Como a de que o CNC não pode pleitear e receber recursos pois seu CNPJ foi usado por terceiros (concessão das mais horizontais...) que estão inadimplentes...

 Como também é ficcional a contagem de membros do CNC. Segundo o art. 13 dos estatutos, entre outras obrigações, os cineclubes devem pagar suas anuidades regularmente; o não cumprimento desse quesito implica no imediato desligamento da entidade. Ora, o que o CNC chama de 400 e tantos inscritos são os e-mails recebidos, diretamente ou através das federações ou entidades representativas equivalentes, muitas delas igualmente ficcionais. Nem a grande maioria das federações ou entidades equivalentes está organizada dentro das exigências dos estatutos do CNC, nem os cineclubes “membros” comprovaram existência nos seis meses anteriores à regularização de sua inscrição e nem sequer pagaram a pequena anuidade. Duvido que sequer 10% dos “associados” do CNC tenham pago sua anuidade e preencham os demais quesitos de filiação. Na verdade, esse pagamento será feito na jornada, e praticamente só pelos que forem: é um pagamento para votar.

 
5)   Alternativa: Por uma ampla Jornada nacional e democrática

 
Além das que apontei acima há as ficções dos cineclubes que, como disse antes, abordarei em texto específico: já fiz inimigos suficientes para um dia. Na verdade, apenas consolidei umas broncas que construo desde que me posiciono sem fazer média e puxar sacos.

Mas a situação do movimento cineclubista, como disse no início, é terminal. Fazer um sucedâneo de jornada em Vitória, ainda que busque honestamente salvar a entidade, só vai enfraquecê-la ainda mais, pois ignora as causas que nos trouxeram a este estado de coisas. Pessoalmente, penso que pode ser mais um passo – ou mesmo o derradeiro – para entregar o CNC a esse grupo de abutres que aguarda, sempre atento, para descaracterizar de vez a entidade cineclubista. Além de que a diretoria eleita a título precário não terá condições de efetivamente representar o cineclubismo legalmente – a não ser em “conselhos consultivos” em que esses critérios de legitimidade são liberalmente ignorados. Não poderá celebrar convênios, apresentar projetos, participar de editais, assinar compromissos, pois sua situação é completamente irregular, usando de um eufemismo. Aliás, é o que já vem ocorrendo: notícias nesta lista dão conta de reuniões e negociações com os novos executivos eleitos ou nomeados e os cineclubes não aparecem como interlocutores. São “representados” por outras entidades e/ou aparecem nas intenções de projetos, mas como mostrei antes: como sessões de cinema, exibições de filmes brasileiros da sofrida produção sem mercado... Esses “cineclubes” eles querem fazer aos milhões. O público é outra coisa.

 Não, nossa única saída politicamente madura é – como dizia Paulo Emílio Salles Gomes - assumir nossa precariedade para poder superá-la. Só uma grande jornada, amplamente preparada, com razoável antecedência, com um temário discutido em cada cineclube, com a presença de mais de um delegado por cineclube, com mais dias de debates preparando um verdadeiro programa a ser assumido pelo conjunto de cineclubes e a ser implementado institucionalmente por uma entidade sustentada pelas suas bases para ser ouvida pelo Estado e pela sociedade... só uma verdadeira jornada organizada de baixo para cima e independente de favores – mas reivindicando apoios legítimos e procurando parcerias enriquecedoras –, só essa jornada pode relançar o cineclubismo brasileiro, tirá-lo desta situação de falência econômica, política e até moral.

 Uma Jornada realizada na Bahia, onde temos do melhor que o cineclubismo pode produzir, e que já está envolvida, mobilizada, mas que necessita do apoio e da participação de todos para realizarmos uma magnífica jornada para um novo cineclubismo.

Pouco importa que seja em julho ou em dezembro (mas dezembro me parece uma excelente idéia), mas seria bonito que fosse este ano que marca o centenário do cineclubismo. Mas o mais importante é que seja uma Jornada com todos e para todos os cineclubes. E tendo empresas, produtores, realizadores, políticos e outros profissionais apenas como patrocinadores, convidados ou observadores.  Que seja uma Jornada do público do audiovisual.

 Esta reunião em Vitória deveria ser encarada como tal, como uma reunião de representatividade limitada que poderia constituir uma Comissão Nacional de Apoio para a organização da Jornada: cujo único mandato seria o de coordenar um esforço nacional em apoio aos companheiros da Bahia para a organização de uma grande, democrática e divertida Jornada. Uma comissão sem pretensão a qualquer outra legitimidade, que efetivamente não terá. É o estado em que estamos e um ponto de partida que podemos encarar positivamente para nos reorganizarmos, não com horizontalidades fantasiosas ou publicitárias, mas com uma boa e velha, e real, democracia.
 

6)   Apatia

 
        Infelizmente, temo que a recepção deste texto e destas propostas pode ser a mesma que um movimento aparentemente apático e “direções” equivocadas têm dado aos meus escritos. Que ficarão na pequena história deste movimento, como testemunha de uma visão discrepante de uma unanimidade horizontal de um movimento que se encontra deitado. Em Moreno eu conversava com uma amiga e - diante das negociações que montavam a direção do CNC exclusivamente em cima de conveniências pessoais e arreglos regionais - dizia a ela temer que nosso movimento se desestruturasse antes mesmo do final do mandato da presidenta Dilma, que também ia começar seu mandato. Um conhecido dirigente cineclubista, um dos principais articuladores desta situação, que se havia posto ali ao lado meio escondido para ouvir nossa conversa, não aguentou e se revelou, protestando contra o meu delírio: afinal éramos milhares de cineclubes, amiguinhos de ministros, xifópagos de ABDs, mandávamos nas “políticas públicas”, estávamos milionários com o Pontão...

 Temo que essa fraude de jornada capixaba venha a ser realizada e que se eleja canhestramente uma direção ainda mais precária e/ou menos independente que a atual, e que impulsionará a fragmentação inicialmente regional do movimento, depois possivelmente a atomização e a hibernação. Tal como aconteceu no auge do neoliberalismo, nos anos 90 do século passado. Até outro momento de reação, quando as comunidades e a sociedade formarem os músculos de uma democracia associativa e representativa construída desde as bases, quando o povo/público se organizar como sujeito criador do cineclubismo e do audiovisual e não como mercado paralelo, platéia passiva, objeto de catequeses estéticas e políticas variadas.