segunda-feira, 19 de novembro de 2018


Mensagem aos cineclubistas capixabas
por ocasião do 6º. Encontro Estadual de Cineclubes do Espírito Santo - 2018

O que é um cineclube? O que têm sido os cineclubes em mais de 100 anos de existência em praticamente todos os países do mundo? Que papel pode ou deve desempenhar um cineclube hoje?

1. Os cineclubes têm origem em formas de organização popular: clubes de ajuda mútua, de autoeducação, com conferências e debates, e de lazer – através de cantorias, recitação, teatro – que também eram políticas, e estão na origem dos sindicatos e de muitos partidos políticos. Isso desde o final do século 18, mais ou menos à época da Revolução Francesa. Muitas dessas atividades eram “ilustradas” pelas imagens projetadas por lanternas mágicas. Com o surgimento do cinema, ele logo foi incorporado às conferências e debates promovidos no que agora (virada para o século passado) já era um forte e organizado movimento proletário. Mas os filmes existentes não eram feitos pelos trabalhadores, e muitos achavam que eram mesmo contra os trabalhadores. Neles, o povo era mostrado de uma forma paternalista ou pior, preconceituosa; as mulheres, como imorais ou diabólicas; os movimentos sociais, as greves – na época em que ainda se lutava pela jornada de 8 horas de trabalho – como coisa de bandidos e anormais que precisavam ser expulsos das fábricas e das famílias. Mas o público do cinema comercial, que se estabelece no começo do século passado, era justamente formado por esse público popular, de trabalhadores, imigrantes, mulheres, crianças e... grevistas. Logo surgiram tentativas de fazer, por suas próprias mãos, um cinema que mostrasse a “vida real dos trabalhadores”, como diziam os panfletos da época. E iniciativas de organização de espaços próprios, também, para a exibição desses filmes, e para o debate, que já era uma velha tradição das organizações populares.

Assim surgiram, em torno dos anos 10 do século 20, os primeiros cineclubes mais formalmente organizados. Eles aparecem justamente no momento em que se consolida também a forma de cinema comercial que vai prevalecer durante todo o século e, em boa medida, até hoje. Duas coisas paralelas e antagônicas: cinema comercial e cineclube. O primeiro busca primeiro que tudo o lucro: onde não há lucro cessa, se retira o cinema comercial, e se adapta a outras formas “de negócio”, como aliás estamos vendo claramente nestes últimos tempos. O cinema comercial é a manifestação da chamada indústria, do capital, e seu discurso, sua mensagem é numa única direção, de cima para baixo: o público é um receptor mudo, passivo, espectador. Vê e escuta sem poder se manifestar. O cineclube é o oposto: organização coletiva, democrática, onde se propõe e se promove justamente a participação, a manifestação de cada um, e onde não cabe a acumulação financeira privada. O objetivo do cineclube não é o lucro, mas a apropriação do cinema pelo público.

E o que quer dizer apropriação do cinema? Muitas coisas: primeiro, poder ter acesso ao cinema, a todo o cinema, sem se submeter aos obstáculos artificiais criados pelos ingressos muito caros, pelo preço das assinaturas de tevês fechadas, pelo controle de “direitos” dos produtos audiovisuais – e pela conivência ou tibieza das políticas públicas que não controlam os monopólios comerciais sobre a cultura e o audiovisual. Segundo, poder expressar-se através do cinema, o que implica acesso ao conhecimento, às técnicas, mas também aos equipamentos e infraestruturas de produção, de projetores, câmeras e aparelhos de som e luz até os sistemas e estruturas de radiodifusão passando, é claro, por todos os recursos digitais existentes. E terceiro, o direito democrático de se organizar em função dos objetivos anteriores, em cineclubes por exemplo, mas também em federações regionais, organizações nacionais e internacionais. Esses três aspectos implicam necessariamente na necessidade de se fazer representar politicamente e participar na organização e controle das instituições e políticas públicas que afetem o público audiovisual.

E público, o que é afinal? É também o avesso do espectador ou da plateia do cinema comercial. Público é a única palavra que não tem um sentido passivo quando se fala de qualquer tipo de espetáculo. Plateia, auditório, audiência remetem à metáfora do móvel, que fica lá, para mobiliar sem  ação o espaço de uma mensagem de uma só direção. Espectador remete à observação neutra, distante, à espera, na expectativa. Estudos “científicos” criam um espectador abstrato que é, ao mesmo tempo, todos e cada um – mas na verdade esse espectador reflete na quase totalidade das vezes, uma figura masculina, ocidental, branca, cristã, heterosexual e que vê filmes de ficção hollywoodianos. Só o público ressoa com o interesse e a responsabilidade coletivas. Só o público tem opinião. E um papel a desempenhar. É o público que se organiza para criar cineclubes – e outras instituições. Hoje, o público do audiovisual, forma preponderante de toda a mídia, se confunde praticamente com a totalidade da população, que se comunica, se instrui, se socializa através de meios de comunicação audiovisuais. São aqueles 99% a que se referem as estatísticas, os que não têm os meios de produção nem de sua própria vida nem da sua representação audiovisual. O público é o proletariado moderno, como dizia o cineclubista italiano Fabio Masala. E os cineclubes são a instituição mais fundamental do público.

2. Além do sentido positivo de conquista do cinema, a palavra apropriação também pode ter uma significação negativa, a de conquista como ocupação, como posse, como roubo. É o que o sistema tende a fazer com as instituições novas que vão surgindo. O cinema passou por um longo período desse tipo, e em especial entre 1905 e 1915, época que ficou conhecida como de institucionalização do cinema. Nesses anos se organizaram, sistematizaram, se consolidaram todos os aspectos do cinema comercial, o cinema hollywoodiano: a linguagem narrativa linear, a “transparência”, o sistema de estrelas, os principais gêneros, para citar apenas alguns. Mas também o sistema de produção monopolista e fordista (produção em série), a arquitetura e a localização das salas e, o que nos interessa mais diretamente, a forma de recepção do cinema, passiva, silenciosa, espectatorial, de mero consumidor. A maioria dessas características foi adotada ou adaptada por outros meios de comunicação audiovisual e praticamente subsiste até hoje – mesmo que os algoritmos nos permitam dar um “curtir” no que eles escolhem para nós vermos, e nós chamemos isso de interatividade.

Também os cineclubes passaram por um processo de institucionalização ou de adaptação a uma condição subalterna em meio a um modelo de cinema dominante, o comercial. Até por isso geralmente se diz que os cineclubes surgiram nos anos 20 do século passado, uns dez anos depois dos primeiros cineclubes operários: foi a partir dos cineclubes de certa forma domesticados, aliados ou complementares ao cinema comercial que os meios institucionais – Imprensa, Universidade, Estado – começaram a “reconhecer” o cineclubismo. É quando começa a se vulgarizar uma concepção de cinefilia (literalmente “gosto pelo cinema”) como forma de erudição, de especialistas, e não mais como a paixão popular pelo cinema que tão claramente se manifestava desde os anos de transição e consolidação do cinema comercial e que estaria sempre em alta, até o advento da televisão. Cineclube, que era originalmente uma proposta revolucionária de apropriação democrática do cinema pela grande maioria, passava a se apresentar com um culto especializado a um cinema “diferenciado”, um nicho de cinéfilos (algo entre fanáticos e “intelectuais”) que os separava do resto do público. Foi essa concepção elitista de cineclube e de cinefilia que passou a ser aceita, divulgada e, em alguns casos, até estimulada pelas instituições. Desde então os cineclubes vivem as contradições, tensões e conflitos entre esses dois extremos: um cineclubismo revolucionário, que quer criar um cinema totalmente novo, e um cineclubismo elitista, que pretende cultuar e promover o melhor do cinema existente, sem realmente o contestar. Para complicar um pouco esse quadro, a influência das igrejas, especialmente a de Roma, introduziu uma variável importante, o paternalismo: a ideia de formar, de ensinar o caminho correto – e os filmes adequados – para se ver e comprender o cinema. De fato, esses extremos quase nunca existem em estado puro: praticamente todos os cineclubes apresentam e vivem as tensões entre essas três tendências. Podem ser revolucionários e paternalistas e até elitistas, tudo ao mesmo tempo, ou inversamente. Nos Estados Unidos, por exemplo, os cineclubes são quase como as orquestras de elite: toda cidade americana tem sua film society, onde circula a fina flor do high society e da intelectualidade local. Na América Latina os cineclubes têm um forte compromisso anticolonial, de defesa dos cinemas de seus países, e geralmente um compromisso com valores mais populares e progressistas. Mas, nos dois casos, há várias exceções ou outras formas, menos esquemáticas do que esta descrição.

3. Creio que duas grandes condições delimitam, desafiam e sugerem o caminho a ser percorrido pelo cineclubismo neste início de século e no Brasil de hoje. São elas: a grande transformação dos meios audiovisuais de comunicação e de expressão, dentro das mudanças profundas que afetam as forças de produção, o cotidiano, nossa própria forma de viver e, no limite, a sobrevivência do planeta e, em outro plano, a situação social e política em que vivemos os latino-americanos e particularmente a conjuntura brasileira, representada pela eleição pela maioria da população de um governo assumidamente autoritário.

O público, e mais que todos a maioria do público brasileiro, vai pouco às salas de cinema ver filmes de ficção. Sua tela principal é a tevê, e menos os filmes, mas as novelas e outras séries brasileiras ou importadas, as notícias e o futebol. A internet divide, concorre e possivelmente está ultrapassando a televisão, através dos laptops, tablets e, principalmente, dos celulares. No entanto, o modelo de cineclube ainda é principalmente o da sala de cinema (ou algo semelhante) e o debate posterior, frequentemente sob uma forma meio magistral, isto é, sob a condução de algum tipo de especialista ou autoridade. O que muda, no caso brasileiro, é que nos cineclubes se projetam muito os documentários e os curta-metragens.

Tenho escrito bastante sobre o cineclube contemporâneo, isto é, meu entendimento sobre o que deve fazer parte de um modelo de cineclube apropriado aos nossos tempo, cultura e tecnologia. Penso que o  cineclube deve deixar de se limitar à sala de projeção – que deve ser mantida, repensada e revalorizada – e se propor como a instituição audiovisual da comunidade. É um tema amplo demais para este espaço, mas penso que é fundamental que o cineclube ocupe um espaço físico permanente, com condições de reunir as pessoas em formatos diferentes do da sala de cinema: as rodas, em torno de telas de tevê, para cineclubar (isto é, criar uma experiência coletiva de fruição e crítica) com séries e telenovelas, e espaços de festa e comemoração, onde a discussão rola de forma menos induzida ou paternalizada. Mas o cineclube também precisa se expandir para fora do espaço físico e para dentro do virtual: criar aplicativos de comunicação com seu público; canais proprios na internet; horários de transmissão de suas próprias produções audiovisuais – de noticiários, manifestações esportivas, espetáculos diversos, documentários, ficções e, provavelmente, novos “gêneros” a criar... E o cineclube deve ser também o local da memória (da identidade) do público, que hoje é essencialmente audiovisual. Deve ser e criar um arquivo dessa memória, coletando fotografias, filmes de família, etc., ao mesmo tempo que documentando, gravando e salvando a memória, em grande parte oral, das comunidades. Todo tipo de comunidade: do bairro de periferia, da cidade pequena, da colônia italiana, do ambiente LGBT, do grupo escolar...

É claro que esse modelo, ou melhor, esses componentes para um modelo de cineclube atual, contemporâneo, só podem ser o fruto de um mais ou menos longo e certamente muito trabalhoso processo. Propor esse objetivo não implica em recusar o cineclube que não tem ainda um local fixo ou que não está muito bem equipado. A base do trabalho cineclubista é sempre a mesma: organização coletiva e democrática, ausência de fins lucrativos, e o objetivo é a apropriação integral do audiovisual pela comunidade. Mas é fundamental que o cineclube não se acomode, não se contente com as condições mínimas, mas que busque sempre mais na trajetória ideal de superar e substituir as mídias, o audiovisual comercial.

A segunda condicionante que mencionei também é bem mais complexa do que cabe abordar aqui. Contudo, a situação que apenas se esboça ainda, em nosso País, torna mais urgente a preparação dos cineclubes para realizarem seu trabalho. A eleição de um governo autoritário que explicitamente se propõe a combater o “ativismo social” encerra definitivamente qualquer ilusão de basear nossa atividade no apoio estatal. Estamos (ainda?) muito longe da situação vivida durante a ditadura militar, quando havia uma forte Censura oficial (exercida pela Polícia Federal), que invadia cineclubes e sequestrava filmes, chegando muitas vezes a prender e maltratar cineclubistas. Mas, ainda que nossas instituições republicanas resistam a prováveis incursões autoritárias sobre a atividade cineclubista, não podemos ignorar a possibilidade de ataques “informais” e mais perigosos de grupos radicalizados. O Espírito Santo ainda tem, entretanto, a lembrança e a experiência disso: deve se prevenir para uma possível resistência clandestina de algumas atividades em caso de necessidade.

O que é absolutamente certo, no entanto, sob o próximo governo, é que não haverá nenhuma ajuda institucional aos cineclubes e, muito provavelmente, o contrário:discriminação sempre que possível (do ponto de vista do governo) quanto aos cineclubes mais críticos. Isso significa que é absolutamente indispensável superar uma postura que pessoalmente sempre considerei irrealista que é a da gratuidade das atividades. Em plena ditadura criamos o conceito de “taxa de manutenção”, isto é, a contribuição cobrada em cada projeção. Ela não implica, como todos sabem, nem se confunde com fins lucrativos, já que todo recurso angariado é obrigatoriamente reinvestido na atividade do cineclube - ninguém se apropria individualmente, o que é a definição da finalidade lucrativa. No mínimo, os cineclubes devem usar sua inventividade (passar o chapéu, por exemplo) para criar fontes de recursos – e conscientizar e comprometer seu público com a manutenção da entidade, que lhe pertence e que ele, público, deve defender e sustentar. A figura do associado e da contribuição mensal é outra tradição e base do cineclubismo que praticamente desapareceu (e quase que exclusivamente na América Latina, principalmente no Brasil). As festas ou comemorações, com a a venda de comidas e bebidas, são outra fonte de manutenção usadas por cineclubes há mais de um século. Dizer que o cineclube deve ser a instituição da comunidade, expressar seus interesses e necessidades e representá-la no campo do audiovisual implica, necessariamente, que ele seja capaz de interessá-la e mobilizá-la para ela mesma sustentar seu projeto. A base principal de sustentação do cineclube deve ser a comunidade em que atua.

Mas uma contradição dos governos autoritários que, por outro lado, vai favorecer o trabalho cineclubista, é que esse tipo de adversário promove, de certa forma, uma unidade crescente entre os membros da comunidade – que encontram um inimigo comum – e aumentam o interesse e as consequentes participação e adesão ao cineclube.

Tenho uma forte ligação com o movimento cineclubista capixaba, que acompanho há mais de 40 anos. Me emociona saber que ele continua vivo, criativo, atuante, o que esse encontro vem demonstrar. Os encontros, assembleias e outras formas de convivência e compartilhamento de experiências são uma forma insubstituível de desenvolvimento do movimento, quando a gente estabelece relações e laços pessoais e vive realmente, coletivamente, a experiência de pensar, fazer e lutar pelo cineclubismo, pelo público, pelo Brasil. Queria estar aí com vocês.

Grande e produtivo Encontro para todos.

Saudações cineclubistas,

Felipe Macedo