Teses para uma Jornada de cineclubes
e entidades congêneres
Apresentação: a
finalidade deste trabalho
Há uma Jornada convocada
através da lista (cncdialogo@yahoogrupos.com.br) que, desde 2004, constitui o principal espaço de comunicação entre as
iniciativas de exibição cultural no Brasil e outros interessados no assunto.
Desde 2012, quando acabou o mandato formal da diretoria da entidade nacional
representativa dos cineclubes brasileiros houve algumas outras convocatórias que
não se concretizaram – e mesmo um encontro, em 2013, de que falarei mais
adiante – mas desta vez parece que realmente vai acontecer e um número grande
de pessoas é esperado.
A iniciativa é bem-vinda,
mas também levanta questões que precisam ser avaliadas. Ao mesmo tempo em que
se abre uma oportunidade muito esperada por todo mundo que gravita em torno da
exibição cultural sem fins lucrativos, alguns riscos podem comprometer a
efetiva representatividade desse encontro, a profundidade e o alcance de suas
deliberações.
Este texto,
portanto, tem os seguintes objetivos: em primeiro lugar, colocar em contexto as
condições que trouxeram a exibição audiovisual sem fins lucrativos à atual
situação, partindo da sua origem histórica primeira; mostrar as concepções e
forças que atuam nesse campo, avaliar a preparação desta Jornada e refletir
sobre as possíveis consequências e desdobramentos das deliberações (ou da falta
delas) do Encontro. Uma segunda finalidade é a de apresentar algumas avaliações
próprias e propostas para consideração dos que se interessam em participar deste
congresso, e/ou da elaboração de iniciativas conjuntas independentes e
proposição de políticas públicas para a exibição cultural e para o
cineclubismo.
Não se trata aqui de
um texto acadêmico; mesmo assim é bem abrangente, portanto um tanto longo,
considerando o escasso hábito de debate que, infelizmente, marca a prática dos
envolvidos neste meio no Brasil. Ao mesmo tempo, é bastante breve em cada ponto
abordado, que pode ser lido e debatido separadamente se for aproveitado para
uma discussão sistemática preparatória da participação nessa reunião nacional. Essa
brevidade das abordagens, por outro lado, as torna mais esquemáticas e
inflexíveis. Por isso uso frequentemente os advérbios ou locuções principalmente, em linhas gerais, na quase
totalidade e outras condicionais. Peço aos leitores a condescendência de
uma atitude menos maniqueísta ou mecânica na leitura de afirmações desse tipo,
pois o espaço não permite uma análise mais aprofundada. Mas as reflexões aqui
desenvolvidas são, sim, fruto de um estudo mais profundo a que me dedico há
mais de 40 anos e, de forma acadêmica sistemática, há mais de 7 anos. De
qualquer forma acredito que, independentemente da concordância com as teses
aqui apresentadas, elas sempre podem constituir um estímulo e mesmo um roteiro
para o debate. Se considerarmos que falta mais de um mês para o evento, há
tempo de sobra para ler e para refletir sobre estas questões. E outras, que possam
decorrer ou mesmo se contrapor a elas.
O texto está dividido em quatro temas que penso
entrarem numa preparação sistemática para um debate como o que se delineia: 1) Público: conceito e história, que
procura resumir a história do público, da sua formação à constituição das
diferentes instituições que têm sua origem nele; 2) A situação atual: a hegemonia capitalista e o exílio do público,
que pretende mostrar a correlação de forças atual – na teoria, na política, no
cinema e nos movimentos sociais - entre o sistema político e econômico e o
público que, nele, ocupa uma posição subalterna e controlada; 3) Uma Jornada possível, que busca trazer a
análise para a situação atual do campo das iniciativas de exibição cultural, e
finalmente, 4) Propostas para a retomada
do cineclubismo em nível nacional e o avanço da exibição audiovisual cultural,
em que formulo algumas propostas, baseado nas reflexões anteriores, para exame
dos interessados, e não apenas no contexto desta Jornada.
Público: conceito e história
1. Introdução: a
importância da História
Conhecer a história
do cineclubismo, do público audiovisual e das práticas e instituições culturais
criadas por ele é muito importante. E de maneira muito concreta, para ajudar a compreender
e orientar nossas práticas hoje. As formas de trabalho e de organização atuais da
exibição cultural não surgem do nada nem são formulações abstratas criadas
apenas no plano das ideias pela geração atual, mas têm sempre origem num
processo histórico. É menos importante repetir o lugar-comum de que “devemos
conhecer a História para não repeti-la” do que compreender que estamos sempre
dentro dela, fazendo essa mesma História, e que nossas práticas são parte de
uma linha temporal em que ideias e ações são continuamente transformadas pela
vida em sociedade.
Assim, tentarei
fazer em seguida uma rápida historiografia das instituições que se refletem de
alguma maneira nas formas e propostas atuais de trabalho e organização no campo
de exibição cultural de caráter comunitário.
Num outro nível – e
outro lugar-comum – costuma-se dizer que os brasileiros somos muito ruins de
memória. E há bastante verdade nisso, especialmente em nosso meio, já que não
temos uma prática significativa de debate e quase nenhuma produção escrita. Nem
mesmo a transmissão oral é abundante, especialmente pela ausência de encontros
nacionais e na grande maioria das regiões do País. A isso ainda se soma a
vulnerabilidade endêmica de nossas atividades, com enorme rodízio de
participantes e quase sem formação de militantes ou dirigentes experientes. Por
isso também é importante lembrar alguns fatos mais recentes – que penso que muitos
não se lembram e outros desconhecem – e que também são determinantes da
conjuntura que envolve essa Jornada.
2. A formação do
público moderno e contemporâneo
Vou abordar este
tópico de forma muito rápida, necessariamente esquemática, mas sem perder o
rigor da exposição, espero.
O público, em sua
acepção moderna, é uma decorrência da forma de apropriação do cinema pela
sociedade no começo do século passado. Não apenas o público do cinema, e nem
mesmo o do audiovisual, mas a forma moderna de todo o público, de todos os
públicos. As características estabelecidas no conflito que deu forma ao público
cinematográfico constituem igualmente os traços gerais dos públicos das
indústrias culturais da nossa época: o rádio, a televisão, os espetáculos
esportivos, etc., até chegarmos ao mundo inteiramente mediatizado e
audiovisualizado de hoje.
Esse processo – cujo
início pode ser rastreado até muito antes – se dá fundamentalmente entre os
anos de 1905 e 1915, no que eu gosto de chamar, dramatizando um pouco, de A Batalha
do Nickelodeon[1].
Com o surgimento das salas fixas, o produto cinema encontrou finalmente sua
forma de consumo. E as massas populares encontraram o meio de usufruírem
entretenimento e arte numa escala inédita. Não apenas os homens pobres,
imigrantes, trabalhadores tinham agora esse acesso mas, pela primeira vez, as
mulheres saíam para ocupar o – novo - espaço público, e assim também as
crianças. Os anos que se seguiram foram de uma luta encarniçada pela hegemonia
sobre esse novo meio de expressão. Nesse período consolidaram-se todas as
características que seriam a partir daí hegemônicas: do cinema como produto,
como linguagem e como formato; definiram-se os limites e estilos de sua
expressão; moldou-se seu consumo e seu público. No fim da batalha, o cinema separou-se do público e o público, muito
ampliado, dividiu-se em espectadores isolados. Essas são as características que
constituiriam, de maneira geral, as outras mídias que se instalariam a seguir –
e contaminariam as que já existiam, isto é, o espetáculo em geral.
Cada vez mais, as
mídias foram aumentando sua cobertura em termos de população, de plateia e,
meio que proporcionalmente, isolando progressivamente o espectador/ouvinte. A
sala escura reunia centenas de pessoas, mas individuava sua fruição e
entendimento; o rádio e a televisão ampliaram essa massa para milhões,
retirando-as dos espaços públicos e prendendo-as em casa; e a internet alcança
bilhões que, com torcicolo, fecham-se em mundos virtuais, de fantasias e de
pulsões básicas. Cada um desses saltos de quantidade e qualidade, de conexão e de
alienação, incluíam a possibilidade, a potencialidade de uma evolução do
coletivo: da reunião e da expressão de números cada vez maiores de pessoas. A
luta pelo poder permanente nesse campo, porém, resultou até agora principalmente
na domesticação do público e na apropriação privada dos meios de
produção/distribuição da expressão audiovisual.
3. As instituições
do público
Até hoje geralmente
derrotado, o público nunca deixou de reagir, de lutar. E de criar formas de
organização, de resistência; instituições que preservam e/ou promovem sua
autonomia, sua possibilidade de expressão, sua capacidade de luta. Instituições
geradoras de valores diferentes daqueles da dominação e exploração, instituições
que podem preparar a hegemonia da sociedade radicalmente democrática do futuro.
Embriões da liberdade.
Foi também do cinema
que veio a forma mais paradigmática de instituição do público. Não se sentindo
representado no cinema que lhe era outorgado, o público criou seu antípoda[2]: o cineclube (cuja origem
mais profunda também vem de bem antes...). E dessa matriz cineclubista, do
cinema do público - na dialética do conflito permanente com o cinema comercial,
o cinema do capital -, surgiram inúmeras outras instituições: as filmotecas e
cinematecas; os cinemas de arte; as retrospectivas, mostras e festivais; as
revistas de crítica cinematográfica; os clubes de realizadores amadores de
cinema; as ligas de fotografia e cinema dos trabalhadores; os cineforuns
católicos, os clubes de fãs (com todo seu universo de publicações, convenções,
etc.); os radioamadores, as rádios e tevês comunitárias, entre outras.
Noutra direção, muitas
outras instituições também foram criadas pelo comércio cinematográfico (e
audiovisual, mais amplamente), quase todas para submeter, controlar ou orientar
o público: a primeira crítica, que avaliava a recepção dos filmes pelo público;
a censura política e de costumes; os corpos de controle nas salas (aqui
chamados de lanterninhas); a fixação
dos gêneros cinematográficos rentáveis; o star-system;
enfim, as formas de organização dos mercados e a mediação entre suportes e
linguagens, bem como as diversas formas que deram à propriedade privada das
obras...
4. As divisões do
público: enquadrados, rebeldes e tutelados
A instituição
cineclube - que é universal e se define também juridicamente de igual maneira no
plano internacional - surgiu do conflito do público com um cinema que
representava uma visão antagônica do mundo. Produzido por empresários que
enriqueciam com rapidez extraordinária face à multiplicação das salas, seu
público inicial era composto por trabalhadores e imigrantes, mulheres e
crianças das camadas mais populares. Mas os filmes em geral retratavam os
operários como bandidos, os imigrantes como patéticos, as mulheres como estúpidas
ou malévolas – e esse era justamente o primeiro público do cinema. O público
protestava nas sessões – de sorte que um pouco mais tarde se criou até uma
polícia interna das salas - e procurava alternativas, tentando realizar filmes
em suas associações, alugando salas para a projeção dos poucos filmes que
valorizava... A organização popular coletiva e formatos democráticos de gestão
já existiam desde o século anterior, e mesmo experiências com a projeção de
imagens já havia desde as lanternas mágicas. Mas é no começo do século, e
especialmente no período que focamos aqui, que surge o formato do cineclube:
organização aberta e democrática, sem fins lucrativos e com a finalidade precípua
de apropriar-se do novo meio de expressão como instrumento de emancipação. Seu
objetivo, criar um cinema do povo – como se chamava o famoso cineclube francês
– e sua prática podia ser bem resumida pelo lema do mesmo Cinéma du Peuple: “Divertir, instruir, emancipar”.
A Batalha do Nickelodeon se estende numa
série de afrontamentos em que o público serve como interlocutor-oponente para o
desenvolvimento da forma hegemônica, hollywoodiana,
do cinema, sua linguagem, estilos, temas. É também um período de repressão,
enquadramento e domesticação do público; da ampliação deste para outros
segmentos sociais, até conformar um público cosmopolita homogêneo, e uma postura espectadora, consumidora.
Mas, ao escolher o
termo batalha, estou implicando a
existência de uma guerra mais ampla, permanente: a disputa pela hegemonia no
plano do cinema e do audiovisual, que segue em práticas de resistência e na
criação de instituições como algumas das que citei mais acima. Essa guerra é
uma luta longa e difícil, travada a partir de uma posição de inferioridade (no
sentido da metáfora militar aqui empregada) do público, com avanços e recuos,
erros, acertos, contradições, falsas conquistas. As experiências, as formas de
organização e as instituições criadas pelo público (sem falar das que se
originam do capital), dessa forma, podem se transformar, assimilar total ou
parcialmente formas, costumes, práticas da ideologia que conforma o audiovisual
dominante. De fato, tudo no sistema
converge para isso.
Creio que essas
transformações podem ser classificadas resumidamente em práticas e instituições
enquadradas, tuteladas e rebeldes.
Mesmo assimiladas a estas características dominantes,
estas classificações são apenas indicativas, com uma linha dialética de
nuançamento que alonga bastante seu campo de diferenciação. E suas formas e
estruturas seguem inseridas no devir histórico e continuam passíveis de outras
transformações, inclusive de seu desaparecimento. Guardam uma relação próxima
com as categorias de Stuart Hall, que situou a recepção como dominante, negociada ou opositora[3].
Na
lista que citei mais acima, apenas no campo do cinema mesmo, e diretamente
ligadas aos cineclubes, estão várias instituições diferentes: filmotecas,
cinematecas, cinemas de arte; retrospectivas, mostras, festivais, revistas de
crítica cinematográfica, clubes de realizadores amadores de cinema, ligas de cinema
dos trabalhadores, cineforuns católicos, clubes de fãs. Vou exemplificar um
pouco - rápida e esquematicamente como cabe aqui - a evolução contraditória
dessas instituições e sua inserção na classificação proposta.
Apenas nos campo
estrito dos cineclubes já temos um processo de diferenciação histórico bem
definido. Os primeiros cineclubes eram organizações identificadas com as massas
proletárias, propondo a construção de um “cinema do povo”, em todos os níveis,
da produção à fruição. Mas, numa trajetória paralela e quase simultânea, as
igrejas cristãs – especialmente a católica – já desenvolviam um trabalho com
esse mesmo público, só que com ênfase na orientação, até hierarquizada, dos
participantes: formavam seu rebanho. Poderíamos chamar os primeiros de rebeldes e os outros de tutelados. A igreja católica, depois da
II Guerra Mundial, desenvolveria uma forma própria de cineclubismo, sempre
dependente do alinhamento com seus ensinamentos e ideologia: o cineforum. Hoje,
eles praticamente desapareceram. Já muitos cineclubes laicos, nos anos 20,
viveriam uma onda que os aproximaria de uma visão autoral e elitista, uma nova
gradação na tutela do público; nesse
mesmo ambiente (a intelectualidade parisiense e seus homólogos) surgiram as
revistas de crítica cinematográfica e as premières
e mostras de filmes, que podemos definir como tuteladas por interesses particulares. Essa cinefilia tutelada chegaria a extremos com os
clubes de fãs, praticamente completamente enquadrados
na dinâmica da indústria de cinema. Quase uma nuance em relação a essas mostras,
o primeiro festival é reconhecido como o de La Sarraz, um encontro rebelde de cineclubes e realizadores
revolucionários (hoje, mostra e festival são quase sinônimos, mas creio que
ainda achamos essas mesmas tendências). Naquele mesmo impulso – dos anos 20 - surgiram
os cinemas de arte, que já extrapolavam o formato cineclube, pois eram cinemas
comerciais – já claramente enquadrados
(atualmente, os puros cinemas de arte também estão em fase de extinção) no
comércio, em que atuam na exploração de nichos com escala menor de
rentabilidade. O que não lhes retira uma contribuição dada à inovação e
diversidade do modelo comercial. Os cineclubes rebeldes, por outro lado, seguiram sua trajetória: no final da
década de 20 e na seguinte, as ligas de cinema de trabalhadores espalharam-se
pelo mundo todo, até no Oriente e nos EUA, onde estão na origem do documentário
independente daquele país. Já os clubes de realizadores amadores vieram
atender, em grande medida, às iniciativas de criação de um mercado doméstico,
com a criação das pequenas bitolas, projetores e câmaras caseiras – que,
paradoxalmente, também permitiram a expansão do cineclubismo e de uma produção
familiar – hoje revalorizada – e até de vanguarda. As filmotecas e cinematecas,
surgiram da valorização do cinema como arte – e não apenas como produto
industrial – e do desejo de preservá-lo, no ambiente dos primeiros cineclubes.
Ao longo do século XX, porém, as cinematecas se dividiram entre arquivos de
cinema meio mortos, fechados aos não especialistas - de acordo com as
exigências da indústria – e arquivos comprometidos com a generalização do
conhecimento do cinema, nem tão rebeldes
assim, mas certamente não enquadradas
como as outras.
5. O outro lado:
brechas estruturais no sistema
Como já disse, essas
categorias são referenciais, inexatas em contextos em constante transformação.
A imensa maioria do público audiovisual – que é hoje a quase totalidade da
população do planeta – está na situação de enquadrada,
dominada, em última instância em decorrência da estrutura de convencimento, de
atração, e de repressão econômica e policial a qualquer forma de resistência.
Mesmo assim, esse grande público, aparentemente apático, reage de diferentes
formas à dominação: as mais evidentes atualmente são o download “ilegal” (isto é, a desobediência civil à apropriação
corporativa do direito de propriedade da arte e do entretenimento) e, em menor
escala, os programas abertos de compartilhamento - territórios livres e comuns
de uma vanguarda não espectadora, mas participante: os hackers (em oposição aos crackers,
piratas). Infelizmente, na escala planetária de um público de bilhões de
pessoas, essas iniciativas são ainda bastante marginais ou pouco organizadas.
De fato, a dialética
da dominação e resistência é parte de todo discurso comunicacional e está
presente em todo o processo de recepção, sempre cambiante. E alimentando, por
sua vez, a criação. Ao tentar vender mais, “agradar” ao público e precaver-se
contra suas reações antagônicas, o enunciado de dominação abre – de fato, é
constituído dessa maneira – espaços para o avanço da consciência e do discurso
anti-hegemônicos. Ao vender a ideia da mobilidade social, por exemplo no amor
entre pobres e ricos, tão comum nas novelas de tevê, a narrativa expõe
necessariamente as contradições sociais entre eles, seus meios, suas classes
sociais. A própria ausência de negros e mestiços no universo ficcional
televisivo é afirmação contundente da enorme segregação existente no modelo
social brasileiro. O homossexual ainda é principalmente um recurso narrativo
humorístico, pouco diferente do tratamento recebido há 100 anos. Toda narrativa
pode ser tomada como exemplo: o texto, o discurso, é um campo de batalha; ao
público a responsabilidade de conferir sentidos a essas histórias...
6. O público é o
autor
É indiscutível que
toda criação envolve diferentes níveis de autoralidade.
Uma casa é obra do arquiteto que a desenha, do engenheiro que a estrutura, dos
trabalhadores que contribuem com a edificação, canalização, eletricidade,
pintura, ajardinamento... Mas, voltando ao lugar-comum: a casa só vira um lar
quando é habitada. Numa obra de arte coletiva entram as ideias iniciais,
frequentemente alguma forma literária, a cenografia, direção, música, som,
iluminação, interpretação... Mas seu sentido só se afirma na recepção pelo público.
Mesmo em obras aparentemente mais individuais, como a literatura, a pintura, a
escultura, a criação é resultado de uma experiência social e histórica, de um diálogo permanente em que criação e
recepção só se separam no plano abstrato: qualquer obra só existe quando
consumida, fruída. E todo consumo é produtivo: todo consumo cultural é
criativo.
A “criação” -
metáfora deísta - ou autoria, personalizada no discurso e reificada no mercado
capitalista, é um momento abstrato numa espiral histórica de comunicação que se
desenvolve em torno do público. O público, em última instância, é o autor. É
quem confere sentido à obra, ao texto, criado mais ou menos coletivamente sobre
um cadinho histórico de cultura que é o próprio público em seu sentido mais
amplo. O conceito de autoria em voga é a expressão de uma forma de propriedade
da produção, ou criação social, dessa maneira apropriada reificadamente pelo autor e concretamente, como mercadoria,
pelo capital.
Ironicamente, no
campo do cinema, foram os cineclubes elitistas e tutelados dos anos 20 do
século passado que deram tintas honoráveis ao autor, de quem não se cogitava no começo do cinema e surgiu para valorizar
e distinguir certo tipo de produção de uma indústria que tratava o cinema como
um produto comercial qualquer. Dessa forma apenas criaram um novo
conceito de produto para a mídia, tal como mais tarde fariam outra vez os cineclubistas-autores da Nouvelle Vague francesa ou, em boa
medida, do Cinema Novo brasileiro. De certa forma, reintroduziam o culto, a aura, cujo fim Walter Benjamin
identificava com o advento da reprodutibilidade técnica da arte.
Embora todos os seus
criadores tenham revisto e renegado o conceito, ele penetrou profundamente no
senso comum e até hoje contamina a compreensão do processo criativo. E,
infelizmente, particularmente entre os cineclubes e ambientes afins (a crítica
da imprensa, por exemplo). E, no mercado, claro, onde atualmente é usado para
falsificar e justificar a propriedade de fato das grandes corporações de
comunicação sobre todo tipo de bem cultural.
A situação atual: a hegemonia capitalista e o exílio
do público
1. Na teoria, na
história, na política, na estética: ausência do público
Evidentemente, uma
teoria da criação como produção do público vulnera e até impede a reprodução da
apropriação dessa criação por um segmento da sociedade. Inicialmente, o discurso
sobre o cinema era o das companhias produtoras, diretamente interessadas no
sucesso de seus produtos junto ao público. “O público tem sempre razão” era o
mote de Cecil B. De Mille - incorporado por Hollywood - para produzir um cinema
que gerasse boas bilheterias. Empiricamente, tratavam de repetir os filmes e
sistematizar os gêneros de sucesso, criando outras formas de atração e
fidelização (efeitos especiais, grandes produções, o culto aos astros e
estrelas) desse público. Mas, claro, havia outras contradições em relação ao
público; essas foram resolvidas com a repressão, a censura e com a mistura do
público mais popular com segmentos menos reivindicativos, como as classes
médias. Construído esse público cosmopolita – a que me referi
mais acima – este passou a ser o referencial e o álibi para uma nova compreensão
ou versão da frase de De Mille, que passou a ser usada como: “Nós damos o que
eles querem”.
Mas, fora essa esperta
concepção utilitária do consumidor, o público foi alijado da reflexão institucional
sobre o cinema, seja na teoria, na história ou na estética. As diversas teorias
de cinema dedicaram-se a estudar o discurso cinematográfico, isto é, as
relações internas desse discurso nos filmes; a própria enunciação do discurso;
a recepção fisiológica (cognitivismo) ou psicológica (psicanálise) do cinema; a
organicidade da obra pessoal dos cineastas. Na teoria existe o espectador -
essa abstração com que todos devemos nos identificar e que, ao mesmo tempo, não
identifica ninguém (embora resvale, no mais das vezes, para um espectador
masculino, branco, ocidental, cristão...) – mas dificilmente os públicos
concretos, formados por uma convergência de cultura, classe, gênero, cor, etc.,
num contexto histórico definido.
Da mesma forma, na
historiografia do cinema evoluem linguagem, tecnologia, estilos, nacionalidades,
contextos políticos institucionais, autores, mas não a interação e as reações
dos diferentes públicos. Apenas com os Estudos
Culturais e, logo, a chamada teoria
feminista – como não podia deixar de
ser – veio a consciência de que o público é tratado como objeto, e não sujeito
do cinema. No primeiro caso, desdobramento do conceito gramsciano de hegemonia; no segundo, pela constatação de que a
estética dominante no cinema é um repetido enredo masculino voltado para um público
idem. A própria linguagem básica e tradicional do cinema clássico ou hollywoodiano dominante consiste na eliminação de
qualquer vestígio do público – e do espectador – pela transparência da narração.
2. A hegemonia
capitalista no contexto do cinema comercial:
A rigor, esse modelo
do cinema - do termo polissêmico que descreve a sala, o conjunto das obras, a
mídia e a indústria em sua totalidade - só se aplicou plenamente durante seu
primeiro século. O cinema é essencialmente uma arte e indústria do século XX. Atualmente,
mantendo como fundamento seu conteúdo e linguagem originais, essa mídia meio
que se dissolveu num campo mais amplo, o do audiovisual, em que ela é apenas um
estágio do processo. O filme lança um conteúdo numa trajetória de distribuição
e consumo que envolve vários meios e modelos de comercialização e consumo. O
produto básico é lançado num circuito de salas que, além da renda produzida,
serve como exposição e publicidade para o consumo em tevê de locação, por
assinatura, aberta, além da comercialização da marca, personagens, gadgets e uma infinidade de subprodutos.
Finalmente - em termos comerciais, pois há fugas no sistema – ele será comercializado
na Internet. Mas este é um campo de batalha em que o audiovisual privado ainda não
se impôs totalmente. Mas vai.
O cinema comercial,
no mundo, segue ou se adéqua ao modelo da dominação estabelecido pela indústria
hollywoodiana. Mas mesmo essa origem hoje é menos precisa, sendo hoje
entremeada de mecanismos de controle que rodam o mundo sob a dominância do
sistema financeiro internacional. Suas principais estruturas de produção,
contudo, ainda se localizam naquele bairro de Los Angeles.
Nesta fase, os grandes
estúdios de Hollywood controlam cerca de 85% das salas de todo o mundo. É
preciso considerar que esse estágio já não é o principal; assim, fora da
América do Norte e da Europa o número de salas é consideravelmente menor que
nos anos 70. O modelo estético mudou muito: filmes de orçamentos
estratosféricos (que só podem se pagar no circuito mundial controlado por essas
corporações) passaram a valorizar como nunca os grandes efeitos, em detrimento
da narrativa, atraindo o público de forma algo semelhante à da cinematografia de atrações do primeiro
cinema. Nos países menos desenvolvidos, onde o ingresso não está ao alcance da
maioria da população, poucas salas se concentram em “ilhas de prosperidade”,
como os multiplexes e salas de centros comerciais. O resto do público, de forma
seletiva e descendente, do ponto de vista do poder aquisitivo, deve ficar com
as outras “janelas”: locação, cabo, tevê aberta. Em alguns países, as salas de
cinema, inclusive, praticamente desapareceram. O modelo baseado na grande massa
popular de consumo segmentou-se e já não se dá apenas ou principalmente nas
salas de cinema.
Saindo desse modelo
e do monopólio, o cinema stritu sensu
praticamente não existe em bases comerciais: tornou-se um campo protegido e
financiado pelo Estado, em diferentes níveis conforme o país.
3. A hegemonia
capitalista na cultura do Brasil
Sem uma sociedade
civil muito organizada e influente, a tradição na orientação da cultura, em
nosso País, sempre se dividiu sobretudo entre perspectivas autoritárias ou
populistas enraizadas numa herança estrutural patrimonialista e dependente. Como
bem demonstrou Sérgio Buarque de Holanda, nossa formação histórica, nosso éthos sempre privilegiou a
familiaridade, a informalidade e o privilégio em lugar da construção - e
respeito - de instituições impessoais válidas para o conjunto da sociedade. O
povo, o público, não tem, a não ser em aparência (ou por apadrinhamento), vez
ou voz nesse processo.
Especialmente no terreno
da cultura, o fim da ditadura militar não implicou em um efetivo deslocamento
democrático do poder. A chamada indústria cultural (telecomunicações, rádio, televisão
e o segmento do cinema integrado nesse sistema) passou por um processo de
desregulação e privatização e hoje o Estado praticamente não participa, ou
melhor, não interfere na sua organização. E é esse o principal conteúdo
cultural consumido pela população.
As manifestações da
cultura erudita ou de vanguarda (aqui, num sentido mais estético), como as de fatura
mais popular, sem meios de sobreviver ou germinar socialmente no contexto
competitivo, recebem apoios diferenciados do aparelho administrativo
governamental. Mas, mesmo nesses segmentos, a parte principal dos recursos
públicos foi canalizada para o patronato. O chamado Sistema S (SESC, SENAC,
SESI, SENAI, SEBRAE, SEST, SENAT, SENAR e SESCOOP), criado para estimular a
cultura e o aprendizado profissional, é gerido pelas confederações de
sindicatos patronais dos setores da indústria, comércio, transporte, produção
rural, pequena e média empresa, e cooperativas. Seu financiamento, com tributos
eufemisticamente chamados de parafiscais,
é da ordem de dezenas de bilhões de reais, e ultrapassa a soma dos recursos de
todas as secretarias de cultura municipais, estaduais e do ministério da
cultura. Esse sistema, que cobra por
todas as suas atividades, acumula, portanto, um capital incomensurável,
representado, por exemplo, num imenso capital fixo de suntuosas unidades.
Bastante apreciado pelos consumidores de suas inciativas culturais (o sistema constitui uma espécie de
monopólio em vários segmentos de espetáculos, e também “dá o que o público
quer”), é notória – e paradoxal, pois beneficiaria diretamente esses patrões –
a sua incapacidade de minorar um dos mais graves problemas da economia
brasileira, a falta de capacitação da mão de obra.
A política de
estímulos financeiros à criação e produção cultural também teve a maior parte
dos seus recursos entregue diretamente às grandes empresas, privadas e públicas
(ou semipúblicas), como ferramenta de marketing, através da renúncia fiscal: especialmente
a lei Rouanet (IR), federal, e algumas outras, estaduais (ICMS) e municipais
(ISS, IPTU).
Do amplo leque
partidário, capitaneado pelo PT, que conduz o governo federal desde 2002, um
segmento de corte mais progressista (PV, PCdoB e o próprio PT) assumiu a pasta
da cultura e elaborou um novo projeto de organização desta no aparelho do
Estado – e nas suas relações com a sociedade civil. Esse projeto consistia numa
ampla reforma nas atribuições das principais agências ligadas ao setor – ANATEL
e ANCINAV - criadas no governo anterior. Além disso, previa a criação de um
Sistema Nacional de Cultura, baseado na adesão voluntária dos estados e
municípios e na participação da população através de assembleias municipais,
estaduais e nacional. A principal ação desse projeto é o programa Cultura Viva,
estruturado sobre uma rede de entidades e iniciativas adaptadas ao dito
programa sob a denominação de Pontos de Cultura.
A reestruturação das
agências estatais foi barrada no Congresso, já a grande maioria dos estados
brasileiros e mais de 20% dos municípios já aderiram ao SNC, tendo sido
realizadas já duas Conferências Nacionais de Cultura. A aplicação do programa
de pontos de cultura foi bastante desigual durante as diferentes gestões do
ministério, especialmente no governo Dilma Roussef. O programa também teve
muitos problemas de ordem jurídico-administrativa. Aprovado como lei em 2014,
foi finalmente regulamentado em março deste ano e deve ter algum impulso com o
retorno ao cargo do ministro Juca Ferreira, um de seus maiores entusiastas.
Com muitos
resultados positivos, o Sistema é, no entanto, baseado fundamentalmente na
integração das iniciativas da sociedade no aparelho estatal, dentro de uma
tradição populista que já deu origem, por exemplo, à legislação trabalhista do
Estado Novo. Isso também criou grandes problemas. Mais adiante vou comentar
vários efeitos dessa política sobre as organizações culturais da sociedade
civil brasileira.
4. No cinema
brasileiro
A produção
brasileira de cinema de longa-metragem dividiu-se: um segmento dócil e associado
aos formatos impostos pela indústria estadunidense, com o beneplácito do
Estado, funciona em bases mais comerciais (mas sempre contando com mecanismos
de fomento oficial) numa faixa que oscila em torno dos 10% do mercado; todo o
restante da produção apenas sobrevive, artificialmente, com recursos públicos
(lei Rouanet e do Audiovisual). Dois ou três títulos de longa metragem por ano
ocupam a quase totalidade desses 10% a que me referi; são geralmente resultado
da associação de algumas produtoras com uma ou mais distribuidoras
estadunidenses (que controlam indiretamente o mercado de exibição) e com a TV
Globo, que tem a maior parte da audiência do País. Com a nova legislação para o
mercado de televisão por assinatura (que criou um novo mercado), tornou-se
obrigatória a exibição de 3,5 horas por semana no horário nobre (das 11h às 14h
e das 17h às 21h nos canais para crianças e adolescentes, e das 18h à
meia-noite nos demais). É uma reserva de mercado de menos de 1%. Considerando o
volume da produção a que tal medida deu origem, dá para imaginar o tamanho do
mercado... a que o audiovisual brasileiro não tem acesso. Mas, mesmo essa magra
fatia foi monopolizada por cerca de 10 grandes produtoras, conforme noticiado
recentemente num grande jornal nacional.
No plano estético,
nesses dois mercados, do xópim e da tevê a cabo, a produção nacional sofreu uma
forte influência de um modelo televisivo – uma estética global ou de xópin – que
empobrece e padroniza a expressão artística. Seguindo minha convicção, é mais
uma vez o público o interlocutor principal desse processo. Ou melhor, a
ausência do público é que empobrece esse processo: apenas perto de 1% da
população busca filmes brasileiros num mercado de salas já por si extremamente
pequeno e caro, acessível a cerca de 10% da população e presente também em
apenas uns 10% dos municípios brasileiros. O público do cinema brasileiro
consiste, então, de uma ínfima minoria privilegiada e perfeitamente enquadrada
nos valores promovidos pela indústria cultural.
O restante, isto é,
mais de uma centena de longas e as várias centenas de curtas-metragens, produzidos
com dinheiro público fruto de diversas políticas de fomento, só têm como
alternativa os festivais, os espaços informais de exibição e a internet. Esta
última ainda é muito incipiente se a pensarmos como canal de acesso ao conjunto
da população. Ainda que com potencialidades enormes nesse sentido, seu formato
principal – na maioria da população que já tem acesso - é móvel, circunscrito
às limitações de espaço, tempo e ambiente estabelecidos pelos aparelhos
celulares. Até pelo seu desenvolvimento recente e incompleto, e por sua forma
ainda indefinida de apropriação social, seu poder de expressão, comunicação e formação
ainda é muito pequeno – e seu espaço principalmente ocupado por trivialidades
alienantes ou modelos dominantes: um gatinho rolando pela escada é
incomensuravelmente mais visto que qualquer enunciado narrativo; a eliminação
do último participante do programa Big
Brother recebeu mais de 90 milhões de votos (e formou sub-redes em tempo
real para organizar a participação) – cifra incomparável, ainda, com qualquer
outro exemplo de mobilização social através desses novos meios.
Os festivais - lembrando
a situação particular dos maiores, mais ligados à produção internacional – têm
bastante sucesso como eventos pontuais, e sua importância é mais a de sua
ressonância qualitativa, junto a públicos mais interessados; mas
estatisticamente estão um pouco distantes de uma influência social mais
significativa. Em condições ainda mais precárias – sem contar notáveis, mas
poucas e usualmente temporárias exceções – espaços alternativos de exibição,
incluindo cineclubes, têm ainda menos expressão no todo social.
Assim, o que se
chama às vezes de “cinema cultural” - os longas-metragens que não são exibidos
no mercado tradicional ou nele têm um desempenho medíocre (por falta de datas,
etc.) e as centenas de curtas resultantes de uma infinidade de programas
públicos de apoio – tem escassa ou nenhuma visibilidade e impacto na vida
cultural do País. De fato, isso não destoa da condição histórica do nosso
cinema, eterno exilado de seu próprio mercado e de seu público. Mas é forçoso
reconhecer que, diferentemente do que já ocorreu vez ou outra no cinema
brasileiro, essas cinematografias não têm produzido muitas obras de extraordinário
valor (Cinema Novo), de renovação significativa de proposta estética (Udigrudi)
ou de poder de comunicação (Chanchada) capazes de superar, mesmo que
pontualmente, a condição de marginalidade em que se encontram.
5. Nos movimentos
sociais audiovisuais
5.1. O cinema amador
na era digital
É complicado isolar
a produção amadora no contexto do cinema brasileiro. Se empregarmos o termo no
sentido de um modelo (profissional) de estética, acabamento, produção, a maior
parte da história e a maioria dos filmes produzidos aqui (todos incluídos) não
alcançavam nem atingem hoje esse paradigma: o do cinema hollywoodiano e
similares. Se pensamos em amador como não comercial, motivado e dirigido a
outros fins, caímos numa minoria histórica relativa no campo do longa-metragem
e, ao contrário, na quase totalidade dos outros formatos (curtas, médias)[4]. A maioria dos longas,
mesmo expressando valores inconformistas – o Cinema Novo, por exemplo - sempre
visou (também) o mercado. Se, antes do mercado atual da tevê, os curtas (desde
a fundação da ABD, em 1973) lutaram por espaço no mercado de exibição de cinema
(e conquistaram a Lei do Curta, logo
tornada letra morta), desde o surgimento de novas tecnologias e suportes
(magnéticos, digitais) esta luta se enfraqueceu, até pela relativa indefinição
inicial de quais produtos e técnicas seriam dominantes, mas principalmente pela
irredutível resistência dos exibidores e distribuidores comerciais. O mercado
de tevê, hoje, não segue essas definições: fora os longas, os filmes não são
exatamente curtas, mas episódios, documentários, que cumprem aquela reserva de
mercado de 1% citada acima.
Com a consolidação
do digital, produzir audiovisuais tornou-se acessível a quase todo mundo e
logo, com o impulso dos governos deste século, novas políticas (primeiro no
governo federal, desde 2002, depois adotadas por muitos estados) de
descentralização e democratização da produção ampliaram exponencialmente o
número de produtores e/ou realizadores e sua distribuição pelo território
brasileiro. A ABD, que no tempo da película (com processos mais caros e
complexos de produção) tinha seções em poucos estados, logo se implantou em
todas as unidades da Federação. Esse crescimento implicou no reposicionamento
da velha questão: onde exibir essa produção? Como disse mais acima, o mercado
cinematográfico recusa o curta- metragem; também mostrei que o promissor
mercado da televisão tampouco se abriu para o conjunto dessa produção. De certa
forma, podemos considerar, adotando uma terminologia comercial, que somente uma
produção profissional de curtas conseguiu entrar nesse novo mercado – a
produção amadora ficou de fora.
Há que considerar
que a ampliação da produção e a extensão das entidades de realizadores de
curtas por todo o País também implicou numa certa generalização de modelos mais
precários de produção, ao mesmo tempo em que permitia o surgimento de
realizadores em novas faixas etárias e de renda, marcando um pouco o perfil das
associações estaduais e o ritmo e equilíbrio entre elas num novo modelo de
entidade nacional. De uma entidade de poucos profissionais de alguns estados
fortemente ligados ao cinema, a ABD passou a ser um colegiado de
representatividade mais ou menos proporcional entre 27 seções, cada uma delas
reunindo dezenas, talvez mais, de audiovisualistas
– como alguns gostam de dizer – em geral com pouca formação e experiência.
Esta constatação não
é uma interpretação negativa, pelo contrário. Essa situação expressa uma inédita
democratização dos meios de produção audiovisual. Não devemos, contudo, no
outro extremo simplista, confundir esse processo de democratização com uma
situação de pleno acesso do público aos meios de expressão audiovisual. De uma
maneira geral, esses novos realizadores são jovens dos setores médios da
sociedade e, quando se posicionam atrás de uma câmera, a maioria o faz como
autores, e geralmente o público ainda fica do outro lado, como objeto, como
plateia. E a tradicional concentração do mercado mesmo (no Sudeste), quase não
se alterou.
Outro efeito da
constituição desse novo contingente de realizadores, que numericamente é o
maior setor do cinema, é sua participação no governo, isto é, também vieram a
representar, senão a maioria, grande parte dos quadros administrativos do
audiovisual no governo federal, particularmente no MINC e no que se chama de
“setor cultural” do audiovisual: essa esma produção amadora, os cineclubes e
similares, os segmentos de pesquisa, preservação e outros - excetuadas as áreas
que, como já disse, são praticamente independentes do controle governamental e
se situam no âmbito regulamentar da Ancine. Dessa forma, especialmente no que
concerne ao ciclo de produção e circulação do curta-metragem não comercial, os
interesses do segmento são preservados e acabam mesmo por orientar as
respectivas políticas governamentais.
5.2. Cineclubes: o patrimonialismo
moderno e o paradoxo da onguização
Uma grande
convergência de fatores contribuiu para definir a atual conjuntura do ambiente
social e cultural que chamamos de movimento cineclubista neste estágio inicial
do século 21.
Há pouco mais de 10
anos, justamente esse segmento dos realizadores não comerciais e seus quadros
no governo começaram a estimular uma reorganização do movimento dos cineclubes,
desestruturado como organização política de expressão nacional desde a última
década do século anterior. Muito grosso modo, duas tendências mais duradouras
estavam presentes naquele momento: a herança do cineclubismo dos anos 70 (com
suas muitas diferenças internas), e outra proposta, então em formação, derivada
de novas práticas de exibição criadas pelos realizadores amadores, também sem
uma uniformidade absoluta. A ideia do cineclube
como organização do público é o legado do cineclubismo das origens
centenárias acrescido das lutas e experiências do período militar e pouco
depois; o cineclube como espaço de
exibição, mercado alternativo para assegurar o acesso à produção amadora é
a concepção de grande parte dessa nova geração de realizadores-exibidores e
outras iniciativas que seguem esse projeto. São representações ideológicas de
diferentes interesses, descritas num quadro rápido e esquemático, mas que
acredito capturar o essencial do processo, hoje mais visível, com esses traços
mais consolidados.
As diferenças
profundas entre as duas concepções nunca se enunciaram ou enfrentaram
claramente, salvo uma ou outra pequena crise, geralmente abafada. Creio que
isso se explica – além do atavismo brasileiro da composição e dos acordos cordiais
– pela necessidade fortemente sentida por todos de apoio do Estado. De fato, o
Conselho Nacional de Cineclubes, restabelecido em 2004, ficou principalmente sob
a direção dos velhos cineclubistas. Isso coincidiu (coincidência não é o termo
mais adequado) com um rompimento da parte do governo, que suspendeu até o final
de 2008 qualquer apoio ao movimento. Nesse ano foram, então, criados a
Programadora Brasil e o programa de kits de projeção do Cine+Cultura (este
último ainda com outra denominação). A direção desses dois projetos foi
entregue aos maiores representantes dos exibidores-realizadores – e coincidiu até
com a suspensão do uso do termo cineclube por um tempo. Nos cerca de dois anos
seguintes, o governo terceirizou algumas funções do Cine+Cultura, contratando,
por certos períodos, as principais lideranças cineclubistas de todo o País.
Criou-se um vínculo de dependência política e mesmo pessoal (financeira). Os
que se opunham de alguma forma foram afastados, antes ou ao longo do programa.
Dessa forma, o Estado
patrimonial não estimulou a iniciativa comunitária, antes cooptou e dirigiu
suas lideranças. O movimento cineclubista deixou de reivindicar, criar
demandas, e passou a integrar-se perfeitamente à política proposta, através de
uma camada de representantes que tem muito em comum com o antigo peleguismo – que marcou um movimento
sindical também apadrinhado pelo Estado. Essa política, por sua vez, era a
expressão do interesse dos realizadores de usarem os espaços comunitários para
exibir seus filmes – que não tinham força para explorar alternativas mais
comerciais – e assim justificar a política de subvenção à produção amadora: o
investimento nessa produção é bastante elevado e, sem aqueles espaços, ela
nunca ou muito pouco seria exibida. Além disso, a política de kits de projeção
é muito barata, não disputa verbas com a produção. Mas é barata porque
precária, sem considerar a sustentabilidade das ações por ela “beneficiadas”.
Tanto isso é verdade que, dos proclamados mais de mil kits entregues, quase
nenhum cine+ (exceto alguns casos em
que o kit foi para entidades já consolidadas ou beneficiadas por outras verbas)
está em atividade atualmente, dois ou três anos depois.
Outro correlato da
política de cooptação é o que os estudiosos estão chamando de onguização da sociedade civil. É um
processo bem mais generalizado, mas o cineclubismo o demonstra de forma
exemplar. O termo designa o processo de sujeição da sociedade civil à
dependência do Estado, que não mais atende reivindicações, mas compra,
terceiriza serviços sociais. A comunidade deixa de lutar pelas suas
necessidades (que, inclusive, são diversificadas, localizadas e evoluem) e
passa a ser cliente das ofertas padronizadas de editais, prêmios, etc. O
sistema burocrático gera uma necessária especialização e as comunidades acabam
sendo substituídas por “especialistas”, empreendedores, gestores e outros
“representantes” autoproclamados.
É o paradoxo do
cineclubismo brasileiro: centenas de projetores foram distribuídos e,
contraditoriamente, os cineclubes desaparecem, trocados por iniciativas
pessoais ou de pequenos grupos (tal como os realizadores e suas empresas de
produção). O associativismo comunitário democrático e aberto é substituído pelo
empreendedorismo individual ou quase. Os critérios e métodos democráticos são
“superados” pela informalidade em que indivíduos se responsabilizam pela
condução dos interesses de muitos sem antes consultá-los.
Evelina Dagnino[5], examinando esse processo
de onguização, fala de uma convergência
perversa, fenômeno em que a cooptação pelo Estado – e pelo capitalismo –
subverte a significação de conceitos construídos no seio das lutas da sociedade
civil: sociedade civil passa a ser
entendida como qualquer empreendimento com competência técnica na área social; a
representatividade seria dada
exatamente por essa competência ou especialização; participação aponta para a contribuição individual dos
especialistas, ao invés da comunidade; cidadania
vira acesso e pertencimento a um sistema político já dado, e não a possibilidade
de transformá-lo.
No cineclubismo isso
foi devastador nos últimos anos: a própria palavara cineclube ficou indefinida,
servindo para identificar qualquer tipo de projeção; o associativismo deu lugar
ao empreendedorismo (base da empresa
capitalista), entendido como espírito de iniciativa; a autonomia e a inserção
nas comunidades foram substituídas pela dependência da ajuda do Estado que,
ironicamente, é ocasional, incerta e insuficiente. A militância tornou-se
insustentável, superada pela expectativa da verba pública; o engajamento
visceral com uma causa política, com uma comunidade, virou a oportunidade
eventual de uma verbinha, passou a depender da possibilidade de uma
remuneração; cineclubista é, muita vez, produtor cultural... Produtor de quê? De
eventos, rajadas pontuais de um proselitismo raso ou comércio disfarçado que
substituem cada vez mais a autoformação
sistemática do público, a criação da instituição audiovisual permanente da comunidade. Esse vãocabulário inclui até a noção de cinema brasileiro que, depois de
uma luta árdua pelo reconhecimento da importância da expressão audiovisual popular
no plano nacional, virou uma mera justificativa para a defesa (às vezes
beirando a xenofobia) de uma produção sem outros adjetivos – e que assim se
iguala a qualquer outro conteúdo audiovisual produzido dentro das nossas
fronteiras.
Uma jornada possível
1. Introdução: o
quadro organizativo e institucional atual
Mais acima falei
sobre os traços gerais das transformações estruturais que têm ocorrido na
exibição cultural sem fins lucrativos. Mas, no plano da conjuntura atual, muita
gente desconhece até mesmo a história mais recente do movimento cineclubista no
Brasil e, portanto, não entende ou não sabe exatamente qual é a situação
institucional, política e legal nesse ambiente às vésperas de um importante
encontro nacional.
A última Jornada
Nacional[6] regular aconteceu em
dezembro de 2010 em Moreno, PE. Nela foi eleita a diretoria da entidade para o
biênio 2010-2012. Em junho de 2012 foi realizada, já com grande atraso, a
Pré-Jornada, reunião (estatutária) da diretoria do CNC com representantes de
todas as regiões do País, realizada entre jornadas, com a finalidade de definir
temário, preparação e organização da Jornada seguinte. Findo o mandato daquela
direção (em dezembro de 2012), porém, não se conseguiu organizar nova Jornada,
conforme a norma estatutária. Institucional e legalmente o CNC deixava de
existir.
Em meados de 2013
uma nova “Jornada” eleitoral foi improvisada em Vitória, ES. Foi totalmente
irregular, pois os estatutos (Art.19) exigem a presença de, no mínimo, 25% dos
membros para a assembleia se instalar e deliberar. Naquela altura, o CNC
afirmava ter mais de 400 filiados, e apenas cerca de 30 se reuniram em Vitória.
Apesar de haver uma proposta para que essa reunião se considerasse
informal e constituísse uma Comissão com o mandato exclusivo de preparar uma
Jornada efetivamente representativa, os presentes resolveram se autoeleger (a
diretoria tem 28 cargos, entre diretores executivos, regionais e suplentes –
portanto poucos presentes saíram sem cargo; se uma região tinha apenas uma ou
duas pessoas presentes, estas já eram, no mínimo, diretores regionais) com
plenos poderes, e terão assumido seus postos (em agosto de 2015, quando está
prevista esta Jornada) por um período mais uma vez superior ao mandato regular.
É esta direção, com alguns agregados - já sem nenhum tipo de voto -, que decide
e coordena esta próxima Jornada.
Quem quer que siga
com algum interesse as referências ao cineclubismo como movimento nacional, ou
que seja assinante da lista cncdialogo, sabe que, nos últimos dois ou
três anos, não houve nenhuma iniciativa ou comunicação dessa “diretoria”, ao
menos de conhecimento público. A única exceção foram alguns confusos chamados
para supostas Jornadas, duas ou três vezes, com grandes intervalos nestes
últimos dois anos. Essas convocatórias não se concretizaram, mas não houve
cancelamento, não tiveram nenhuma explicação. Até mesmo quando a lista foi
tomada por vírus, em mais de uma ocasião, não havia um administrador para
resolver ou sequer responder aos assinantes bastante perturbados. Foi uma
eleição e gestão inéditas, que nem interessa criticar mais longamente neste
momento.
É importante que os
participantes da Jornada estejam conscientes de que a “entidade” que
supostamente a convoca não tem registro legal, não tem CNPJ nem conta bancária
(os recursos para esta Jornada são geridos pela prefeitura de Itaparica[7]). Mas afirma ter centenas
de filiados – sem apresentar qualquer atividade em três anos –, e que esses
filiados, que esse CNC reconhece (mais uma vez contrariando os estatutos), são
os únicos que têm direito a participar da Jornada. De fato, a “regularização” do
associado se improvisa no ato de inscrição, sem qualquer verificação (se o
cineclube realmente existe, por exemplo) e completamente à revelia dos
estatutos. Ou seja, sua participação supostamente implica em referendar esse
quadro. É a “liberdade” total – para os
que se outorgaram esses poderes.
Outro aspecto
importante dessa conjuntura é saber que, incrivelmente, o governo federal
reconhece essa entidade (como várias outras) sem qualquer base legal, ou
política, e que os cineclubes têm sido representados, nas poucas ocasiões em
que o governo federal os chamou (no Conselho Consultivo da SAv, em reuniões com
autoridades do MINC), por “representantes” que nunca foram eleitos para tanto.
É mais um sintoma de uma relação “informal”, “familiar” que o Estado mantém com
grupos que ele escolhe, nomeia ou acolhe sem amparo legal, institucional. A
“cordialidade brasileira” corre solta dos dois lados...
Como disse no início
deste texto, a realização de um encontro nacional é positiva (no quadro de
abulia generalizada), mas precisamos ter claros os limites políticos dessa
iniciativa: a convocação é irregular, não é aberta nem democrática, mas
orientada no sentido de legitimar o próprio evento, seus promotores e
determinados projetos. Do ponto de vista político, legal e institucional este
Encontro é uma reunião informal. No
entendimento dessa condição é que ela pode ser muito positiva se, nos limites
de sua informalidade, sem nos arrogarmos representantes legítimos de todo o
universo da exibição cultural sem fins lucrativos, a aproveitarmos para
preparar uma pauta de reorganização e redemocratização ampla, transparente e
democrática.
2. A proposta
implícita: a destruição do cineclubismo
Dois exemplos
gritantes mostram como isso se articula: primeiro, o temário da Jornada
discutido por representantes do País todo na última Pré-Jornada foi ignorado e
substituído por outro, alvitrado agora. O principal objetivo dessa mudança foi
introduzir o projeto de alteração dos estatutos – o que não estava previsto. A
intenção é acabar com a estrutura organizativa do CNC, substituindo o peso e
representatividade da diretoria, da assembleia nacional e de um programa
deliberado pelo conjunto do movimento, por representações mais ou menos
informais, de uma representatividade “horizontal” sem organização e controle - e
em que sempre se sobressaem os mais mobilizados (e aí cabem vários interesses),
os de maior disponibilidade ou de mais recursos. E seriam representações por
estados (como acontece na ABD), consagrando o abandono de uma discussão
programática em favor de uma composição de interesses.
Criado o temário, imediatamente
foram constituídos Grupos de Trabalho (diferentes dos decididos na Pré-Jornada)
e sua gestão foi apropriada privadamente por uma pessoa que nem é membro dessa
diretoria. É a maior informalidade, baseada na boa vontade tão generosa quanto
desinformada de todos que, num grande entusiasmo cineclubista subscrevem acriticamente
o que parece normal.
O plano implícito é
a Jornada reconhecer os cineclubes e federações já inscritos, que adotarão o
temário outorgado – que examino um pouco melhor a seguir – com as sugestões dos
Grupos de Trabalho previamente organizadas pelo coordenador autoproclamado dos
GTs. Os estatutos, então, serão mudados e o CNC será um conselho de estados -
eleitos ali, e não em seus estados, nem pelos que não puderam vir, e que nem
discutiram nada disso. O movimento cineclubista deixará de ter regras,
controles, programas políticos, e será dirigido por decisões tomadas a cada
caso - e composição – conforme a conjuntura, o projeto e a verba do ministério,
o estado (isto é, a disposição) e interesses dos representantes dos... editais?
3. Tendências em
campo
O ambiente
cineclubista, ou o que sobrou dele, é um campo de luta política e ideológica.
Historicamente, houve períodos marcantes em que, por exemplo (anos 50 e 60), os
cineclubes laicos disputavam com os cineclubes católicos, ou (anos 70 e 80)
diferentes correntes de esquerda se enfrentavam. Mas sempre com uma ampla
margem de união no sentido de preservar a instituição e a organização do
cineclubismo nacional. É a primeira vez - e isso vem desde a retomada do
movimento em 2003 -, que o conflito entre diferentes concepções de cineclubismo
(ou melhor, da atividade de exibição cultural) aponta para uma eventual
destruição da estrutura organizativa e das próprias características que definem
o cineclubismo: associativismo e autoformação do público, ausência de fins
lucrativos, etc.
Eu me referi mais
acima sobre a existência de duas tendências principais no recomeço do movimento
cineclubista neste século; simplificando muito: a do cineclube como espaço do público e a do cineclube como espaço do cinema, canal de recepção dos filmes. A
trajetória destes mais de dez anos alterou bastante aquela situação inicial.
Os cineclubes com
associados, direções eleitas, assembleias regulares, sustentados pelo menos em
parte por contribuições de seus associados e/ou frequentadores, praticamente
deixaram de existir. Hoje não estão representados por uma tendência organizada,
mas apenas por algumas vozes mais ou menos isoladas, como esta que aqui se
exprime.
A hegemonia do “espaço
para o cinema” como possível expressão de um público sem participação formal
tornou-se quase absoluta. Divide-se, de fato, por outros critérios ou aspectos.
Em primeiro lugar, há as tendências politicamente neoliberais. Pode-se
reconhecê-las, por exemplo, nos Estudantes pela Liberdade[8], grupo internacional de
formação de lideranças contra o comunismo e o associativismo. Mas o grupo Fora
do Eixo, com suas teorias de um mercado “pós-capitalista” apoiado no Estado,
tem muito mais expressão no meio de que estamos falando: além de estar
fortemente ancorado no ministério da Cultura e em várias entidades do chamado
cinema cultural, exerce a direção intelectual das iniciativas de exibição em
alguns dos estados em que elas estão mais organizadas. Como esse grupo opera de
forma dissimulada, é difícil identificar exatamente onde a isso se somam, de
forma mais difusa, outras formas ideológicas neoliberais – como as da
onguização e da convergência perversa, já referidas - com seus conceitos de
economia criativa, empreendedorismo, etc., que pretendem uma “ressignificação”
do cineclubismo, mas que não passam da negação de seus princípios mais
essenciais.
Já fora do espectro
da direita, uma outra postura é bastante disseminada especialmente nos
cineclubes de comunidades mais populares: ela se mescla a práticas e crenças
tradicionais e se identifica com as relações sociais e culturais baseadas nessas
tradições. Também aí se abandona a estrutura organizativa cineclubista pelas
relações de familiaridade comunitária ou clânica. Essa forma de “organização”,
possivelmente rica de possibilidades no plano das próprias comunidades fica,
por outro lado, complementar ao projeto de desorganização do movimento quando
transportada para o plano institucional. Sem mecanismos de controle
democrático, fora da comunidade (e de seu contexto) as lideranças por prestígio
ou parentesco se misturam com “representantes” voluntaristas de
representatividade discutível.
A meu ver, muito em
função do avanço do capitalismo nos planos da cultura e da subjetividade, e do
descrédito com as utopias e os projetos de transformação social, os movimentos
sociais em geral têm adotado propostas políticas que muitas vezes representam
um recuo. A desconfiança nas formas de organização da sociedade civil e o
abandono da perspectiva de organização partidária nos leva de volta aos tempos
do anarquismo pré-sindical e a formas de atuação isoladas ou sem programa que
têm, inclusive, levado até à eventual opção pelo terrorismo.
No movimento
cineclubista, a ingerência e cooptação pelo Estado (seguida do abandono por
outra gestão) – além da influência das tendências à direita – criaram uma
grande insatisfação e descrédito nas formas mais trabalhosas de construção da
participação democrática do público. Mais ou menos inconscientemente, um grande
número de comunidades e ativistas que passaram por essas experiências (de
dependência – e da relativa facilidade - da sustentação pelo Estado), não
acredita mais no trabalho duríssimo e lento da organização popular, e adota a
bandeira da “horizontalidade sem regras” que beneficia, em última instância, a
iniciativa individual e só pode funcionar onde houver dinheiro público. Essa é
a situação da maioria das comunidades envolvidas na conjuntura que cerca a
preparação desta Jornada.
É preciso, é mesmo
urgente, para dar o maior aproveitamento possível a esse encontro, que se
compreendam seus limites e suas oportunidades. Sob risco de perder essas
oportunidades e se constituir como uma espécie de massa de manobra de projetos
que não se apresentam de maneira clara e transparente. A consciência crítica
deste quadro, por outro lado, abre novas perspectivas para aproveitar uma
reunião que os cineclubes e entidades afins não conseguem realizar há mais de
três anos.
4. Cineclubes e
outras formas de exibição sem fins lucrativos
As colocações
anteriores nos trazem a um quadro complexo e original do segmento da exibição
cultural audiovisual sem fins lucrativos no Brasil. Há muito poucos cineclubes puros, no sentido em que eles se
definiram historicamente, na legislação e nos textos político-legais
(estatutos) que regem esse movimento. Cineclubes são associações comunitárias
abertas, democráticas e independentes, sem fins lucrativos, que trabalham em
bases sistemáticas pela apropriação do cinema, em todos os seus aspectos, pelo
público. Mas um leque bem amplo de atividades, sem uma ou várias dessas
características (como descrevi antes), utiliza o nome cineclube eventualmente.
E há muita coisa comum – necessidades e interesses - entre muitas delas e os
cineclubes.
A legislação
tributária disparatada e a imensa burocracia que acarreta, dificultam e quase
impedem a constituição legal dos cineclubes. Adaptando-se à sua própria
irracionalidade, o Estado acabou criando programas para pessoas físicas, uma
solução apenas aparente. Dessa forma, desestimula o associativismo e a
democracia, ao mesmo tempo em que esse tipo de programa tende a circunscrever
tamanho e custos dos projetos, pois muitos são barrados nos órgãos de controle
das contas públicas. Mesmo assim, um grande número de iniciativas de projeção
audiovisual se beneficia desse tipo de fomento e constitui uma das variáveis
desse segmento: são projetos temporários de exibição ou itinerância,
frequentemente com oficinas de produção, geralmente dirigidos por um pequeno grupo
de pessoas. Informais e democráticos nesses limites, de uma maneira muito geral
não têm vínculos formais permanentes, isto é, não mantêm canais de
representatividade e controle com as comunidades em que atuam – embora, em
muitos casos, a pessoas ou pessoas responsáveis vivam na comunidade ou região. Além
de cineclubes, muitos se denominam coletivos,
embora esse nome evocativo geralmente se refira a grupos limitados, mais ou
menos fechados em torno da própria experiência compartilhada.
Um bom número de
outras iniciativas tem estabilidade graças a vínculos com instituições
públicas, acadêmicas, prefeituras e outras, com muito reconhecimento de suas
comunidades. Frequentemente esse reconhecimento envolve até certa participação
da comunidade – mas sempre informal -, dada a inserção da atividade sistemática
no meio em que atua. Diferem dos cineclubes apenas porque têm seus dirigentes –
e seu quadro de atuação – nomeados, delimitados pela instituição.
5. Reconhecimento
efetivo dos cineclubes e das entidades congêneres
Há, portanto, diversas formas e nomenclaturas que
identificam diferentes tipos de atividades
culturais de exibição audiovisual sem fins lucrativos. Essa diversidade
implica em muitos interesses comuns, ao mesmo tempo em que supõe também
necessidades específicas. Essa situação tem sido confundida por um discurso que
retira ou ignora os conteúdos específicos de cada proposta de trabalho. Descaracteriza
o cineclube e enfraquece outras iniciativas, reduzidas a um “junto e misturado”
que as identifica com meras projeções. Vivemos num quadro de desagregação da
instituição cineclube (que precisa ser recuperada) e de ausência de definições
e regras para a exibição sem finalidade comercial em geral; de falta de
programas (mesmo os que já foram citados foram todos interrompidos no plano
federal) e estímulos, e sobretudo diante de inúmeros entraves à sua atuação. Há
muito que reivindicar, construir.
Esta Jornada deve, portanto reconhecer essa diversidade
e servir como plataforma para o levantamento de reivindicações e propostas comuns
e também específicas, unindo sem autoritarismo o que há em comum, reconhecendo
as diferenças e aproveitando a força de todos para encaminhar propostas de diferentes
segmentos.
Propostas para a retomada do cineclubismo em nível
nacional e o avanço da exibição audiovisual cultural
1. Uma Jornada de reorganização do
cineclubismo e consolidação da exibição cultural sem fins lucrativos
Em 1973, no auge da repressão do governo Médici, uns
poucos representantes das federações reconstituídas do Rio, São Paulo e
Nordeste se reuniram em Marília para planejar uma Jornada em que as bases
cineclubistas de todo o País pudessem efetivamente assumir a direção de uma
entidade que os representasse nacionalmente: e foi no ano seguinte – em
Curitiba, 1974, na 8ª. Jornada Nacional de Cineclubes – que começou a
resistência ao regime autoritário e uma fase muito rica do cineclubismo
brasileiro e mundial. Em 2003, velhas lideranças e cineclubistas de uma nova
geração se encontraram em Brasília com um objetivo muito semelhante, mas com
pouca preparação anterior. Alguns queriam eleger imediatamente uma diretoria e
refundar o CNC (que estivera parado desde o final dos anos 80). Mas a maioria decidiu
estabelecer uma Comissão de Reorganização provisória, encarregada de organizar
uma pré-jornada em 6 meses e uma Jornada amplamente convocada e democrática no
prazo de um ano. Em 2004 foi reorganizado o CNC com amplo apoio nacional e 10
estados compondo sua diretoria.
Estamos diante de uma situação análoga e, claro,
diferente. Mas o que é decisivo é que a convocação para este encontro não é
suficientemente transparente e democrática; não houve uma preparação organizada
e aberta (exceto, muito precariamente, para referendar propostas prontas); não
há até agora informações completas e suficientes sobre o encontro. Sobre esta
base não é possível mudar estatutos (decisão importante, que só pode ser tomada
por ampla e sólida maioria depois de muita reflexão), eleger representantes
para negociar com o governo (e internacionalmente), entre outros problemas.
Deveríamos, portanto, aproveitar este encontro para
constituir uma Comissão Provisória com um mandato muito determinado: criar
condições para a realização de uma grande Jornada – em prazo definido por esta
plenária – ampla e democrática, que poderá, então, deliberar sobre os temas
institucionais mais permanentes (mudanças de estatutos, por exemplo) e eleger
representantes regulares.
Mas há, evidentemente, outros assuntos urgentes e a
necessidade de aprovar medidas programáticas, sem as quais o movimento
cineclubista perderia a oportunidade de diálogo e negociação com os governos,
por exemplo, e de tomar iniciativas que podem ser levadas adiante pela mesma
Comissão – e, em certos casos, por entidades indicadas pela assembleia – com
formas de acompanhamento definidas por todos. Nesta altura, oponho-me
totalmente a delegar de forma abstrata, a quem quer que seja, reivindicações e
negociações – com o Estado ou instâncias privadas – que afetam todo o movimento
cineclubista e/ou as iniciativas que têm interesses e objetivos comuns ou
semelhantes.
Essa Comissão, além de cineclubes, deve então ser
composta por representantes das formas de exibição cultural sem fins lucrativos
que apontei acima – e outras que a assembleia reconhecer. A composição deve ser
equilibrada em relação aos estados presentes – e não abstrata para “todos os
estados” – mas também comprometida com um programa mínimo, deliberado em
consenso.
A assembleia pode atribuir também provisoriamente a
entidades específicas (e qualificadas, segundo consenso) que se ofereçam,
algumas das iniciativas que forem aprovadas (por exemplo: sediar um acervo de
filmes, organizar um encontro temático, etc.). Nos pontos seguintes, proponho o
que penso serem os eixos principais para um programa mínimo bem definido e
aprovado por todos, a ser encaminhado coletivamente.
O local de realização da Jornada deve ser decidido
nesta, entre propostas fundamentadas formuladas por cidades que, de
preferência, já tragam cartas de intenção de parceiros e apoiadores locais,
como governo estadual, prefeitura, empresas, etc. O prazo não deve exceder 2016
(ou, no máximo, primeiro bimestre de 2017), considerando que a melhor ocasião
para uma Jornada é nos períodos de férias escolares, no início ou meio do ano.
Seria interessante – se houver proponente – fazer uma
Pré-jornada no meio desse prazo para avaliação do encaminhamento e eventual
reunião temática conjunta sobre outras iniciativas deliberadas agora. A
Pré-Jornada, aberta a todos dentro das limitações financeiras, reuniria
necessariamente os membros da Comissão de Reorganização, as entidades
encarregadas de outras deliberações tomadas agora e eventuais convidados, como
autoridades e representantes de ações encaminhadas em comum. A Pré-Jornada pode
ser (ou não), simultaneamente, um encontro temático, como o Seminário de Cinema
e Educação ou reunião com o MINC para avaliação das deliberações aprovadas
neste encontro de agosto agora.
2. Programa e
temário simplificados
O programa (sessões plenárias, grupos de trabalho e
outras atividades) e o temário a ser debatido na Jornada devem ser aprovados
pela plenária inicial do encontro. Parece-me que não foi divulgada nenhuma
proposta de programa, mas foram estabelecidos – sem qualquer discussão aberta -
quatro grupos de trabalho para tratar de quatro propostas dos organizadores.
Sintetizo abaixo o e-mail da Secretária Geral do CNC, de 9 de junho:
·
GT de Cinema e
Educação – “para debater a federalização do Projeto de Lei de Acesso
Audiovisual no Estado do Rio de Janeiro”;
·
GT de Comunicação – para
“a SAV bancar a criação de um site com forma de rede social dos cineclubes”;
·
GT Estatuto – “para
o CNC ganhar a forma de um Conselho de fato, com um fórum de debate e
articulação nacional de cada estado brasileiro”, e
·
GT Políticas
Públicas – para estabelecer “um Programa
de Incentivo, Fortalecimento, Consolidação e Expansão do Cineclubismo
Brasileiro, conforme o Plano de
Diretrizes e Metas para o Audiovisual: O Brasil De Todos Os Olhares Para Todas
As Telas”, da ANCINE.
A meu ver, salta aos olhos a manipulação: a Jornada se
reúne para referendar o que já está armado – e foi armado sem nenhuma discussão
aberta. As propostas já estão organizadas de acordo com textos prontos e – com
exceção da proposta de desorganização do CNC – todos os projetos se atrelam ao
Estado, e mesmo com as metas de número de cineclubes já presentes nos planos da
ANCINE e do MINC (cujos históricos e também perspectivas de coerência, continuidade
e interesse pelo cineclubismo são dos mais eloquentes). Praticamente todos os
temas mais importantes ficaram reunidos num único (o último) GT, mas a reboque
do Plano da Ancine. A Ancine é a instância mais criticada do cinema brasileiro,
totalmente identificada com o modelo e os interesses de Hollywood e dos grandes
exibidores. É uma piada de muito mau gosto.
Em seguida à sua indicação, os GTs foram rapidamente
apropriados e coordenados por um “voluntário” diretamente ligado aos temas
indicados. Dessa forma se poderá mais facilmente, e antecipadamente, integrar
as propostas independentes - que necessariamente surgem - ao projeto outorgado,
preservando-o.
Esse projeto de Jornada – que tem, entretanto, uma
alta probabilidade de ser bem sucedido – se materializa essencialmente na
desestruturação do CNC, na continuidade da informalidade que exclui a grande
maioria das entidades de base e só beneficia indivíduos que têm trânsito nas
instâncias governamentais. E estas, como vimos, reconhecem e estimulam essa
informalidade que, afinal, só promove as propostas governamentais. Aprovados na
Jornada os “projetos de lei” em tramitação há anos no Rio de Janeiro, as
“metas” de milhares de cineclubes (alguém já viu esse filme?) que a Ancine
promete, nada acontecerá, e ninguém cobrará, como tem sido nos últimos anos.
Porque o Estado e os protagonistas do que já foi cineclubismo e hoje pretende
ser circuito de exibição, fazem parte da mesma concepção liberal-populista de
cultura, do mesmo projeto de beneficiar a produção e não o público.
Hoje, como descrito aqui, estamos diante de uma crise que, com todas as
suas potencialidades, também pode ser um momento de reafirmação e reorganização
do cineclubismo e de reconhecimento e consolidação da exibição cultural sem
fins lucrativos. Considerando a proposta de uma Comissão de Reorganização,
acredito que devemos adotar um temário amplo, mas bem definido (inclusive com
metas, mas nossas metas), cobrindo os
pontos mais importantes que vêm sendo abordados ao longo deste texto.
Como já disse, estatutos são um tema que deve ser preparado para uma
reunião mais representativa. Fora esse, penso que alguns outros pontos, já
levantados pelos cineclubes, convergem e podem ser reunidos. Assim, chego aos
temas que gostaria de propor ao debate nesta lista e à consideração da plenária
da Jornada que, como disse, é soberana para deliberar sobre a organização e
temário do encontro:
3. Propostas no
plano legal e administrativo:
Antes de tudo queria sugerir a adoção de uma
terminologia: cineclubes e entidades
congêneres, sendo estas as iniciativas de exibição audiovisual de caráter
cultural e/ou educativo sem fins lucrativos. Claro que alguém pode lembrar um
termo mais adequado, mas usarei este aqui para desenvolver a proposta.
Devemos reunir, no Congresso Nacional, um Grupo Parlamentar de Apoio aos Cineclubes e
Entidades Congêneres. Cada cineclube e federação, assim como as outras
entidades, devem atuar junto a deputados e senadores em suas bases locais e
regionais para atingirmos esse objetivo. O que não será fácil nem imediato. Mas
uma lei regulamentando os cineclubes e entidades congêneres é indispensável
para o pleno e livre desenvolvimento das nossas atividades. Por quê? Porque só
através de uma lei poderemos simultaneamente resolver os nossos maiores problemas
legais e administrativos. Só uma lei pode regular e simplificar: 1) o registro
em cartório e o reconhecimento institucional em geral, hoje cheio de
burocracias e taxas, 2) a nossa imunidade tributária – que é inerente, já que
não temos fins lucrativos, e c) a plena liberdade de exibição, sem a sujeição
eterna aos limites dos direitos patrimoniais. Estes três pontos são as
bandeiras prioritárias e permanentes da exibição cultural no Brasil. E não vai ser nada fácil conquistá-los. Essa
luta deve começar já.
Mas cineclubes e entidades congêneres contam com a
simpatia de muitos parlamentares, independentemente de partidos, e nossa
própria “fragilidade” ajuda a contornar as resistências (sobretudo do comércio)
à liberação desses entraves para setores mais amplos. Em outras palavras, a proposta
de revisão da lei do direito autoral que já foi encaminhada ao congresso pelo
MINC, por ser muito ampla e ter outros aspectos, acabou paralisada; uma medida
limitada a cineclubes e congêneres tem mais possibilidade de trâmite. E o
encaminhamento fora do Congresso – que já é a instância mais forte –, isto é,
pelas agências governamentais, corre o risco de ser detida ou modificada por
outros interesses corporativos do próprio audiovisual (a Instrução Normativa da
Ancine sobre os cineclubes, além de resultar inócua, ficou parada um tempão
porque os técnicos da agência questionavam vários pontos da proposta
encaminhada pelos cineclubes). Política cultural não é uma questão
administrativa.
4. Propostas no plano das políticas governamentais
O centro da política cultural comunitária do governo
federal, como tratado anteriormente, é o Programa Cultura Viva e, através dele,
os Pontos de Cultura. Os cineclubes enquanto tais, no entanto, não foram
reconhecidos como Pontos de Cultura; para eles se desenvolveu o Cine+Cultura e
o programa de kits de projeção. Esse programa é um fracasso: foi interrompido e
praticamente não deixou nenhum legado estável e permanente. O outro projeto de
interesse para os cineclubes, a Programadora Brasil, também está sem atividade,
ligada à grave crise da Cinemateca Brasileira.
A grande qualidade do projeto original dos Pontos de
Cultura era a ideia de que o Estado daria um empurrãozinho em iniciativas que a
sociedade já criara, garantindo-lhes um impulso inicial e certa estabilidade
por um período de três anos. Os recursos eram bem razoáveis. Supunha-se que,
findo esse prazo, as entidades estariam consolidadas e poderiam continuar suas
atividades de forma autônoma. Mas, ao invés do planejado, as entidades beneficiadas
não construíram sua sustentabilidade, caíram numa dependência do Estado e este
ficou preso nas garras da sua própria burocracia, do tratamento igual a
entidades desiguais, exigindo prazos, registros e comprovações que fogem à
cultura e experiência do meio cultural comunitário. Entre disputas políticas e
muita burocracia, todo o programa avança com muitos problemas. Mas afinal avança,
agora inclusive com a aprovação de uma lei específica.
É preciso, então, que abandonemos a reivindicação
mecânica e ineficaz pela retomada do Cine+Cultura, que deixemos enterrar esse
zumbi que assombra pessoas e grupos abandonados há três anos. O cineclube – e
muitas outras entidades ligadas à exibição cultural – é, e sempre foi, um tipo
de Ponto de Cultura (na verdade, a prática social precede de um século a
nomenclatura governamental), e o de maior número (pelo menos nos levantamentos
de alguns atrás - e não estou falando de “atividades com vocação audiovisual”,
mas cineclubes mesmo). O tipo de verba (cerca de R$ 300 mil em três anos) que o
Ponto de Cultura recebe é muito adequada à instalação de um cineclube
comunitário para este século 21: com um bom espaço para múltiplas atividades,
equipamentos, e a possibilidade de se estabelecer solidamente na comunidade até
que essa possa sustentá-lo sem dependência do Estado. Autossustentabilidade não
significa abdicar de outras reivindicações ao Estado, mas sim não depender
exclusivamente delas.
Assim, a Jornada pode aprovar a reivindicação de um
plano, inclusive com prazos, metas, números e distribuição geográfica, para
editais específicos de Pontos de Cultura Cineclubista. A presença de
autoridades governamentais é ocasião para se comprometerem.
Nesta mesma linha, acho que devemos debater a criação
de um Centro de Formação Cineclubista e Animação Cultural Audiovisual (o nome é
só uma sugestão), que atuaria em todos os níveis de formação de novos
cineclubes e de animadores audiovisuais para outros contextos: conhecimento de
cinema – inclusive produção -, sustentabilidade e administração democrática das
entidades, animação cultural, etc. Pode-se chamar isso de Pontão Cineclubista
ou coisa assim, se for necessário. Mas, ao contrário do que aconteceu com a
péssima experiência anterior, não pode privatizado, apropriado por outra
instituição que não as de objetivo e representatividade nacional. E pode ter
representações ou sedes estaduais. O desenvolvimento de um projeto detalhado
para essa proposta pode ser delegado pela assembleia a um grupo especial de
trabalho constituído durante a Jornada, com prazo para disponibilizar o projeto.
Um encontro específico – mas aberto - posterior pode servir para fechar o
projeto também com a presença de autoridades – inclusive parlamentares como
dito acima.
É evidente que a reorganização e continuidade da
distribuidora audiovisual do governo – a Programadora Brasil – também é uma
questão fundamental, que deve ser discutida e reformulada como reivindicação
pela Jornada. A participação de cineclubes e entidades congêneres na sua gestão
e controle é indispensável. Mas essa reivindicação não elimina a necessidade de
uma ou mais estruturas próprias dos cineclubes, facilitando o acesso às
filmografias independentes e ao cinema internacional de todos os tempos.
Ainda neste plano institucional, a assembleia deve
eleger representantes provisórios (até a Jornada que propus) nos diferentes
órgãos que deliberam sobre temas de nosso interesse: CNPC, SAv, Programadora, etc.
5. Propostas para
o tema Cineclubismo e educação
O projeto do Rio de
Janeiro, indicado como modelo a ser aprovado pelo Grupo de Trabalho convocado
pelos organizadores desta Jornada, confunde as relações entre cineclube, cinema
e educação. Identificado com a ideologia e interesses dos realizadores, propõe também
a escola como uma espécie de mercado alternativo para a produção,
“especialmente a brasileira”, e pretende formar realizadores nos mesmos moldes
que, em geral, serviram para formar essa geração de cineastas amadores. O
método previsto é também um mercado de trabalho já bastante utilizado: a
contratação de oficinas de realização e de formação de cineclubes.
Ora, a questão
cineclube, cinema e educação é uma preocupação mundial que já deu origem a um
sem-número de propostas teóricas e experiências concretas. No Brasil, mobilizou
educadores e estudiosos de várias universidades e outras instituições. Já
existe um patrimônio de conhecimento e experiências, que não pode ser ignorado
pretensiosamente pelos participantes desta Jornada.
Em termos, mais uma
vez, muito simplificados, a questão se coloca da seguinte maneira:
1)
existe a necessidade
da escola incorporar a linguagem
audiovisual em sua prática. É mais ou menos consenso que isso deve ser
introduzido no currículo e estudado em sala de aula através de trechos
significativos exemplares de filmes ou de curtas-metragens. O longa não cabe na
grade escolar regulamentar ou acaba servindo como distração para alunos e
professores;
2)
o audiovisual é
instrumento riquíssimo e até indispensável no contexto atual, para o
fortalecimento e complementação do ensino de todas as matérias e como
instrumento de transversalidade entre elas – e aqui se reintroduz o
longa-metragem em horários extra-aula, e
3)
o cineclube –
incluindo alunos, professores e pais, entre outros – é uma ferramenta
indispensável na interface da escola com a comunidade e esta interação é
fundamental para a escola e para o processo educativo em seu sentido mais
amplo.
É já uma proposta
bastante discutida a de realizar um amplo Seminário Cineclube, Cinema e
Educação, reunindo justamente as universidades, as diversas experiências,
educadores, representantes das instituições governamentais e cineclubes. Dessa
forma, esse tema abrangente – que extrapola o espaço cineclubista e interessa a
vários setores da sociedade – teria uma base política muito mais sólida e
ampla. Alguns encontros foram realizados localmente, mas seus resultados não
foram de grande monta. Com a recente portaria do MINC para a constituição de um
Grupo de Trabalho ligado ao ministério visando a regulamentação da lei 13.006,
a realização desse Seminário fica mais oportuna e necessária. Até porque a
questão se liga, mas não tem os limites da medida proposta pelo senador
Cristovam Buarque. Realisticamente, é improvável que o MINC inclua os
cineclubes numa lista de apenas 5 elementos da sociedade civil: essa
representação é burocrática, insuficiente e pouco representativa. A organização desse seminário é um exemplo de
deliberação que pode ser atribuída pela Jornada a uma ou mais entidades
presentes que tenham qualificação, estrutura, experiência e interesse em
organizar a reunião.
6. Propostas no
plano organizativo: iniciativas próprias
A proposta de constituição
de uma Comissão Provisória de Reorganização do CNC, tendo como atribuição
prioritária a organização de uma Jornada efetivamente democrática e representativa,
não exclui um elenco de outras tarefas que já podem ser encaminhadas, sob
certas condições.
Em primeiro lugar,
consenso. Como esta Jornada não preenche as condições políticas e estatutárias
de transparência e representatividade, não há legitimidade em eventuais
votações (sem julgamento de mérito das entidades e/ou pessoas envolvidas). Da mesma
forma e complementarmente, medidas decididas mesmo consensualmente não podem
atingir questões estatutárias: seu alcance deve ser definido e seu
acompanhamento também deve ser amplo, impessoal e transparente. De uma maneira
geral, as decisões devem prever serem referendadas na próxima Jornada convocada
regularmente. Penso que devemos propor poucas medidas nesta etapa, de forma a
facilitar seu acompanhamento.
Outra observação que
julgo importante, implícita em tudo que foi dito até aqui, é que essas medidas
não devem se atrelar mecanicamente à pauta do governo federal ou outro, mas
atender às necessidades mais urgentes dos cineclubes e entidades congêneres.
Creio que, como já
disse, certas propostas podem ter sua organização ou realização delegadas a uma
ou mais entidades presentes que manifestem interesse e comprovem capacidade
para tanto.
Finalmente, as
propostas seguintes devem fazer parte de um documento consolidado de
reivindicações – para obtenção de apoio institucional e financeiro – junto ao MINC,
mas não devem depender desses apoios, que devem ser complementares às medidas
aprovadas e empreendidas pelos cineclubes reunidos em conclave nacional.
Se aprovadas, estas
medidas deverão ser reavaliadas na Pré-Jornada e consolidadas na próxima Jornada.
6.1.1 Propostas de tarefas a serem coordenadas pela
Comissão:
1. Estabelecidas as datas e os locais, acompanhamento dos
trabalhos para a realização de uma Pré-Jornada e uma Jornada, com um mínimo de
seis meses de intervalo entre elas, para a preparação da segunda, com o
objetivo de reorganização da entidade nacional dos cineclubes brasileiros, discussão
e eventual elaboração de novos estatutos e eleição de uma direção efetivamente
representativa;
2. Organização de um Grupo Parlamentar, no Congresso
Nacional, para apoio e encaminhamento de uma política básica de estímulo ao
cineclubismo e à exibição cultural audiovisual sem fins lucrativos em nosso
País;
3. Organização de um Grupo de Trabalho para a criação de
um espaço virtual (saite) de informação e comunicação entre os cineclubes
brasileiros; esta tarefa pode ser entregue a uma entidade presente que reúna
condições técnicas e práticas para a sua realização. A assembleia também deve
estabelecer um prazo de ativação. O mesmo Grupo ou entidade deve
responsabilizar-se pelo monitoramento da lista cncdialogo até a próxima Jornada;
4. Constituição de um Grupo de Trabalho para a elaboração
de um projeto de editais públicos para apoio a Pontos de Cultura Cineclubista,
prevendo suas dimensões, escopo, prazos e custos. Este mesmo Grupo – ou uma sua
subdivisão – deve elaborar o projeto de um Centro de Formação Cineclubista e
Animação Audiovisual (ou Pontão de Formação Cineclubista e Animação
Audiovisual) que atuará nesses campos de forma permanente, igualmente com uma
dotação pública federal. Ambos os projetos deverão, no máximo, ser apresentados
publicamente até a realização da Pré-Jornada, a qual poderá prever igualmente a
realização deste evento, e
5. Criação de um Grupo de Trabalho para a preparação e
realização de um Seminário de Cineclubismo, Cinema e Educação, para embasar e
contribuir com a prática dos cineclubes e entidades congêneres, inclusive
avaliando e fazendo proposições em relação à regulamentação e aplicação da
legislação existente, e com ampla participação de todas as instituições que
desenvolvem trabalhos nesse campo. Esta tarefa pode ser entregue a uma entidade
presente que reúna condições técnicas e práticas para a sua realização.
7. Outras propostas
Um encontro desse
tipo, com dezenas de entidades e pessoas de todos os cantos do País, independentemente
dos limites que comentei, é sempre uma experiência motivadora, e uma rara e
preciosa ocasião de encontro, intercâmbio, conhecimento. Assim, as propostas
que avancei até aqui apenas procuram cobrir um campo que julgo essencial, junto
com a recomendação de que as deliberações não se tornem tão numerosas ou
detalhistas que comprometam sua efetiva realização com participação e controle
democrático.
Por isso não falei
de filmes, por exemplo, que são o objeto maior do nosso trabalho, mas que, nas condições
atuais, podem ser facilmente obtidos na internet na internet pelas
atividades não comprometidas com os
direitos patrimoniais. E, mesmo neste caso, ainda existe um grande universo de
filmes de domínio público ou que podem ter sua exibição autorizada depois de
alguma negociação. De certa forma, essa questão está implícita, porém, na
demanda pela reativação da Programadora Brasil (que só distribui filmes
brasileiros) e na proposta do Centro de Formação Cineclubista e Animação Audiovisual
que, a meu ver, deve incorporar também um arquivo de filmes.
Outro espaço
fundamental, na Jornada, para criar novas ações, é o dos acordos entre
entidades – bilaterais ou envolvendo mais iniciativas, regionais ou por tipo de
atividade (universitário, infantil, etc.) – que podem ser acertados nesses dias
de convívio.
Notas
[1] Nickelodeon (níquel = moeda de 5 cents;
odeon = pequeno teatro, em grego) é o nome da primeira sala fixa
estadunidense, aberta em 1905, cujo enorme sucesso deu origem a uma verdadeira
explosão de salas em todo o país, reconhecidas sob essa mesma denominação: os nickelodeons. A partir desse fenômeno,
forma-se e define-se a instituição moderna do cinema e o próprio público, assim
como a relação entre eles.
[2] Simetricamente contrário ao cinema comercial, que tem proprietário, o
cineclube pertence e orienta-se pelo seu público; a finalidade precípua do
primeiro é o lucro, o cineclube define-se pela ausência de fins lucrativos.
[3] Hall, Stuart ([1973] 1980): 'Encoding/decoding'. In Culture, Media, Language: Working Papers in
Cultural Studies, 1972-79 Centre for Contemporary Cultural Studies (Ed.): Londres:
Hutchinson, pp. 128-38
[4] O cinema mudo nacional – em que essa distinção
de duração quase não se aplica – teve muita coisa mal feita, mas quase sempre
esteve voltado para o comércio (embora não tenhamos informação sobre as
iniciativas dos fortes movimentos populares do início do século e muito pouca
documentação sobre os clubes amadores que certamente havia pelo menos desde o
começo dos anos 20).
[5] Dagnino,
Evelina (2004) “¿Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos
falando?” In Daniel Mato (coord.), Políticas
de ciudadanía y sociedad civil en tiempos de globalización. Caracas: FACES,
Universidad Central de Venezuela, pp. 95-110. Disponível em: http://www.plataformademocratica.org/Publicacoes/3909.pdf
[6] Os estatutos do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros – geralmente
identificado apenas como CNC - consagram o termo Jornada Nacional como sinônimo
da assembleia bianual, instância soberana da entidade.
[7] Há uma informação na lista cncdialogo
de que isso acontece porque estão proibidos convênios do Estado com organizações
não governamentais, o que não é verdade.
[8]
http://epl.org.br/files/2013/06/guiacineclube.pdf