terça-feira, 16 de julho de 2024

 Victor de Almeida

É pretensioso dizer isto - no que me toca - em um país do tamanho do Brasil mas, de meu conhecimento, só sei de um intelectual e militante cineclubista cineclubista mais, bem mais, antigo do que eu, e sempre atuante. Falo de Victor de Almeida, do conhecido e importantíssimo Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais, da Revista de Cinema e, mais recentemente, também com o cineclube da Casa de Cultura Cássia Afonso de Almeida, de Mateus Leme (MG). Ele me mandou esta avaliação da situação do cineclubismo no Brasil, e me autorizou a divulgá-la. Sintético, o texto abarca muitas questões que artigos bem mais extensos não conseguem reunir. Aqui vai minha contribuição para a sua disseminação.

Como está e para onde vai o cineclubismo brasileiro 

Pertenço a uma outra tradição de cineclubismo, mas não posso deixar de reconhecer a impressionante vitalidade e dinamismo do movimento de agora, representado por talvez centenas de cineclubes, que se reúnem com alguma regularidade para ver e discutir filmes que, muitos, eles mesmos fazem. Trata-se de um fenômeno novo, que pouco depende do repertório do cinema internacional e até mesmo do do cinema brasileiro, que hoje não tem mais o caráter de movimento político de outrora. 

Felipe Macedo é, talvez, o maior estudioso do cineclubismo hoje no Brasil. Atualmente morando no Canadá, ele foi um dos articuladores do Censo Cineclubista, realizado pelo Cineclube O Lhó Lhó, de Florianópolis, sobre o movimento em nosso país. Mas, antes de comentar alguns resultados dessa pesquisa, é preciso destacar a revolução por que o cinema vem passando. "As mediações sociais na sociedade, hoje, são feitas pelas mídias, que atingem a toda a população. Elas são, predominantemente, digitais e audiovisuais". Como precursor dessas mídias, "o cinema sofreu transformações radicais na produção, na difusão e, sobretudo, na recepção. Hoje, os filmes estão nos cinemas, na televisão e nos celulares. Comparado com a audiência do cinema tradicional, o efeito é gigantesco". 

No dizer do cineasta e ex-cineclubista Sílvio Tendler, "o cinema está emparedado pelo entretenimento". Foi sequestrado pelos shopping-centers. Virou lazer, exclusivamente. Poucos equipamentos públicos ainda subsistem para a fruição coletiva da produção audiovisual e cinematográfica fora desses centros de compras. Pior, o meio mudou a mensagem, como previu McLuhan.  A exceção são os cineclubes -- e as salas especiais que desses se aproximam, funcionalmente.

No entanto, os cineclubes continuam presos aos anos 50 e 60, apresentando uma base social ainda muito limitada e rarefeita, embora não elitista. Macedo aponta a falta de associativismo como um dos entraves para o desenvolvimento do movimento. Alguns cineclubes chegam a ser individuais. Um número expressivo é de cineclubes virtuais. Não têm existência formal, são coletivos. A frequência das sessões, na maioria deles, é mensal. O número de frequentadores presenciais por sessão fica entre 10 e 20 pessoas. Virtualmente, o número pouco se altera. O público é constituído, basicamente, de estudantes. Os filmes exibidos são produções independentes, portanto, menos conhecidas e reconhecidas. Em compensação, esses filmes tratam de "temas sociais amplos e variados", projetando os cineclubes como "organizações progressistas e inclusivas".

Em sua maioria, os cineclubes atuais são organizações informais, não tendo estatutos, diretoria eleita, taxas de manutenção, etc. Sendo assim, também não pagam direitos autorais. É difícil precisar seu número exato, já que nascem e morrem a todo instante. Em termos atuais, são organizações que reúnem espectadores -- nem sempre apreciadores de cinema, para o estudo de filmes, artistas e cinematografias -- que utilizam o produto audiovisual para enfrentar outros temas e interesses que assaltam a sociedade.

Trata-se de uma formidável energia que vem sendo canalizada para a melhoria da cidadania de seus militantes. Com isso, está surgindo uma nova consciência de cineclubismo. Não se trata mais de reconhecer o cinema como uma arte ou como um recurso para a emancipação dos trabalhadores, como ocorreu nos primórdios. O cineclubismo atual se apropria dos novos recursos audiovisuais para se posicionar não como objeto do espetáculo cinematográfico, como espectador e consumidor, "mas como público, sujeito da vida e da história". 

Historicamente, o movimento pretendia divertir, informar e emancipar o público. Divertir sem alienar. Criar no cidadão a consciência de indivíduo, de grupo, de comunidade, de classe social, de humanidade. Isto é, criar nele "a consciência da sua condição no mundo". Como organização comunitária, tinha "caráter democrático, popular e transformador". Um dos primeiros cineclubes se denominava Le Cinéma du Peuple e tinha natureza política (anarquista).  

Segundo Josué de Castro, o cineclube "é a grande esquina do cinema. A esquina é um lugar de encontro". Ele foi isso enquanto não surgiu a televisão. Em Belo Horizonte, o Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais (CEC-MG) foi, durante muitas décadas, uma janela para o mundo. Não se compreende, portanto, o isolamento social em que se encontra hoje, apesar da multiplicidade, diversidade e intensidade do movimento. Sobretudo, a falta de vínculo com os trabalhadores. Poucos cineclubes funcionam em sindicatos de trabalhadores e associações de moradores, numa demonstração de que essas organizações têm menos interesse na cultura. O que predomina são os cineclubes com pautas identitárias. 

O atual governo anunciou, no Dia do Cinema Brasileiro, 19 de junho, recursos financeiros extraordinários para fortalecer o conteúdo audiovisual no mercado interno e externo. Mais uma vez, o cineclubismo foi esquecido pelo Ministério da Cultura. Qualquer observador nota que os cineclubes brasileiros e seus militantes estão na base de apoio ao atual governo. Mas faltam-nos organização e liderança. O cineclubismo esteve na origem da evolução da linguagem cinematográfica. Impulsionou movimentos revolucionários, estéticos e culturais. No entanto, isso não é reconhecido.


Victor de Almeida é gestor cultural, diretor-executivo do Instituto Humberto Mauro e presidente do Conselho Curador do Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais (CEC-MG), organização com 73 anos de atividades.