sábado, 3 de dezembro de 2016



Quando vejo organizações nacionais ou encontros representativos de cineclubes se manifestarem “em defesa do cinema de autor” ou de um “cinema de qualidade” percebo que muitos cineclubistas ainda não realizaram em toda a sua extensão o que representa o público, e sua relação com o cineclube e o cineclubismo. Essas expressões entre aspas estão presas a concepções estéticas elitistas originadas no impressionismo francês dos anos vinte e superadas pela última vez ao final do ciclo da Nouvelle Vague. Ou se prendem a uma postura essencialista e paternalista ancorada na noção do “bom cinema” do espectador cristão, falecida pouco depois. A autoria, como categoria ontológica, nada mais é que uma justificação filosófica para a propriedade privada econômica, ou moral, como fator de prestígio social.
Assim, muito sucinta e esquematicamente, resolvi escrever este pequeno artigo, um estímulo e uma provocação à reflexão sobre o cineclubismo nestes tempos de revolução técnica, antesala do caos ou da Revolução.

O Cinema do Público

Nos anos 70, à medida que crescia o movimento cineclubista comprometido com a resistência à ditadura militar, e que deitava raízes nos movimentos sociais e meios populares, surgiu a percepção de que os cineclubes eram uma forma de organização do público, resultantes da expressão de suas necessidades, de seus interesses e do fato de que o cinema comercial não atendia esses objetivos, pelo menos para além da sua própria dependência da produção de lucro.

Compreender o cineclube como uma organização do público representou uma ruptura com a concepção dominante de cineclube como uma instituição voltada ao culto do cinema. Isso aconteceu um pouco em toda parte, sobretudo no terceiro mundo, e muito especialmente na América Latina. Mas talvez o cineclubismo brasileiro, que atingiu naquele período um nível muito avançado de organização, tenha sido o que mais claramente demonstrava essa concepção e prática, e que começou a sistematizá-la como teoria. Na Itália, talvez pela influência do pensamento gramsciano – e, de fato, coincidentemente na Sardenha – também se teorizava, na mesma época, sobre a primazia do público sobre o cinema na organização do cineclubismo. Precocemente desaparecidos, Fabio Masala e Filippo de Sanctis não podem ser esquecidos por todos que se interessem pela história dos cineclubes.

Como dissemos, isso aconteceu um pouco em toda parte, demonstrando que a verdadeira característica do cineclubismo aflora sempre que consegue superar a barreira ideológica do elitismo e das instituições culturais conservadoras que o relegam a um papel de culto alienado ao cinema. De fato, o cineclubismo nasceu claramente como uma instituição de resistência ao cinema de dominação e exploração que se consolidaria a partir da segunda década do século passado, sendo depois igualmente enquadrado e “institucionalizado” em grande parte.

O público é o autor

Ironicamente, foi em grande medida nos cineclubes da década de vinte que se desenvolveu a noção do autor individual como criador, responsável e proprietário das obras cinematográficas. Ideias que atingiram seu auge ainda num ambiente cineclubista, o da Nouvelle Vague dos anos cinquenta.

No entanto, as obras de arte são o produto de um processo cultural permanente e ininterrupto, fruto de um diálogo social em que todas as partes contribuem. Mesmo quando é possível se identificar um autor individual e original de uma obra – o que não é nem tão óbvio nem tão comum quanto se pensa -, ele está expressando um momento desse diálogo. O sentido final da obra é dado – também numa relação permanente, e em permanente mutação – na recepção, pelo diálogo social, nos termos em que o descreveu Bakhtin[i]. O consumo é produtivo. As abstrações dualistas emissor-receptor, autor-espectador, não existem na realidade: esta é uma espiral multidirecional que se modifica o tempo todo na história. A categoria permanente nesse diálogo é o público, do qual fazem parte os autores formais ou percebidos, seja qual for a medida e intensidade de seu envolvimento. O público é o autor social do sentido da arte numa luta ideológica ininterrupta pela apropriação desse sentido.

Cinema do capital e cinema do público

Como  o nome já diz, no sistema capitalista o capital organiza as forças produtivas assegurando-se da apropriação de seus resultados. O sistema funciona adequando todo produto e toda forma de produção à realização do lucro. E descartando, eliminando ou relegando a uma posição marginal o que não se adéqua. A história do cinema constitui um bom exemplo. Inúmeras invenções e processos foram sendo selecionados com base em sua adequação ao mercado, à capacidade e possibilidade de organizar esse trabalho para dar lucro. Até a metade da segunda década do século vinte esse foi um processo de várias vias e não poucos conflitos, que – muiito simplificadamente – acabaram com a prevalência, a hegemonia do cinema dito clássico, hollywoodiano. Outras alternativas foram abandonadas, perseguidas ou marginalizadas. Mas, entre as sobreviventes, continuou o processo permanente de tentativa de apropriação pelo capital.

De uma forma esquemática, existe um cinema do capital, voltado primordialmente para a produção de lucro, e outras práticas e instituições cinematográficas que, mais ou menos alijadas do sistema capitalista, se organizam sobretudo em torno do seu valor de uso[ii] para seu público, em detrimento de seu valor de mercado. Podemos falar assim, genericamente, de um cinema do capital e de um cinema do público. Cada um deles constitui abstratamente uma matriz geradora de instituições que diversificam e concretizam as formas de apropriação social do cinema (ou do audiovisual em geral).

Instituições do cinema dominante e instituições do público

O período chamado de institucionalização do cinema é geralmente situado entre 1905, com o surgimento dos nickelodeons ou salas fixas, e algum momento, menos preciso, na segunda metade de década de 1910, quando se consolidam as principais ou básicas formas de linguagem, de produção, circulação e recepção do cinema. Esse período – que chamamos em outros textos de a batalha do nickelodeon – foi justamente um conflito, ou uma série de conflitos interligados, entre as tentativas de imposição de modelos pelo capital e a resistência dos públicos, culminando no estabelecimento de um resultado composto mas essencialmente adequado à produção máxima do lucro. Esse cinema hegemônico é constituído de uma série de instituições – de linguagem, estilo, formas de consumo, etc – que continuam a serem criadas até hoje.

Entre elas podemos citar a forma literária linear da narrativa, a montagem transparente, a maioria dos gêneros cinematográficos, o sistema de astros e estrelas, as diferentes formas arquitetônicas (dos palácios aos multiplexes) de organização da recepção, e muitas outras.

Já do lado do público, resultado da resistência mais ou menos consciente ou organizada, diversas práticas e instituições marginalizadas experimentam diferentes trajetórias. A mais paradigmática – mais antiga e generalizada – de que se originam diversas outras, são os cineclubes. Mas também as cinematecas, os festivais de cinema, uma parte da crítica, os estudos universitários de cinema. Várias formas de produção e de estéticas de representação também evoluem fora ou em diferentes níveis de marginalidade em relação ao cinema comercial: a estas podemos chamar de cinemas do público. Evidentemente, são também apropriadas e agregadas aos mercados em alguma medida, conforme o caso. Ou são adotadas e protegidas pelo Estado, na atribuição clássica deste, de evitar o conflito. Mas, sem produzir lucro, sua dinâmica experimenta uma margem variável de autonomia em relação ao capital.

Os cinemas do público

Não apenas excluídos dos mercados, mas igualmente desconsiderados – pelo menos até muito recentemente – pela maioria das instituições sociais, como a imprensa e a universidade, a teoria e a história do cinema, essas formas são denominadas sempre em alguma medida pela sua excepcionalidade em relação ao modelo hegemônico (e, não raro, de forma pejorativa): cinema amador, cinema de família, cinema experimental, cinema científico, cinema de vanguarda, cinema operário, cinema negro, cinema feminista, cinema LGBT. Mas também, em grande medida, o cinema documentário, e até mesmos os cinemas nacionais, sobretudo nos países “não produtores” ou onde a produção não encontra mercado ou não consegue se industrializar em alguma medida.

Essas classificações, obviamente, são mais ideológicas que qualquer coisa. Os estudos de cinema estão hoje tentando incorporar essas práticas em uma teoria mais geral do cinema, já que a existente foi claramente abalada pela diversificação do universo audiovisual. No plano sócio-econômico vivemos outra batalha, que podíamos chamar de batalha das redes sociais, ou da apropriação dos espaços virtuais – políticos, econômicos, ideológicos, estéticos.

Estes “cinemas” têm todos uma relação muito próxima com os movimentos cineclubistas seus contemporâneos ou conterrâneos – e nem sempre de harmonia. A revolução audiovisual em andamento, além de reposicionar essas práticas e instituições, está criando novas, e todas elas são indispensáveis para a criação de um projeto de cineclubismo que pretenda se ajustar aos novos tempos e continuar a exercer um papel de organização representativa do público no campo do audiovisual.

Felipe Macedo – dezembro 2016




[i] Mikhail Bakhtin (Volochinov), Marxismo e filosofia da linguagem. Capítulos 1, 2 e 3. São Paulo: HUCITEC Editora
[ii] Karl Marx O Capital Crítica da Economia Política Livro Primeiro: O processo de produção do capital. Primeira Seção: Mercadoria e dinheiro Primeiro capítulo.  A mercadoria. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/cap01/01.htm