quarta-feira, 29 de janeiro de 2020


 Bolsonaro, o filme

Assisti aqui (em Montreal), ontem, um documentário belga de 52 minutos – As flechas de prata: o orgulho de Hitler (Les flêches d’argent: l’orgueil de Hitler. Mais informações, em francês, em https://www.laliberte.ch/news/ces-firmes-qui-roulaient-pour-hitler-469913) - sobre a indústria automobilística e a evolução do espetáculo dos grands prix a partir da renovação geral na Alemanha com a ascensão do nazismo. 

O documentário é dinâmico, fluente, de fácil compreensão, sem abandonar um elevado e sério teor informativo e crítico. É uma combinação de muito material de arquivo e de análises – depoimentos – feitos por especialistas. Enfoca desde a formação da moderna indústria alemã, no quadro da superação das limitações impostas pelas potências vencedoras da Primeira Grande Guerra, o alinhamento dessa indústria (Audi, Mercedes, BMW, etc.) e do genial Ferdinand Porsche com o nazismo, suas ligações com os grandes fabricantes americanos, Ford e GM (ambos dirigidos por racistas financiadores do nazismo: Henri Ford e Alfred P. Sloan, respectivamente), até o uso dos grandes prêmios de velocidade para a divulgação das conquistas tecnológicas alemãs (base da fama que vem até nossos dias) e da “superioridade da raça”. É bem possível que a TV5 exiba, ou já tenha exibido, aí no Brasil.

Ao mesmo tempo, a televisão canadense trata há dias do aniversário de 75 anos da libertação, pelo Exército Vermelho, do campo de Auschwitz. Com outro registro, de reportagem, mas histórica, também esse tema traz para as telas bastante material de arquivo.

Mas nenhum desses é o assunto aqui. Esses dois exemplos me trouxeram à cachola o fato bem conhecido da valorização da propaganda e da publicidade pelo nazismo – e outros fascismos – para o qual constituíram um elemento central não apenas na sua divulgação, mas para a própria construção do conceito, e do aparato que revestiu não só sua imagem, mas seu dispositivo social e político. O próprio Hitler, Goebbels e outros nazistas foram mestres na construção dessa imagem e na sua manipulação.

O que eles não previram, certamente, é que a mesma capacidade de impressionar, de provocar interesse e admiração,  de incitar sentimentos e comportamentos, diante da queda da máscara espetacular – com a derrota na 2ª. Guerra - resulta no diametralmente oposto: as imagens de arquivo sobre o nazismo (principalmente) constituem um material incrível, riquíssimo, grandioso à sua maneira, sobretudo chocante, de denúncia das atrocidades, de demonstração da manipulação de consciências, da básica falsidade – e horror – dos pressupostos e das ações dessa ideologia, política e Estado. Daí é que pensei no Bolsonaro, meu tema aqui.

Imagino que não há nenhuma originalidade nesta minha reflexão, mas desconheço qualquer material sobre o advento do bolsonarismo e este primeiro ano do seu mito no poder. Bolsonaro, seus filhos raivosos, seus ministros impagáveis e seu ideólogo vigarista usam as mesmas técnicas bem retratadas no documentário a que me referi mais acima. Conseguem, assim, supostamente comover seus seguidores. Também atraem a atenção das mais diversas mídias institucionais, mas essas, geralmente, apenas destacam o evento: o ridículo, o chocante, até o horroroso de certas acões ou declarações. Apesar de se pretenderem “investigadoras” e “intérpretes” das notícias, praticamente nunca vão além de reprodução e descrição desse tipo de acontecimento. Nas equivocadamente chamadas mídias sociais, essas manifestações absurdas, repugnantes ou grotescas do aparato bolsonarista também são tratadas, no mais das vezes, com muita superficialidade, quase que numa espécie de simetria com os pretensos seguidores do nosso hitlerzinho de fancaria, repetindo apenas as críticas mais óbvias para um auditório já convencido, limitado nas e pelas bolhas da internet que, numa certa extensão, realimenta-se, afirma-se nesse processo.

Como se sabe, o material audiovisual sobre Bolsonaro, seu governo e seguidores já é farto, rico e atraente, e penso que na mesma linha que as fontes de arquivo do nazismo: se não há um evidente genocídio, o ódio racial está presente, assim como outras destruições maciças, como a dos recursos naturais. O racismo, que atinge indígenas, negros (visados pela promoção da violência policial) e vira homofobia e outras formas de preconceito – inclusive o incentivo à hostilidade sobre outras etnias importantes no Brasil, como os asiáticos. O nosso fascismo, claro, tem sua originalidade – como tudo em países que não conseguem desemvolver seus próprios projetos nacionais. Tem os militares e sua ideologia machista de honra corporativa, seu desprezo imenso pela vida e sua subserviência aos poderosos, daqui ou de mais ao Norte. Tem as milícias, manifestação “informal”, pelo crime, de uma cultura que bebe naquela outra. E tem os evangélicos e outros fanáticos religiosos, com sua própria simbologia de absurdos e pesado carregamento de intolerância e preconceito. Mas o importante aqui, é demonstrar que esse ajuntamento de interesses resulta, guardadas algumas proporções, no mesmo fenômeno simbólico produzido pelo nazismo.

Análises originais e profundas também não faltam – embora apareçam pouco e comuniquem menos ainda. Mas existem. Exames instigantes, especialistas que sabem se comunicar. Questões fundamentais para o público estão ainda a se desenvolver e pedem pelo esclarecimento: os efeitos da destruição de direitos em vários níveis, a eliminação dos principais elementos de distribuição de renda, o desmate da educação, da cultura e da ciência, o ataque à Amazonia... E as imagens e discursos produzidos neste pequeno período de domínio também abundam: Bolsonaro ensinando “arminha” para uma criança; suas ligações (e fotos) de longa data com as milícias e o crime – inclusive o nexo lógico com a assassinato de Marielle Franco -; as patacoadas audiovisuais do ministro da Educação; as declarações da ministra de Direitos Humanos, do titular do Meio Ambiente, de Relações Exteriores, além, é claro, da trajetória intelectual do farsante Olavo de Carvalho, astrólogo kierkegaardiano e gramscista, mentor intelectual de grande parte dessa gente.

Um ano de Bolsonaro – ou mais, se contarmos a campanha sem debate, o “atentado”, o culto à tortura e os símbolos de violência, e ainda excertos de sua juventude irrefletida (isto é, as três décadas desde que foi expulso do Exército) – dá mais reflexão, dá mais cinema e talvez tenha produzido mais imagens interessantes que todos os protagonistas anteriores. Certamente minha ideia não é nada original, mas desconheço e gostaria de ver algo nesse sentido que tenha sido produzido. Pergunto aos meus tantos amigos realizadores, roteiristas, produtores: cadê o documentário que pode ganhar o próximo Oscar?