quinta-feira, 28 de outubro de 2021

 


 

O conceito de cineclube

Este artigo foi preparado para discussão dentro do grupo de estudos Ponto de Encontro Cineclubista, que reúne cineclubistas e pesquisadores de cinema voltados para o tema. O próprio título do texto foi dado pela reunião que me atribuiu a tarefa. Está pensado para o contexto do grupo. Assim, é um tanto provocativo, pensando nas questões que penso poder suscitar, apesar da relativa brevidade do texto, um debate interessante entre os membros do grupo; também traz várias indicações bibliográficas, mas menos no sentido de justificar as afirmações feitas – como soem ser as referências mais acadêmicas – e sim para fornecer informação para outras pesquisas que tenham a ver com os trabalhos dos companheiros. 

Heteroglossia

Falar sobre conceito de cineclube remete à necessidade de esclarecer, inicialmente, o próprio termo. Palavras, como indicou Bakhtin, são os signos principais da comunicação humana, no sentido de que, não sendo os únicos, são os mais gerais e ubíquos: retornamos sempre às palavras para tratar, mesmo na reflexão subjetiva, de toda a realidade, inclusive dos outros signos e sistemas de signos que utilizamos. Mais que isso, o pensador russo mostrou que os signos, ligados à transformação da realidade – o trabalho – e produzidos socialmente, isto é, no terreno da interação social, da intersubjetividade, são sempre, por definição, ideológicos. Cada palavra – ou melhor, ato de palavra – tem um sentido exclusivo a cada enunciação. E a este corresponde outro sentido específico, dado por cada ouvinte. Bakhtin chama esse sentido particular de tema do enunciado, e de significação o sentido que adquire uma maior permanência, adotado num conjunto social mais amplo: de grupos, comunidades, até classes sociais e, eventualmente, numa posição hegemônica mais ou menos estável na própria sociedade. Os dicionários, de fato, organizam a variação, a polissemia da maioria de seus verbetes, segundo uma ordem derivada do uso, ou seja, segundo o uso, a estabilidade dos sentidos das palavras. Para Bakhtin essa polissemia, no limite presente em cada enunciação particular, constitui uma heteroglossia: uma circulação permanente de sentidos diferentes, vozes diversas que interagem dialeticamente no campo social. O enunciado, veículo ideológico de interação social, é sempre parte de um diálogo, dialético. Assim, é também um espaço de luta de classes.

Palavras como cinema, filme ou cineclube revestem-se de diferentes sentidos e de conteúdos ideológicos muitas vezes contraditórios. Cinema, por exemplo, vai da mais óbvia identificação com a sala mesma, e/ou com a atividade de lazer ir ao cinema, até a indicação de diferentes dispositivos: a indústria do cinema, o campo cultural do cinema, a arte do cinema. E mesmo a linguagem do cinema. E, como na fala (ou qualquer outra linguagem adotada pela sociedade humana), os sentidos dos enunciados da linguagem cinematográfica são igualmente estabelecidos – adotados socialmente com maior ou menor estabilidade – pelos diferentes níveis do tecido social e, no limite, pela compreensão individual subjetiva de cada espectador. Que é, por sua vez, determinada pela sua inserção na intersubjetividade social. Um dos elementos da variação de sentidos da palavra cinema é a sua repercussão em diferentes contextos idiomáticos. Em francês – e português –, cinema está mais associado à primazia dos Lumière e de seu aparato, o cinematógrafo; em inglês prevalece Edison e seu produto, as imagens em movimento (moving pictures, depois simplesmente movies). Daí podemos passar para a palavra filme, também sinônimo de cinema para os anglófonos, que se consolidou mais como o produto mesmo, a película que era sua base, e depois assumiu o sentido de produto artístico, veículo da linguagem cinema e, portanto, para a maioria, consolidado o dispositivo social do cinema, como narrativa. Mas o filme/película não é necessariamente narrativo – nem nasceu assim, mas como “simples” ou mecânica reprodução da realidade. Como a grande maioria dos estudiosos do cinema admitem, a narratividade só se consolidou como sentido hegemônico no período chamado de institucionalização do cinema, pelo menos mais de uma década depois das experiências de Émile Reynaud, de Edison, dos irmãos Skladanowsky ou Lumière. A concepção de filme como narração é claramente ideológica, e vai mais além: consolida o modelo comercial de entretenimento, baseado na transposição de códigos literários consagrados. Hoje, parte dos cultores cinéfilos da aura do cinema gosta de louvar as “transgressões” ou invenções que fogem aos dogmas narrativos, esquecendo que a narrativa linear é ela mesma uma imposição do sistema industrial de produção do cinema.

Cineclube

O mesmo se dá com o termo cineclube, evidentemente. O conceito de cineclube tem, antes que tudo, um emprego que Gramsci situaria no plano do senso comum, isto é, da repetição automática e acrítica de uma ideia mais ou menos vaga, e que não se aplica concretamente aos fenômenos reais. Em outras palavras, até mesmo os dicionários reproduzem uma mera descrição empírica e superficial de cineclube: uma reunião de aficionados pelo cinema. Mesmo essa ideia vaga, no entanto, tem uma origem histórica e ideológica muito clara: os anos 20 do século passado – cerca de 30 anos depois do surgimento do cinema – quando as elites intelectuais se apropriaram de experiências populares contemporâneas do próprio cinema, tornando-as mais palatáveis ao dispositivo socioeconômico dominante.

Já escrevi, inclusive, sobre as vicissitudes etimológicas e históricas do termo cineclube, mais recentemente em dois artigos: O primeiro cineclube? Periodização do cineclubismo – epistemologia e ideologia e Ainda a epistemologia do cineclubismo, que estão disponíveis em meu blogue: https://felipemacedocineclubes.blogspot.com/. Esses textos discorrem mais amplamente sobre a origem do vocábulo cineclube e podem ser de interesse para complementar os argumentos que uso aqui.

Mas descrever empiricamente o objeto: “cineclube é uma reunião de gente que se interessa pelo cinema”, elude a compreensão do processo que resulta na significação do fenômeno. Num cineclube as pessoas se reúnem em torno de um filme, sem dúvida. Mas como? Para quê? Que tipo de pessoas? Em que contextos?

As pessoas, em geral, gostam de cinema (ou de seus muitos “derivados”, em múltiplos suportes ou mídias). Existe uma cinefilia geral, ou comum, ao lado daquele sentido tão claramente ideológico que identifica o gosto pelo cinema como apanágio de especialistas, de conhecedores. Mas as pessoas também gostam de leitura, de pintura, de fotografia, de histórias em quadrinhos e muitas outras formas de expressão, outras linguagens. Não é só o cinema que tem seus devotos e suas instituições, no nosso caso os cineclubes. No final do século 18, principalmente, com um aumento importante na alfabetização, na urbanização e na expansão do proletariado, houve uma “febre de leitura” que atingiu alguns setores dessa nova classe social. E eles se organizaram, em clubes de leitura e bibliotecas populares (Cavallo e Chartier, 1997), por exemplo. Mas, ainda que hoje existam alguns clubes desse tipo, certamente estão em estado avançado de extinção – em boa parte por causa de uma mídia que, um século depois, superou em grande parte o que e como os livros podiam oferecer: o cinema. Bem antes, as artes visuais tiveram suas próprias organizações, os salões, depois galerias de arte, que existem até hoje, mas sempre foram e são instituições de e para privilegiados. Outros salões – os que Habermas (2014) estudou como esferas públicas – também cultivavam a leitura, talvez mais a imprensa, e o debate, e foram muito importantes para a formação de uma opinião pública burguesa indispensável ao ascenso da nova classe dominante. E assim por diante: diferentes públicos, eu diria, dão origem a diferentes formas de organização – e, mais ou menos paralelamente, iniciativas particulares dão origem a empreendimentos de tipo capitalistas, ou se apropriam de outras, transformadas em iniciativas comerciais. São reflexos não simétricos, na superestrutura, das mudanças nas relações de produção.

O que esse parágrafo procura mostrar é que elas – organizações e instituições – vivem ciclos históricos precisos, mais ou menos extensos (como até os modos de produção, pelo menos nesta pré-história em que vivemos), determinados, sem mecanicismos (Williams, 2011, p. 56-58: “culturas residuais e emergentes”) pela sua adequação ao processo produtivo e às relações sociais. Praticamente todas elas, neste momento, ou foram totalmente integradas ao mercado capitalista – como se dá com as instituições de artes visuais – ou, sem conseguir ligar-se organicamente à outra classe fundamental, tornaram-se praticamente irrelevantes social e culturalmente, vegetando sem muita perspectiva em ambientes pequeno-burgueses. Esse é também o caso dos cineclubes, mas ainda é cedo para entramos nesse tema específico.

O público

Antes de propor uma definição mais abrangente para cineclube é necessário examinar o conceito de público. Esquenazi (2006), em seu repertório de estudos do público, encontra uma proposição básica comum: público é sempre, e se define por ser, público de alguma coisa. Ele vê quase sempre esse público como uma sociação, termo empregado por Pierre Sorlin (1992, p. 86-102), emprestado originalmente de George Simmel para descrever uma reunião mais ou menos efêmera em torno de um evento comum. Alguns autores, que reconhecem maior protagonismo dessas audiências, compreendem que seus vínculos possam ser mais extensos do que a ocasião que os reuniu, o público constituindo-se como algum tipo de comunidade. Mas não conheço nenhum que trabalhe com o conceito de público como uma categoria social mais abrangente – à exceção talvez de Kracauer (2009, e Hansen 2004), que fala do público cosmopolita do cinema, justamente após a institucionalização deste último.

A meu ver, podemos trabalhar epistemologicamente com o público em três instâncias: o público imediato, audiência e sujeito de um evento; o público comunitário, compreendido no âmbito de uma comunidade, como o de uma biblioteca ou mesmo, de forma mais ampla, o público leitor, o público feminino, o público brasileiro, etc. e, finalmente, o público moderno, fundado pelas particularidades inéditas do cinema no contexto do que chamam de segunda revolução industrial ou simplesmente de modernidade (Singer, 2001, Staiger 2005, Albera, 2012), determinando, paradigmaticamente, a disposição do público das chamadas indústrias culturais. E que, enquanto categoria, abrange a quase totalidade da população. Corolário deste último, devemos pensar também em um público contemporâneo, conceito que assinala a passagem para a mídias audiovisuais. Definem-se os públicos por sua relação com alguma forma ou meio de comunicação, do evento particular até praticamente o conjunto da população nos dias de hoje. Com o cinema, o público atingiu proporções inéditas, tornando-se categoria central no processo de transformação social. Com a ampliação ainda maior atingida com a televisão e, atualmente, também com as novas mídias audiovisuais e o mercado audiovisual planetário, o público praticamente se confunde com o totalidade da população, com o conjunto de segmentos que constituem um proletariado contemporâneo,  constituído pelas classes que não têm acesso aos meios de sua própria produção simbólica que, hoje, incluem e se confundem com os meios de comunicação audiovisuais. Marx (2010) já indicava a tendência de aglutinação da sociedade em duas classes fundamentais e antagônicas. Esse conceito de público, em minha perspectiva, vai ao encontro de outras formulações, especialmente as dos cineclubistas italianos Fabio Masala (1986) e Filippo de Sanctis (1970), autores originais da Carta de Tabor dos Direitos do Público, da ideia de oprimidos para Paulo Freire (2013), de povo para Martín-Barbero (2013) ou mesmo da cidadania segundo Canclini (2007).

É o público, em todas essas três instâncias, que dá sentido ao cinema: enquanto linguagem e, ao mesmo tempo, como mercadoria, ao reproduzir, no papel de consumidor, as condições da sua produção. O cinema só existe por causa da existência do público, e este, reversamente, se constitui como público do cinema. Consequentemente, o mesmo se aplica ao conjunto das mídias que constituem o dispositivo audiovisual contemporâneo.

Tal como na relação homóloga capital-trabalho operando dentro do sistema capitalista, o público, a grande maioria da população que não tem acesso aos meios de produção também de seu universo simbólico, constitui o polo oposto ao do “cinema” no sentido de capital do cinema, indústria do cinema, cinema comercial (que existe em função do lucro). Os dois polos opostos geram instituições que disputam a hegemonia social nesse plano. Toda a organização do sistema produtivo do cinema, sua divisão em aparatos de produção, distribuição e exibição, assim como os formatos da linguagem (narrativa linear, literária) e do produto (duração dos programas, longa-metragem, ficção, documentário, etc.) e gêneros, entre outras, são instituições geradas pelo capital. Outras instituições, como os cineclubes, as cinematecas, o uso do cinema na educação, a experimentação, o cinema amador e até mesmo, no limite, os cinemas nacionais lá onde não existe uma indústria do cinema, têm sua origem no público. Estas dependem, em boa medida, de sua tolerância pelo capital; aquelas, igualmente, mantêm-se apenas na medida em que o público as reproduz. Ou seja, todas essas instituições estão em conflito permanente e oscilam ou se modificam conforme a maior ou menor influência específica de cada polo. Qualquer discurso ou narrativa cinematográfica é, como qualquer conjunto de enunciados, um espaço de heteroglossia e luta de classes, segundo o contexto social, momento histórico, etc. O mesmo acontece com as outras instituições do cinema.

O cineclube pode ser visto, numa perspectiva mais limitada, como a do modelo elitista, como um espaço opositor ao cinema. Mas essa é apenas a perspectiva redutora, pequeno-burguesa, de grande parte da intelectualidade: como na suposta oposição cinema de autor/cinema comercial, ou da defesa da diversidade geográfica, étnica ou de gênero como opositora à produção hegemônica. A oposição é, na verdade, mais ampla que essas, mais profunda, estrutural: o cineclube é um paradigma opositor ao cinema capitalista, é o embrião, a base da superação dessa forma de dispositivo cultural, justamente por se constituir como organização do público.

O paradigma do cineclube como organização do público

O cinema, enquanto dispositivo social, econômico, cultural, ideológico se constitui no processo de desenvolvimento da reprodução das imagens em movimento e sua adequação ao sistema das mercadorias. Em outras palavras, desde a luta pela supremacia de um processo – o cinematógrafo –, até a consolidação do cinema como mercadoria, seu processo de produção, circulação, consumo, que envolve a linguagem e outros aspectos. Desde a mítica exibição de 28 de dezembro de 1895 até os nickelodeons; destes até Intolerância, passando pelo processo de transição ou de institucionalização, que culmina com a consolidação de todas as mais importantes instituições do cinema.

Homologamente, o público que se espantava com a novidade das imagens em movimento, em seguida se divertia com a cinematografia de atrações de feiras e mafuás, depois vaudevilles, teatros de revista e outros, também encontra uma forma mais sólida a partir dos nickelodeons e sua audiência mais ampla: a do proletariado, que também estava ainda em fase final de formação. Mas é apenas no final daquele período, atingindo o que Kracauer chamou de público cosmopolita (weltstadt publikum), constituído por um leque social ainda mais amplo, que o cinema constitui, assimila e domestica seu público. Esse é, então, o público moderno. Cinema e público se formaram como opostos dialéticos do mesmo processo.

Evidentemente, esse percurso, dos primeiros kinetoscópios e cinematógrafos até a projeção de longas-metragens nos palácios de cinema, com a audiência enquadrada por lanterninhas, não foi linear, sem muitos conflitos. Já falei bastante sobre isso, em artigos esparsos (disponíveis em meu blogue) ou em conversas virtuais, como as da série Passado e Futuro do Cineclubismo, no canal YouTube do Cineclube Ó Lhó Lhó. O cineclube, como outras instituições importantes do par conceitual cinema-público, se forma desde o início desse processo – e, de fato, suas origens o precedem, tal como esse processo também não surge do nada em 1895. Práticas educativas, de proselitismo político ou religioso começaram a empregar cinematógrafos desde a sua aparição. Logo tornaram-se atividades mais frequentes, muitas itinerantes, em campanhas contra o alcoolismo, por exemplo, ou para divulgação dos sindicatos. Nos nickelodeons – e outras salas populares – a manifestação de formas de descontentamento do público era bastante comum, levando progressivamente à organização de sessões independentes, em organizações populares, e em salas mais estruturadas – além da produção de filmes e noticiários – resultando em novas formas de organização desses públicos. É, então, em torno dos anos 10 do século passado, entre 1908 e 1913 que surge uma forma institucional definida: o que hoje chamamos de cineclube. O Cinema do Povo[1] é o exemplo mais acabado dessa nova forma de organização.

               O cineclube não era uma “reunião de amantes do cinema”, mas claramente uma forma de organização independente (em oposição às salas comerciais), anticapitalista, que, na tradição da classe trabalhadora (Williams, Thompson), se constituía de forma coletiva e democrática para ter acesso, e mesmo criar, um cinema “que mostrasse a vida real dos trabalhadores” – como disse um dos organizadores do Cinema dos Trabalhadores (Workmen’s Film Theatre, 1911, Los Angeles) a jornais da época (Ross, 1999). Daí a minha formulação das três características essenciais que definem a instituição cineclube: o caráter associativo e democrático; a ausência de finalidade lucrativa e o objetivo de se apropriar do cinema – no limite, de criar um novo cinema, objetivo ligado intrinsecamente ao estabelecimento de uma nova sociedade.

          Essas três características não se aplicam apenas aos cineclubes que surgiram no final da primeira década do século passado. Elas são paradigmáticas para todas as formas de cineclube subsequentes, até os dias de hoje. E mais, elas não apenas definem cineclube, mas constituem o paradigma que se aplica ou pelo menos influencia decisivamente, todas as formas de organização do público no campo do cinema e, ainda, das mídias audiovisuais.

          O processo de apropriação e descaracterização das instituições do público, que prossegue sempre, atuou fortemente sobre o paradigma criado no início do século. De uma proposta de subversão radical e totalizante do cinema comercial, as práticas se dividiram, se desorganizaram em alguma medida, atenuaram seus objetivos. A criação, identificada com a produção/realização, foi afastada da organização da recepção, e individualizada na figura do autor/realizador. A ficção tornou-se o elemento preponderante; corolário disso, a documentação da vida – da identidade e memória do público – e sua preservação, também se tornaram, nos anos seguintes, função especializada, isto é, as cinematecas. O aspecto pedagógico e político da formação do público também foi afastado, especializado, criando outra linhagem, a do cinema educativo, reduzido inicialmente ao chamado filme “científico”, e nunca “legitimado” pelo cineclubismo hegemônico (nos anos 50, dos cerca de 10.000 cineclubes existentes na França, 8.000 eram de uma federação de “cinemas educativos”, a UFOLEIS - União Francesa das Obras Laicas pela Imagem e Som, fundada em 1933).

Todas as práticas e organizações ligadas a essas “ramificações” da organização paradigmática do público apresentam, no entanto, em algum grau, os elementos de associativismo, ausência de finalidade lucrativa e objetivo de apropriação do cinema. O mesmo já se observa, também, em muitas das novas práticas de comunicação que chamo de audiovisuais: as rádios e tevês comunitárias ou piratas, e blogues, vlogues e outros canais de comunicação pela internet, em que pese o incentivo geral às iniciativas de caráter pessoal (característica da classe dominante), o controle da chamada propriedade intelectual e a forma de assalariamento modificada (em contraposição ao financiamento coletivo) que busca ou efetivamente controla grande parte das iniciativas de maior repercussão – além dos mecanismos de policiamento de conteúdo exercidos pelas grandes corporações que controlam esses espaços e por diferentes agências policiais governamentais

Falência do modelo

          Os anos 20 e parte dos 30 estão marcados por esse processo de apropriação, descaracterização e enfraquecimento das organizações do público – dialeticamente articulado com a sua difusão internacional. O modelo de certa forma “atenuado” do cineclubismo transformador, revolucionário, que o antecedeu, tornou-se dominante e, aceito institucionalmente – com muitas querelas com a censura – e, mais ou menos tolerado pelo comércio do cinema, espalhou-se pelo mundo inteiro. Esta última observação deve, no entanto, ser um pouco relativizada: a região que mais estimulou organizações do público trabalhador, a União Soviética, foi ostracizada, ignorada em todos os aspectos pela cultura dita ocidental. A tal ponto que pouco se conhece dos clubes operários de cinema que, no entanto, formaram a base inicial de todo o cinema dos países da URSS. Nos Estados Unidos, a outra potência cinematográfica que justamente se consolida definitivamente (até agora) nessa época, a presença acachapante da indústria hollywoodiana também obscurece o papel dos cineclubes mais ou menos efêmeros (com notáveis exceções), também presentes sobretudo nos ambientes proletários e universitários.

          A nova Guerra Mundial também teve um papel nesse processo de expansão, mas praticamente interrompendo-o; ele foi, contudo, retomado de forma quase explosiva logo após o encerramento do conflito. No final dos anos 40 e início dos 50 o número de cineclubes aumenta exponencialmente na Europa, principalmente, e também tem um notável crescimento em toda a América Latina. É a “idade do ouro” dos cineclubes, a retomada criativa da cinefilia elitista, que vai alimentar uma geração de “novos cinemas” em todo o mundo – inclusive o Cinema Novo brasileiro. Essa movimentação cultural é também muito influenciada pelas novas tecnologias de portabilidade e de reprodução do som – num paralelo, talvez, com o papel que tiveram os “pequenos formatos” de captação e exibição de imagens nos anos 20.

          O ápice desse processo é interrompido com a disseminação da televisão. Sua difusão muda bastante o cenário do cinema comercial, induzindo uma reorganização geral – isto é, a partir do centro que monopoliza o cinema mundial. Com exceção dos países centrais – Europa e América do Norte anglófona – o cinema se torna um produto de consumo limitado às regiões e camadas sociais mais ricas. Com outras formas de consumo audiovisual, que não param de surgir, o processo de individualização do acesso se acentua, o que ajuda a abalar ainda mais as práticas cineclubistas elitistas. É o próprio modelo de “adaptação crítica” ao cinema comercial, de cinefilia de autor, que torna esses cineclubes mais vulneráveis à expansão econômica e tecnológica do capitalismo. A cinefilia vai para o terreno do consumo privado. O cineclubismo sofre um impacto importante, diminuindo muito em número nos países centrais (anos 70) e quase desaparecendo nos países de médio e baixo desenvolvimento econômico e social. O fato de muitos países da África e do Sudeste da Ásia alcançarem a independência mais ou menos na mesma época – nos anos 60 -, de maneira pouco organizada, não apenas dificultou ou mesmo impediu a consolidação de um movimento cineclubista próprio, mas na verdade praticamente incapacitou esses países a desenvolverem um cinema nacional.

Nos países centrais, hegemônicos, o cineclubismo mantém as mesmas características de sua idade do ouro, mas sem o mesmo impacto social ou cultural. Tornou-se parte do grande cenário do cinema comercial, uma forma de cultura residual perfeitamente integrada: fornece um pouco da diversidade que o cinema comercial não oferece, sem realmente contestá-lo, isto é, concorrer, de qualquer maneira que seja, com ele. Sob formatos inspirados nesse modelo, a maioria dos cineclubes de países mais ou menos periféricos mimetizam esse processo. Mas sem as mesmas estruturas sociais, oferecem uma espécie de pastiche do cineclube de país desenvolvido: o cinema de autor praticamente se confunde com o cinema nacional (conceito também indiscutido) – que não existe como indústria cultural – e a busca pela originalidade, diversidade e afirmação contracultural se encontra nas produções amadoras, frequentemente produzidas pelos próprios mentores desses cineclubes, eles mesmos buscando alguma identificação com a figura mítica do autor. Aproveitando e adaptando um pouco minha exposição dentro do 1º. Seminário de Cineclubismos Latino-americanos, de julho deste ano:

“No Brasil, especialmente, já não se encontram praticamente cineclubes organizados como associações. Disso decorre um virtual rompimento da ligação com as comunidades em que atuam, pois elas não estão representadas, para além do desejo ideal dos animadores dessas atividades, nos ditos cineclubes. Afirmar que não têm fins lucrativos também perdeu parte do sentido, já que a maioria depende da sustentação do Estado – paradoxalmente muito pouco presente – ou de algumas poucas instituições de ensino que, por sua vez, frequentemente determinam uma parte do seu trabalho, retirando-lhes parte da autonomia. Os cineclubes mantêm a diretriz de passar filmes relevantes, é verdade, e de realizar debates, geralmente centralizados numa figura de autoridade: alguém da produção do filme exibido ou um especialista acadêmico. A relevância do que é exibido é determinada pelo gosto institucional dessa classe média: o tal do cinema de autor e um compromisso com o cinema nacional.”

Perspectivas

Aproveitando, ainda, a mesma apresentação:

“Não é mais possível usar a palavra cineclube com um significado unívoco: seu sentido se diluiu, perdeu aquela precisão paradigmática – que apenas ronda, como um fantasma residual, as diferentes práticas que encontramos.

E não existe ainda uma concepção unitária de como organizar o público, as comunidades em que vive, para um mundo em que as mídias – que quase por definição, hoje, são audiovisuais – estão omnipresentes e constituem o principal elemento e ambiente de mediação das relações sociais no plano simbólico.

Os cineclubes, e o público, têm diante de si o desafio de se apropriar das mídias que hoje ocupam o papel que o cinema teve no século passado.”

 

A falência do modelo cinéfilo e elitista não significa, em absoluto, o fracasso da instituição cineclube, mas apenas a crise da concepção pequeno-burguesa e, num certo sentido, “reformista” de cineclube. Os cineclubes não surgiram, e não se confundem, com lugares de culto à aura (Benjamin, 1935) cinematográfica e de educação bancária (Freire, 2013) “do olhar”. Com o dispositivo do cinema como referência, essas primeiras organizações do público tinham como objetivo propiciar sua expressão através da então relativamente nova mídia, apropriando-se dela em todos os aspectos: produção, circulação, recepção, assim como sua aplicação como elemento de preservação da memória, de promoção da identidade e da autoconsciência histórica (educação) das classes dominadas sob o jugo capitalista.

 

Mas o cinema, na verdade, constituiu apenas o processo inicial do estabelecimento de um dispositivo mais amplo, das mídias audiovisuais (Elsaesser, 2018); o cineclube contemporâneo tem, portanto, como objetivo, a organização do público para que este se aproprie do dispositivo midiático. Diante da crise generalizada: do modelo elitista, da fragmentação e dispersão de outras iniciativas do público, da falta de compreensão e direção unitárias diante da situação, além das crises complementares que afetam outras formas de organização popular, em outros campos – sindical, partidário, etc. –, o grande desafio do cineclubismo é encontrar as formas de superação dialética da situação presente. Sob pena de permanecer numa condição de irrelevância política, social, cultural e de adiar, de forma importante, a construção de uma sociedade justa, igualitária e livre: objetivo do qual se origina e que constitui sua maior finalidade.

Procurando resumir o que na verdade é matéria para muita discussão, o cineclube contemporâneo deve construir a adequação de sua tradição popular, do paradigma cineclubista, aos meios de comunicação da atualidade, às mídias audiovisuais. E essa não é uma questão técnica, mas uma tarefa política que envolve a rearticulação do próprio cineclube, da sua organização, e de suas formas de integração e representatividade em relação às comunidades em que se instituiu – além, é claro, do domínio das técnicas e da capacidade de criar novas formas de expressão e de comunicação através delas.

Atualizar – no sentido mais profundo, fazer essa adequação histórica – o cineclube implica na ressignificação das suas características “tradicionais”. Assim, o caráter associativo e democrático precisa ser retomado com seriedade, através de formas de participação e integração permanentes e abertas, e de práticas inclusivas, que permitam a sistemática incorporação de um público ativo, consciente e participante. A questão da finalidade não lucrativa deve ser melhor compreendida, e superado o “gratuitismo” que contamina os cineclubes, mantendo-os em situação de dependência externa à comunidade, sem condições de sustentabilidade real e sem os vínculos que deve estabelecer com seu público. Incontáveis novas formas de sustentação e crescimento podem ser descobertas e desenvolvidas com os novos meios – além daquelas tradicionais. E a apropriação, claro, deve incluir a teledifusão, os novos formatos (aplicativos, videogames, canais web, blogues, vlogues, lives, etc.) e “suportes” propiciados pela rede internacional de dispositivos cibernéticos (televisores, computadores, celulares, etc.). A noção ideológica de filme, que comentei mais atrás, também deve ser superada: a reprodutibilidade técnica e simbólica da realidade através dos meios audiovisuais inclui, para além do filme de ficção ou documentário, a reportagem, a entrevista, a captação e difusão de todos os eventos e espetáculos esportivos e culturais (apresentações musicais, de dança, bailes, feiras e outras manifestações) da comunidade e de interesse do público do cineclube.  A experiência presencial é intrínseca e indispensável ao cineclube. Mas, além das exibições retangulares em salas especiais às escuras, a acessibilidade quase universal aos conteúdos (sem as limitações da aceitação e reprodução do controle da propriedade intelectual) permite a organização de outras “salas” e públicos, em outras disposições, quantidades, sistematicidades e finalidades. Em minha exposição na série Passado e Futuro do Cineclubismo, no terceiro encontro, justamente, O Futuro do Cineclube[2], apresento logo no início uma brincadeira com a história do Cineclube Revolição, que busca exemplificar mais concretamente como se podem dar essas mudanças e ressignificações.

Montreal, outubro de 2021, ano II da Pandemia.

Felipe Macedo

 

Bibliografia citada

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THOMPSON, E.P. 2012. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz & Terra.

WILLIAMS, Raymond. 2011. Cultura e Materialismo. São Paulo: Editora UNESP

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 30 de julho de 2021

 


 

Um guia bem pessoal do 1º. Seminário de Cineclubismos Latino-americanos

Sendo um dos seus organizadores, assisti ao vivo a todas as intervenções feitas no Seminário. Foram 33 exposições, em 10 mesas, de manhã, à tarde e à noite nos três primeiros dias e uma só no domingo, dia do encerramento. Pouca gente fez isso, o que é natural. O resultado maior do Seminário foi o de criar um amplo painel de abordagens diversas sobre o cineclubismo que é, também, permanente, e ficará sempre disponível para consultas, para retornos às questões, eventuais anotações. É um arquivo audiovisual do cineclubismo, uma novidade importante, e um marco na própria história do movimento de cineclubes. Esse arquivo só tende a - e de fato estimula - o crescimento.

O próprio tema do cineclubismo é bastante especializado, e o pequeno interesse que desperta - não especialmente no Seminário, mas em todas as muitas conversas virtuais e debates sobre o assunto que proliferaram neste tempo pandêmico – mostram não apenas a especificidade do objeto, mas uma certa indiferença dos próprios cineclubes, que me parece corolário dos problemas que enfrentam nos dias que correm e aos quais voltarei mais adiante neste artigo. Embora o Seminário tivesse um escopo continental, atingindo potencialmente mais de duas dezenas de países – e certamente muitas centenas de práticas cineclubistas ou que se aparentam, isto é, atividades audiovisuais em ambientes comunitários, escolares e outros – e ainda que tenha sido bastante divulgado nas chamadas redes sociais de vários países (mais de 100 mil pessoas receberam a programação, e foram confirmadas cerca de 8 mil “reações” de algum tipo nessas plataformas) e difundido simultaneamente pelo Facebook e YouTube, a presença do público interessado, a cada mesa apresentada, esteve sempre em torno de 30 pessoas. O fato da FICC (Federação Internacional de Cineclubes) ter resolvido, literalmente em cima da hora, fazer um Encontro Ibero-americano, também virtual, apenas alguns dias antes (apesar das datas do Seminário serem conhecidas desde meados de 2020) também não ajudou. Uma pena. Claro, a possibilidade de aceder ao evento e às mesas de debates quando a pessoa quiser e durante o tempo que interessar, podendo zapear por esse espaço, fará que esses números aumentem consideravelmente nos próximos dias e meses. Esse patrimônio de informações, reflexões, é o grande ganho do que foi apenas uma primeira iniciativa do tipo.

Por outro lado, o número de trabalhos propostos e finalmente apresentados foi surpreendentemente grande. Como já havíamos estabelecido, com um ano de antecedência, que o Seminário teria 4 dias, pensávamos inicialmente que faríamos 4 mesas, uma por dia, possivelmente com 3 exposições cada uma. No final tivemos que acomodar os trabalhos em 10 mesas, 3 por dia, e várias delas com 4 apresentações. Ou seja, se o interesse dos cineclubes pela reflexão sobre a sua própria prática não parece consolidado, paradoxalmente, na intersecção entre a militância e a vida acadêmica o tema do cineclubismo parece despertar muita curiosidade e resulta numa produção ampla e consistente sobre o assunto.

As exposições, claro, foram desiguais – avaliação de resto sempre subjetiva. Como acabamos de dizer, o interesse pelos temas e abordagens que integram o “objeto” cineclube é, também, bem diversificada. A avaliação do Seminário tende a ser, portanto, um reflexo dos interesses e da(s) experiência(s) do espectador cineclubista. Meu caso, claro, não é exceção. E é assumindo minhas preferências, ou melhor meus interesses e minhas decepções, que compartilho esta “leitura” do Seminário.

Raymond Williams e o cineclubismo

Claro que valorizo minha própria intervenção – senão não a teria feito. E ela me conduz a um dos aspectos que julguei mais interessantes no Seminário: as aplicações das categorias de cultura residual e cultura emergente, de Raymond Williams, ao cineclubismo. Usei esses conceitos para localizar a persistência da influência do modelo de cineclube elitista dos anos 50 em tantas práticas cineclubistas dos dias atuais, um efeito cultural residual de contextos históricos superados, que também poderíamos chamar de ideia fora do lugar aproximando a questão da conhecida proposição de Roberto Schwarz. Também mencionei que as diferentes práticas inovadoras no campo do audiovisual comunitário – na verdade hoje mais desenvolvidas por outras formas de organização dos públicos, não pelos cineclubes – não têm tido uma repercussão mais significativa na transformação das relações sociais no plano da cultura, cabendo, assim, em alguns processos que Williams identifica com cultura emergente.

Mas eu estava pensando muito numa extensão semântica mais ampla de cultura, isto é, na transformação de tendência gerais e paradigmas históricos de uma certa amplitude. O que não está errado, acho eu, mas o trabalho apresentado por Marilin Perez, na mesa 5: Inicios y Auge de Cine Club Santa Fe: El entramado económico, socio-político y cultural entre los años 1953-1966 me fez ver com muito mais acuidade a extensão dialética das categorias de Williams. Perez, ao invés de tratar os acontecimentos que cercam o surgimento do cineclube de Santa Fé e da cinefilia nos anos 50 como manifestações de formas culturais estanques, fora de lugar, propõe e demonstra, justamente, que elas constituíram, naquele contexto, formas emergentes de cultura, correspondendo às transformações sociais daquele momento. Tanto que, além de motivarem e mobilizarem centenas e até milhares de associados do Cineclube, tiveram papel central no surgimento da conhecida Escola de Cinema daquela cidade, liderada por Fernando Birri, que tanta influência teria, por sua vez, no desenvolvimento dos novos cinemas latino-americanos, com destaque para o brasileiro – aqui já são comentários meus. Suas colocações também enriquecem muito a compreensão que podemos desenvolver sobre todo o fenômeno da onda de cineclubismo e cinefilia que se espalhou simultaneamente na América Latina e, de fato, em boa parte do mundo naquele período.

O trabalho de Perez tem uma relação direta com o que Rielle Navitski apresentou na mesa 1: Programación, públicos y clase social en los cineclubes latinoamericanos de la posguerra: Una mirada comparativa. Resumindo bastante, Navistski, tratando do mesmo período, mas com sólida pesquisa em cineclubes de diferentes países, destaca o caráter contraditório desse movimento emergente, que era concomitantemente democratizante e paternalista, mostrando seu inequívoco caráter de classe – da pequena-burguesia intelectualizada dessa época. É interessante que também a fala de Eliana López, na mesa 4 - La muerte de la cinefilia y la vida del Cine Club Universitario, em suas conclusões, também mostre esse paradoxo entre vanguarda e comunidade no Equador, uma década depois.

Ainda nesse registro, Mariana Amieva e Ana Broitman, na mesa 8, apresentaram o trabalho sobre Redes cineclubistas en el Rio de la Plata en las décadas de 1940 y 1950, que mostra outras relações, como a penetração de uma crítica de corte cineclubista na grande imprensa e suas interfaces com o surgimento das cinematecas da Argentina, do Uruguai e mesmo do Brasil.

Rafael Zanatto, na mesa 10, fecha, de certa forma, essa trajetória, trazendo essa problemática – cujo caráter latino-americano o Seminário ajuda a demonstrar – para o Brasil com sua intervenção sobre Paulo Emílio e o Cineclubismo no Brasil (1958-61): Formação, difusão e pesquisa histórica. Entre muitas outras observações importantes, ele recuperou a crítica que Paulo Emílio Salles Gomes, em meio ao próprio fenômeno, fazia dos exageros artificiais e alienados de uma certa cinefilia de distinção social, que também é observada (mas agora feita com distanciamento histórico) na crítica presente nos outros trabalhos aqui citados. A ligação que Zanatto faz entre o trabalho de Paulo Emílio e o cineclubismo, e como o situa no contexto histórico e cultural do período estudado labora no mesmo sentido das outras intervenções citadas e provoca muitas outras reflexões sobre o papel dos cineclubes na sociedade naquele momento. Por exemplo, aponta as relações causais entre o cineclubismo e o surgimento do estudo de cinema nas universidades. Além, claro, das origens (tardias) das cinematecas latino-americanas também a partir de cineclubes.

Haveria muito mais a dizer dessas intervenções, que estão entre as mais importantes do Seminário, mas meu objetivo aqui é mais resenhar um pouco, propor ligações entre as abordagens e, sobretudo, motivar os leitores deste texto a aproveitarem diretamente essa discussão, disponível no canal YouTube do certame.

Outros temas

Diferentemente de outras lives que têm discutido o cineclubismo nas redes “sociais” do senhor Zuckerberg (Facebook) ou da companhia Alphabet (YouTube), o Seminário não selecionou alguns especialistas para discutir um determinado tema, mas fez uma chamada aberta de trabalhos – durante cerca de um ano – para discutir amplamente o cineclubismo na América Latina, com abordagens diversificadas. Isso não retira o mérito de outros debates, mas tem alguns que lhe são próprios, até aqui exclusivos: o Seminário aproximou experiências de dez países do subcontinente, que propuseram seus próprios interesses. Isso revela muita coisa sobre o cineclubismo, tanto pelos assuntos abordados como pela ausência de outros. Também tem a qualidade de descobrir, de certa forma, experiências, tratamentos e mesmo talentos que não faziam parte de nenhuma rede ou grupo já conhecido. O Seminário, sobretudo, aproximou a produção acadêmica do ambiente cineclubista, o que pode beneficiar a ambos.

Algumas intervenções feitas nesse encontro são de fundamental interesse e importância. Eu resenhei algumas, que me atraíram particularmente, pelas questões abordadas e pela qualidade das pesquisas e apresentações. Mas diversos outros temas também me interessaram e agradaram e, certamente, serão mais ou menos atraentes para outras pessoas, com interesses diferenciados. Tentarei indicar e resumir alguns outros temas que julgo relevantes.

Mulheres e cineclubismo

Apenas dois trabalhos que abordam essa questão foram enviados para o Seminário. Ambos são pesquisas mais ou menos em andamento, já que cineclube é um tema muito recentemente legitimado pelos estudos acadêmicos e a questão de gênero, tal como na teoria feminista, como recorte do cineclubismo, está ainda mais em sua fase inicial. Os trabalhos foram apresentados na mesa 3.

Ainamar Rodagut estuda o papel de três mulheres no que se conhece melhor como início do cineclubismo na Argentina e no México: Mujeres iberoamericanas mediadoras y sus redes en los cineclubes de finales de los años 20 y 30: Lola Álvarez Bravo, Victoria Ocampo y María Luz Morales. Sua pesquisa visa propor a ideia de redes de relacionamento como base para uma abordagem metodológica e categorial do papel das mulheres no cineclubismo, em qualquer escala. Tal como se poderia aplicar aos cineclubes anarquistas ou católicos, por exemplo. Uma pesquisa de muita qualidade.

Já Priscila Sales apresentou o delineamento inicial de sua pesquisa doutoral sob o título de Mulheres no cineclubismo brasileiro (1970 e 1980). A abordagem de Sales revela a importância da Dinafilme – distribuidora de filmes orgânica do movimento cineclubista – no estabelecimento de interfaces entre cineclubes feministas, filmes cujo tema principal era a mulher e até as poucas diretoras de filmes dessas duas décadas. Um trabalho pioneiro e indispensável.

As duas intervenções, cada uma à sua maneira, são muito interessantes e suas apresentações foram bem instigantes. Ainda que também mostrem um estágio inicial do tratamento de uma questão tão fundamental, elas têm indiscutivelmente o mérito de despertar curiosidade e disposição para ampliar e aprofundar esse tipo de trabalho. E mostram que isso já começou e que vai bem.

Hiperconexão e pedagogia cineclubista

Outro tema que julgo primordial é o que chamo de pedagogia cineclubista. Não se trata de ensino de cinema ou com cinema, mas do estudo do papel particular, próprio e exclusivo que penso caber aos cineclubes na formação do público e, muito especialmente, da infância. A questão não é a formação com cinema, nem mesmo com as mídias que o substituíram e superaram como mediação social, mas da formação das pessoas, indivíduos e comunidades, para sua participação consciente na sociedade, o que não pode prescindir do domínio da capacidade de se instruir, se comunicar e se exprimir através das mídias. Foi na mesa 9 que se fizeram as principais exposições sobre o tema da educação em suas relações com o cineclubismo.

Apenas o trabalho de Altayra Rojas - Lenguaje cinematográfico e hiperconexión, una experiencia desde la educación y la niñez – foi direto a esse ponto. E o fez de forma muito pedagógica, digamos assim, já que nos ofereceu uma excelente introdução ao assunto, e um comentário sobre os principais teóricos da atualidade nesse campo: Henry Jenkins, Pierre Levy e Alberto Scolari - sem esquecer seus antecessores, em muitos sentidos: Lev Vigotsky, Jean Piaget e Paulo Freire. Como moderador da mesa, sugeri a ela que lembrasse também o papel essencial de Mikhail Bakhtin na explicação do processo social de formação dos sentidos (dos signos), que tem muito a ver com os três últimos autores citados.

Milene Figueiredo apresentou seu projeto de tese - Histórias sobre crianças e cineclubismo: a ressignificação do cineclubismo escolar - que, para mim, apresentou, ou propôs, outra perspectiva fundamental: o ensino fora da escola, ou o estudo das interfaces entre escola e comunidade. A meu ver, é preciso ressignificar tanto a escola quanto o cineclube. O trabalho de Figueiredo aponta substancialmente nessa direção. Em outra mesa, a 10, Paula Cherep y Santiago Santillán mostraram, em Resistir, mostrar, reflexionar. El ciclo de Cine y Filosofía como experiencia de extensión cultural um aspecto da mesma reflexão, agora aplicado no ensino superior, no que chamam de extensão cultural, conceito que tem um significado diferente do mais usual nos meios universitários no Brasil. Sidimar Brandolt completou a mesa com  Cineclube: um novo olhar, para um novo pensar sobre o uso do cinema em sala de aula no IFFAR (Instituto Federal Farroupilha), campus de São Vicente do Sul (RS).

Práticas transformadoras e presença da Venezuela

Gizely Cesconetto também apresentou, na mesa 5, um delineamento do seu projeto de tese, no campo da Geografia cultural. O objeto é seu próprio cineclube e o recenseamento dos cineclubes brasileiros que estão realizando. Acompanho esse trabalho bem de perto e creio que ele se apresenta como uma ferramenta indispensável de reconhecimento da situação concreta dos cineclubes brasileiros no momento presente. Cesconetto explica que essa pesquisa se dá em dois níveis: o do mapeamento objetivo e o do auto-reconhecimento subjetivo dos cineclubes. Para mim isso é fundamental para o debate não apenas das práticas desses cineclubes, mas também para a identificação de suas necessidades e interesses comuns, num momento de desorganização do movimento cineclubista e mesmo da sociedade civil, numa conjuntura de reação e atraso político e social do País. Esse trabalho é ou representa simultaneamente uma tese, um cineclube, uma prática específica e uma ação política.

Juan Manuel Hernandez, por sua vez, na mesa 8, apresentou uma visão do cineclubismo bem ampla, geográfica e historicamente: Reconociendo nuestra mirada al cineclubismo. Uma reflexão teórica que deita raízes numa longa experiência prática pessoal do venezuelano Hernandez, participante e criador – desde o século passado – de um cinemóvil, um tipo muito especial de cineclube itinerante, que invade e ocupa temporariamente ruas e outros espaços de comunidades, trazendo ações que envolvem outras mídias e mesmo outras formas de expressão: do teatro até um aparelho que Hernandez criou que permite “entrar” nos televisores das comunidades “invadidas”.

A Venezuela constitui uma questão em separado. O processo político radicalizado e polarizado determina claros posicionamentos dos cineclubes daquele país. Nancy de Miranda, na mesa 2, apresentou um quadro bastante completo da evolução das atividades comunitárias com cinema - Venezuela: Apreciación y Realización Audiovisual Comunitaria 2007- 2019 – sob a direção da Cinemateca Nacional, isto é, do Estado venezuelano. Embora muito diferente da nossa experiência, na análise desse trabalho pode-se encontrar muitos traços comuns com o que vivemos no Brasil, de forma bem incipiente, com o programa Cine Mais Cultura.

A presença da Venezuela, em contraste com muitas experiências e discursos mais conservadores que o Seminário também mostrou, trouxe obrigatoriamente a reflexão da atividade cineclubista para o campo social e político.

Outros temas

Como já disse, a avaliação dos trabalhos que faço é bastante determinada pelos meus interesses pessoais de pesquisa e do processo subjetivo que me leva a extrapolações talvez nem sempre pertinentes, mas que para mim são inspiradoras, me estimulam e levam a novas conjecturas e reflexões.

Nesse sentido, é preciso citar o trabalho de Julio Lamaña, apresentado na mesa 1: Protohistoria de los públicos. Asonadas, disturbios y otras manifestaciones del público de cine en Colombia. Lamaña faz uma espécie de recenseamento de vários autores que tratam dos primeiros tempos do cinema na Colômbia, abordando também as manifestações dos públicos nas primeiras décadas dessa história. Além do anedotário muito interessante dos distúrbios provocados pelos públicos insatisfeitos, Lamaña indica a relação de inadequação latente entre os possíveis interesses do público e os da indústria, mais particularmente dos exibidores. Esse trabalho, a meu ver, demonstra ou pelo menos indica, que “há vida” nos públicos antes dos anos 20 (casos da Argentina, Brasil e México) ou a partir dos anos 50 nos demais países. Ao contrário de uma historiografia ideológica que só consegue reconhecer o cineclubismo, isto é, o público organizado, nessas datas completamente dissociadas das experiências de outros países. Países esses que, aliás, só recentemente começam a entender isso, como na recente proposta da Federação Portuguesa de Cineclubes, que sugere o surgimento do cineclubismo em 1907 – mas isso já é outra discussão. Os estudos que informaram essa apresentação mostram que não há desculpa: existem fontes a serem pesquisadas na busca das primeiras origens do cineclubismo nos países latino-americanos.

Outro trabalho muito interessante foi apresentado por Gabriel Álvarez, na mesa 10: Carlos Monsiváis y la cinefilia universitária. Trata-se do que eu chamaria de uma crônica investigativa: uma apresentação breve – como o Seminário obrigava – do papel de Carlos Monsivais na formação de uma cultura cinematográfica (que Álvarez identifica como cinefilia) no meio universitário mexicano. Monsivais é um nome e uma obra que precisam ser melhor conhecidos. Muitos o associam aos chamados Estudos Culturais Latino-americanos, junto com Jesús Martín-Barbero, Nestor Canclini e alguns outros. Mas Monsivais tem uma trajetória diferente, principalmente como jornalista e crítico em diferentes mídias: foi uma figura nacional no México. Lembro de João do Rio, um contexto completamente diferente, quando penso em Monsivais. Mas é verdade que ele tem um papel muito importante na valorização da cultura popular e na tomada de muitas posições em situações políticas que viveu e enfrentou.

A última exposição foi a de um cineclubista de gênero. No sentido cinematográfico do termo. Um fã de filmes fantásticos, de heróis e monstros, como Christian Aguirre chamou sua intervenção:  De dibujos, monstruos y héroes: El Cine Club Nocturna. De certa forma foi um fecho de ouro para o Seminário, porque o que ele nos apresentou foi uma série de imagens evocativas desses temas, dos filmes de ficção, de terror, de animação. Pessoalmente, acho que essa prática de fandom, como muitos a chamam, tão típica de nossa tradição cineclubista e do culto cinéfilo, são totalmente válidas, mas atendem sempre a um aspecto da ação cineclubista. Hoje, com as tecnologias digitais que tanto facilitaram a obtenção e exibição de materiais específicos, isso pode ser oferecido como uma entre outras atividades do cineclube. Como um grupo de estudos, que nesse caso pode ser bem agradável e divertido. Como foi essa apresentação.

Cultura residual

Essa identificação das persistências do modelo “tradicional” ou hegemônico do cineclubismo dos anos 50 na atualidade é uma visão minha. Não foi dita ou assumida por ninguém mais durante o Seminário e não deve ser inferida dos comentários que faço neste artigo. De fato, creio que o Seminário revelou, para além das preleções aqui lembradas, uma grande – senão prevalente – presença de uma concepção cinéfila de cineclubismo, ligada à “educação do olhar”, uma atitude tutorial diante da formação do público, e de culto diante do cinema. Como já destaquei, poucas intervenções falaram de outras mídias – aqui me lembro apenas de Altaira Rojas e Juan Manuel Hernandez (mas, é claro, o tema não cabia mesmo em muitos dos trabalhos apresentados). E, de forma surpreendente, creio que nenhuma falou de produção, de realização de filmes ou outros materiais audiovisuais por cineclubes. Isso também é muito revelador, e se inscreve entre as várias reflexões que o Seminário pode sugerir. 

Para mim, esses traços que mencionei constituem uma cultura residual, ou seja, formas superadas pela realidade, pelo desenvolvimento das relações sociais, que não correspondem mais ao contexto atual. Mas que sobrevivem, pela força excepcional (quer dizer de exceção) de algumas instituições ou, o que é mais comum, de forma precária, sem qualquer impacto social ou cultural.

O fato de representar esse tipo de sobrevivência excepcional não retira a importância de algumas experiências que construíram, ao longo de décadas, uma tal inserção na comunidade, que continuam a ser muito relevantes. É o caso mais que importante do Cineclube de Santa Fé – e, por consequência, do Cineclube de Reconquista – que continua sendo uma referência na cultura da cidade e da região. Tanto que foi objeto de três trabalhos (mesas 5, 6 e 10 – além da mesa 7, com o Cineclube Reconquista) apresentados no Seminário, todos muito interessantes.

O Seminário, enfim, mostra que a proposição de um debate amplo e democrático, organizado com o rigor que essas duas características – alcance e democracia - exigem, é capaz de revelar descobertas, aprofundar conhecimentos e propiciar novas reflexões não apenas com as posturas com que nos identificamos, mas, com a mesma intensidade, com aquilo que achamos equivocado, e que nos leva a imaginar outras análises, soluções.

Iguais oportunidades de participação e liberdade de debate são indispensáveis para que a organização da sociedade avance. Um cineclube também se baseia nesses princípios, não?

julho de 2021, ano II da Pandemia

 

 

terça-feira, 22 de junho de 2021

 

 

             Cineclubes? Presentes!

                     


500.000 mortos, e provavelmente mais uns 30% não comunicados devidamente. O que é “30%”? São outros 150.000. Mortos. Certamente vamos ultrapassar os Estados Unidos em mais um ou dois meses: seremos campeões! Pátria amada, Brasil! 

Foram cerca de 18.000.000 de contaminados – também subestimados. Os especialistas avaliam que cerca de 15% destes – quase 3.000.000 - estão sequelados, em diversos níveis de gravidade, e levarão meses para se recuperar. Isto é, os que se recuperarem, pois alguns – uma minoria, ora, desses 3.000.000 - terão problemas permanentes. Haveria que se contar igualmente os que sofrem de outras doenças ou precisam de intervenções ou tratamentos hospitalares e que morrem por falta de atendimento, de vagas em UTIs e de outros procedimentos clínicos. Aí também morreram centenas de milhares. Quantas pessoas são atingidas afetivamente, moralmente, financeiramente por esses “números”? Quantas famílias perderam sua principal fonte de sustento? Quantas crianças ficaram órfãs? Milhões...

No entanto, fora desses “poucos” milhões atingidos diretamente – no total “apenas” uns 10 ou 15% da população brasileira – estamos tratando essa questão como estatística mesmo, como números abstratos, como um tsunami que acontece na China, um terremoto na Indonésia, países onde as vidas valem pouco no ranking do capitalismo global, no mundo controlado, explorado e desprezado pelas classes dominantes dos países euronorteamericanos brancos, cristãos. Como nós, que estamos adormecidos, insensibilizados, ou de tal forma explorados que praticamente não podemos oferecer resistência. O mesmo acontece com o outro genocídio, esse permanente, secular, de negros, de pobres, de miseráveis, da população LGBTQIA+, das mulheres... Os vulneráveis como se gosta de dizer, os dispensáveis, os invisíveis, que são, no nosso País, mais de 70% da população. Os jornais dão como notícia quase corriqueira que, neste último ano e meio, 52% da população brasileira tiveram, pelo menos, “alguma dificuldade” para se alimentar! 10% passam fome mesmo!

         Mas não. Não é uma questão de insensibilidade nem de alienação. Nossa situação é especialmente difícil: nossa história de escravidão e exclusão; de domínio ideológico de religiões autoritárias – católica, evangélica -, vendendo uma salvação ao alcance de quem se submeta sem questionar; de fragilidade das classes sociais, com uma burguesia oportunista, subserviente e, sobretudo, sempre cruel, e com os setores populares superexplorados, desprotegidos juridicamente, perseguidos por uma polícia ineficiente, corrupta e assassina. Desorganizados. E além disso ainda temos um boçal na presidência, cercado de fascistas, civis e militares. Não é pouca desgraça.

 Eu sabia, ao começar a escrever este texto que, além da emoção por tantas mortes evitáveis, estaria também preso a uma certa obviedade, uma repetição de comentários sobre o que todo mundo que poderá ler isto já conhece, já sente. Mas que talvez não esteja conseguindo transformar em ação real, política, na direção absolutamente indispensável de derrubar esse aprendiz de ditador e levá-lo, junto com seus asseclas, à justiça e à prisão.

 Muita gente resiste, é claro. Segundo matéria da Folha de São Paulo, a segunda manifestação contra Bolsonaro, pela vacinação e auxílio emergencial de 600 reais, teve o dobro de participantes em relação à primeira. Foram, segundo o jornal, 750.000 em todo o Brasil – acho que foi mais, mas como saber realmente? O mesmo jornal publicou outros números – e as fotos da ocasião, principalmente o discurso de Bolsonaro no Ibirapuera, mostram bem -, desta vez com uma fonte bem séria: o pedágio por que todos os bolsomotociclistas passaram. Os brucutus (uma ofensa ao personagem dos quadrinhos do meu tempo) nunca foram mais de 6.000 (do outro lado, na Avenida Paulista foram pelo menos 100.000).

A resistência existe, cresce, se expande, marcando um avanço importante na consciência popular. Mas esse avanço ainda é insuficiente – e a cada dia morrem mais de 2.000 pessoas. É preciso dobrar os números de novo, e redobrar, decuplicar. Só o povo derruba esse troço!

Às vezes o óbvio se esconde em plena vista. Vivemos numa pandemia. Vivemos no país do Bolsonaro. Muita gente se indaga se haverá um golpe. Ora, que ele, o Bozo, pensa o tempo todo em articular um golpe é evidente. A sua capacidade de fazer isso pode ser debatida, mas a intenção é indiscutível: e é certo que haverá violência – com sua provável derrota nas urnas, mas possivelmente até mesmo em caso de vitória (argh!). Seus seguidores: o movimento fascista; os PMs ressentidos e seus primos, os milicianos; setores das forças armadas (cuja extensão ignoramos); os facínoras armados com mais de 1.000.000 de fuzis, pistolas e revólveres postos em circulação por este governo, vão sair por aí atirando. Em pessoas. Matando, como fazem em seu cotidiano de policiais sanguinários e/ou em seus sonhos ressentidos de machos inseguros. Não estamos em um normal da pandemia ou da pós-pandemia; é uma emergência, é preciso agir! Agora!

     Uma vez, conversando com o cineasta chileno Miguel Littín, conhecido por seus filmes sobre a ditadura em seu país, ele comentou como uma espécie de piada: “Naquele tempo a gente passava quase qualquer filme e debatia... Pinochet.” Fazíamos o mesmo nos anos 70 e 80, contra a nossa própria ditadura. A situação atual é muito parecida, mas ainda mais mortal, mesmo se comparada à ditadura chilena que, nesse quesito, nos ganhou de longe naquela época (se é que é possível comparar). Por isso falo dos cineclubes. Há uma certa mobilização cineclubista no ar, não apenas nas sessões e debates virtuais, mas também em encontros, oficinas, debates organizativos que se tornaram muito mais fáceis com os recursos midiáticos de hoje. E qual é o papel social prioritário dos cineclubes?


Não há tempo a perder: tempo é morte no Brasil


Então lanço um apelo: não é hora de “alfabetizar o olhar”, de discutir linguagem[i]. É urgente mobilizar consciências! Nós, cineclubes, temos que engrossar esse movimento de avanço da consciência democrática e transformadora. Não há tempo a perder: tempo é morte no Brasil. O papel dos cineclubes, nesta hora, é muito importante. Não é por isso que fazemos cineclubismo, ainda que de formas e com concepções diferentes? Pela vida.

Os debates, as lives precisam mobilizar as mais amplas parcelas do público! Não é hora de debater Bergman, mas sim de desnudar o nosso aspirante (por enquanto) a Pinochet. A linguagem cinematográfica, importante sem dúvida, fica para depois da tragédia, na reconstrução. Oficinas de formação, ou para participar de editais, devem ser articuladas com a organização e mobilização da resistência: não é uma coisa técnica.

É hora de fazer uma programação política, combativa, comprometida com a causa da defesa da democracia e da vida. Bem sei que não é o filme que resolve isso, é o debate. Mas desconfio que essa linha de trabalho, neste momento, com filmes que remetam à discussão do que todos estamos vivendo, provavelmente reunirá mais público, aproximará muito o cineclube e a comunidade.

Creio ainda que esses debates, com o público ou entre cineclubes e redes, devem ser realmente interativos, deixar fluir livremente as opiniões e as emoções (porque o Brasil nos emociona): essas lives com um grupinho de convidados que fala, em que os participantes – o público – só pode escrever comentários no chat, deveriam ser realmente interativas. Todos devem poder falar, mesmo sob o que alguns veem como risco de perder um pouco o controle, a ordem. Afinal, que ordem se está querendo preservar?

Os cineclubes, que hoje incorporaram a capacidade de produzir, precisam documentar nossa tragédia em sua própria comunidade. Encontrar suas manifestações locais, documentá-las, divulgar, denunciar, discutir com suas comunidades. Para além das construções mais elaboradas dos documentários, os noticiários e cinejornais são uma tradição dos cineclubes operários dos anos 20 e 30 (as Ligas de Cinema dos Trabalhadores, que existiram em todo o mundo, por exemplo), que se estende pelos grupos militantes latino-americanos, do Cine de Base argentino até o Grupo Ukamau, da Bolívia, ou o Chaski, do Peru, hoje em dia. Como foram atingidas as famílias locais, que ações de solidariedade material e proteção sanitária foram criadas pela comunidade? O público gosta de se ver na tela, como todos sabem; a questão real é que o público deve ocupar as telas! Deve ser o sujeito das suas narrativas.

Uma outra tradição cineclubista e proletária, que vem até de antes, do século 19, é a dos Tribunais. Hoje a gente descreveria esses tribunais como performances, teatralizações de temas: problemas, ou indivíduos e organizações que os provocam, que afetam as comunidades. Monta-se um tribunal, com juiz(es), advogado(s) de acusação e de defesa, e testemunhas. Provas são apresentadas e discutidas; os jurados são o público[ii]. A questão em julgamento pode ser o Bolsonaro ou outro político, o combate à pandemia, um caso de racismo, um abuso... O que, enfim, o cineclube decidir que é relevante, oportuno. Uma variante de tribunal pode ser a organização de uma CPI – uma Comissão Popular de Inquérito – com atores (pessoas da comunidade ou mesmo profissionais) representando diferentes figuras: o Pazuello, a Capitã Cloroquina, o Renan Calheiros, os senadores bolsonaristas e por aí afora. Além disso poder ser realizado virtualmente, como na CPI do Senado (e em muitos tribunais de verdade), filmes e matérias jornalísticas podem intercalar as intervenções, constituir provas.

Bom, essas são apenas algumas sugestões, contribuições se ajudarem de alguma forma: a imaginação dos organizadores e a participação do público é que determinam o acerto e o sucesso de todas essas iniciativas que, de certa forma, ousei propor. Peço desculpas pelo texto longo, mas talvez muito incompleto; é em boa parte um desabafo diante dessa indescritível tragédia em que se transformou nosso País.

Abaixo Bolsonaro!

Vacinação para todos!

Auxílio emergencial digno até que todos estejam vacinados!

 

junho de 2021, Ano II da Pandemia

 

 



[i] Todas essas expressões: “alfabetizar o olhar”, discutir linguagem ou “programar Bergman” são simplificações que não devem ser entendidas literalmente, mas como uma provocação e uma incitação a uma prática mais politizada, também no sentido mais amplo – e, ao mesmo tempo urgente - deste termo. Trata-se de articular os recursos e os saberes dos cineclubes, como estes puderem organizá-los, para ajudar a promover uma mobilização social suficiente para deter este presidente genocida e combater a pandemia. Só o povo organizado...

[ii] Há uma cópia ruinzinha, mas que vale muito a pena ver, do filme Tribunal Berta Lutz, do João Batista de Andrade, cobrindo o tribunal organizado por feministas e pelo Cineclube Nós Mulheres, em 1982: https://www.youtube.com/results?search_query=tribunal+berta+lutz